terça-feira, 31 de março de 2009

Convicções.

Só tem convicções aquele que não aprofundou nada.

(Emil Cioran)

***

No confessionário.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Um Diário (2).

30 de outubro de 1940.

A dor não é em absoluto um privilégio, um sinal de nobreza, uma lembrança de Deus. A dor é uma coisa bestial e feroz, banal e gratuita, natural como o ar. É impalpável, escapa a todos e a qualquer luta; vive no tempo, é a mesma coisa que o tempo; se possui sobressaltos e gritos, é tão somente para deixar mais indefeso quem sofre nos momentos subsequentes, nos longos momentos em que se torna a provar o tormento passado e aguarda-se o seguinte. Esses sobressaltos não são a dor em si mesma, são momentos de vitalidade criados pelos nervos para que se possa sentir a duração da verdadeira dor, a tediosa, exasperante, infinita duração do tempo-dor. Quem sofre está sempre em estado de espera - do sobressalto e do novo sobressalto. Chega uma hora em que se prefere o acesso do grito à sua espera. Chega a hora em que se grita sem necessidade, desde que se rompa a corrente do tempo, desde que se sinta que está acontecendo alguma coisa, que a duração eterna da dor bestial interrompeu-se por um intante - ainda que para ser intensificada.

Às vezes surge a desconfiança de que a morte - o inferno - consistirá ainda no fluir de uma dor sem sobressaltos, sem voz, sem momentos, só tempo e eternidade, incessante como o fluir do sangue num corpo que não morrerá mais.

A força da indiferença! - é a mesma que permitiu às pedras que permanecessem imutáveis por milhões de anos.

(O Ofício de Viver, Cesare Pavese)

domingo, 29 de março de 2009

Sem Censura.

Ficamos na fita bruta
Que algum filha-da-puta decupou
Não entramos na comédia
E é preciso fazer média com o maldito diretor
Dispensaram o contra regra
E é banda quem carrega
Um pesado monitor
E esta é a maior censura
Está que não tem cura
Que nasce dentro do autor
É melhor ficar calado
É melhor virar de lado e
Desligar o gravador

Não entramos na novela
Nem precisa acender vela
Que o roteiro já fechou
Me disseram que é uma bosta
Mas que todo mundo gosta
Do mocinho sofredor

(Fita Bruta, Wado)

***

Eu levei anos procurando um amigo como você
Amigo desonesto, infiel e que nunca vê
O que você precisa e as coisas que você quer
Uma pessoa indiferente, que sorte é a gente ter
Amigo como esse que some pra te esquecer
Anos procurando um amigo como você

Pra me reconhecer, me identificar
Pra compartilhar a vida
Pra ter o que conversar
Pra me fazer entender

Eu levei anos procurando uma moça como você
Sombria e desonesta, que mente pra se vender
Sem um pingo de beleza na alma pra enaltecer
Uma pessoa inconsequente, que sorte é a gente ter
Parceira como essa que dorme pra não te ver
Anos procurando uma moça como você

Pra me reconhecer, me identificar
Pra chamar de alma gêmea
Pra ter o que conversar
Pra me fazer entender

(A Busca, Violins)

Viva o Ódio!

Só se lê aquilo que é lido com algum propósito pessoal. Pode ser até com a intenção de adquirir poder. Pode ser até mesmo com ódio ao autor.

(Paul Valéry)

***

Odeia-se o que se teme e, portanto, o que a gente pode ser, o que sente que é um pouco. A gente se odeia a si mesmo. As qualidades mais interessantes e férteis de cada um são as que cada qual mais odeia em si e nos outros. Porque no "ódio" há de tudo: amor, inveja, ignorância, mistério e anseio de conhecer e possuir. O ódio faz sofrer. Vencer o ódio é dar um passo em direção ao conhecimento e o domínio de si, é "justificar-se" e, assim, parar de sofrer. Sofrer é sempre culpa nossa.

(Cesare Pavese)

***

Obrigado pelo ódio, Cintia! Fica esse singelo post homenagem como registro carinhoso em função da sua despedida. Seja feliz e se ofenda (sofra) menos!

Ágora.

É Cintia Macena, a senhorita me faz rir...

Porque se você me chama de sádico - o que na verdade não sou - eu diria apenas e tão somente que a senhorita na melhor das hipóteses é masoquista (ou sadomasô!). Você gosta de se sentir ofendida e então procura ofensa até em elogio. Tudo é motivo para ofensa. Tudo. Todos os textos. Mas a verdade é que você jamais se reconhece em absolutamente nada que tentem dizer a você. Durante esse tempo todo, a sua surdez completa, foi O CERTO! O problema é que realmente esses sentimentos 'vis' existem em você - mas não apenas em você, como em toda a humanidade. Ponto pacífico. E é exatamente por isso que eu não tenho nenhuma raiva de você, nenhum ódio, embora a verdade é que realmente eu me decepcionei com a maneira como de repente você passou a tratar isso tudo. Decepções acontecem, fato. Não tem como fugir delas, mas eu achei que você teria mais bom senso. Aliás, você tem! Você SEMPRE tem!

Eu fico aqui realmente intrigado. Aquele papo da cobra não te desceu até hoje! Pelo menos você ter tocado no ponto já é um bom sinal! E eu ainda te acho uma cobra! No bom sentido. Mas eu já me cansei de te dizer o que significa. Nada do que eu te disse durante todo esse tempo você acreditou. Você já deve ter decorado o que eu te digo de cor e salteado, então não preciso repeti-lo. E se eu falei que você era um furacão, se a sua burrice - claro que eu sei que você é inteligente, cativante, etc, mas o problema é a cabeça dura mesmo - não te deixa ver que a palavra furacão pode ser empregada em sentidos menos convencionais, assim como a palavra estrago, eu fico apenas triste, porque sei que você sabe trabalhar as palavras e os sentidos muito bem para cair na bobeira de ver urubu onde não existe.

O problema, Cintia, é que você também - durante todo esse tempo faz e fez o que me acusa - condenou, julgou, analisou... Sacou? Só que a maneira como você põe as coisas visa livrar a sua cara e jogar a bomba para o outro lado. Você nunca em nenhum momento chegou a cogitar a hipótese mínima de que poderia estar equivocada. Parou para pensar nisso? E então, onde tem vida em você, Cintia? Claro que eu sei que tem. Eu não faço exatamente o que você faz - monstrifica as pessoas. Você pode não se dar conta, mas faz isso. Vide a sua última mensagem. Porque muito do que você reclama como se fosse o referencial da sua moralidade, você também cometeu em algum momento. Só que você é você! Rá! Hahahahaha. Nem lembrava que em outro momento da vida eu tinha brincado com isso, do você é você, por outros motivos. Só que a questão, Cintia, é que isso tudo nunca te fez menor aos meus olhos. Eu olho e penso: ok, ela é 'humana', as pessoas erram, ela não é perfeita. Mas você olha pra você mesma como se fosse a perfeição - até quando tenta negar isso.

E isso te torna menor? Não.

Não me importo nada de conversar em público, abrir o jogo. Não tenho medo nenhum do que as pessoas vão pensar a meu respeito, não tenho essa sua paranóia de se defender atacando para preservar a imagem. Porque não faz sentido. Não tenho o que esconder, Cintia. Por isso eu sou sincero. Por isso eu vou as raias da súplica, inclusive.

Você vive a reclamar sempre de que nesse blog eu não relato 'a verdade por trás dos fatos', quando você jamais disse 'a verdade'. E argumentos como 'as pessoas se magnetizam e se desmagnetizam' não resolvem - a não ser que se esteja fora do laço. Ou você se contentou com isso naquele seu ano ruim? Esse é o ponto Cintia. Eu poderia apostar que toda a descrição que eu fiz aqui se aplicam ao que você sentiu: você queria as explicações para as ausências. Saca, Cintia? Aquele papo de tentar tapar o abismo na sua frente ante uma coisa que você também via como um furacão - o furacão é aquilo que mexe com as suas estruturas e que te dá, dentre outras coisas paz! E você, 'meu furacão', me dava era paz! Sacou? Você fez Letras e não é nenhuma cabeça oca. Você sabe que era elogio de quem estava apaixonado. Mas se negou a aceitar aquilo. Foi o que eu escrevi no texto: confundiu libertação com salvação. E esse é o ponto: tudo você joga no balaio da salvação. Tudo é culpa da salvação. Quando eu escrevi que gostava era de ter você por perto, de conversar, brincar, quero dizer, de dar prosseguimento ao que a gente fazia espontaneamente, você tratou sistematicamente de negar tudo. Isso eu chamo de absurdo. Você deixou de lado aquele esforço de 'entender' o outro lado, de tentar não cair no perigo do 'mal entendido', para julgar, para ser a dona de todo o conhecimento verdadeiro da Terra! Uau! E pra que isso, Cintia?

Olha, pra você ter idéia, a sua presunção no último recado: 'sem aquela hipocrisia do se cuida'. O ponto é esse: quando você enquadra - e disso é o sólido a que eu me refiro, acabou. Não adianta dizer mais nada. Você lê tudo menos o que está escrito. Talvez porque tenha medo de aceitar que o que está escrito pode ser verdade. Daí sua insistência tão grande em negar tudo! E eu acho isso tão pequeno. Ouvir o outro é uma coisa interessante. E talvez tenha sido nosso maior ponto de desavença: enquanto a sua perspectiva foi sempre fechada em torno de si mesma - só eu sei o que eu sinto, só eu tenho as verdades, só eu sou portadora das resoluções! - eu sempre fui o contrário - nunca achei que o que tem em mim é formado apenas de mim. A gente falava sobre isso e era engraçado - no sentido de ser legal! A gente conversava para ver o que cada um pensava e se posicionava numa boa, até você ter dado essa louca e colocado em xeque exatamente tudo que você dizia. Você pediu sinceridade, mas não quis. Você falou que não iria se fechar, que tava na hora de se abrir, dar a cara a tapa, mas não se abriu. Óbvio Cintia que eu iria desabar! Porque eu pensava: ok, ela vai ler o que eu escrevi e vai se esforçar para sacar única e tão somente que 'aquele dia na praia, aquele orelhão, etc', como você colocou, foi um dia que me marcou. Que ela é um tipo de pessoa - dentre uma infinidade de tipos - com quem eu realmente gostaria de estar junto mais vezes, porque o 'furacão' me faz bem, me faz querer melhorar. Parecia para mim natural que de alguma maneira houvesse prosseguimento no curso das coisas. Até porque eu achei que a receptividade havia sido positiva. Eis que então, dali em diante você sabe no que deu. E não me venha aqui falar que eu uso meu blog como instrumento para te denegrir, como lirismo assassino, etc, porque você sabe que não é nada disso. E sabe muito bem! E sabe que eu quis de todas as maneiras te puxar, entender o que tava acontecendo, esclarecer as coisas no tempo em que elas ocorreram, e que ali, naquele tempo eu fiquei pelado na sua frente. E eu propus, inclusive, voltar ao Rio, te ver novamente olhos nos olhos pra esclarecer a coisa, mas você não quis. O que eu faço se eu não obtenho respostas? Nesse tempo, Cintia, eu evitava de postar no blog para que você não ficasse mais neurada ainda! Porque eu queria saber de você o que tava acontecendo! De você! Depois que você começou a ficar rude, eu resolvi desistir. Você não queria conversar mais! E então, aos poucos eu fui despejando toda a minha fraqueza, a minha dor diante da falta de respostas aqui. E esse espaço, me desculpe, mas é meu! E você vai ler aqui o que eu escrever. Se o que eu escrevo pra você hoje em dia te ofende, eu não posso fazer nada, porque você tem 'livre arbítrio', ou como você mesma diz, possibilidade de escolher! E muito me admira que uma pessoa que faz todas as escolhas certas faça exatamente a mais errada de todas que é ficar voltando ao local do crime! Hahahahaha. Pra que, Cintia? Você gosta de se ofender, percebe? E olha que eu não fico falando coisas realmente ultrajantes como 'a Cintia é uma idiota'. Nada disso. Eu não te acho idiota. E nunca houve esse tipo de ofensa. Mas os meus posts que tiveram você como foco expunham justamente as lacunas que ficaram por ser preenchidas. E eu te digo mais: muitos dos posts foram elogiosos, assim como muitas das outras músicas que compus cá e que tinham ligação com você simplesmente pelo fato de que eu não te odeio! Você cria até um ódio onde não existe, Cintia. Houve no máximo aquele ódio que só afirma o amor, a merda da falta e da saudade e que, portanto não é ódio. Volta praquele ano e eu te digo: você realmente sentiu ódio bruto em algum momento? Não. Não, Cintia! Não, não e não! Eu nunca senti ódio da Natasha, eu nunca senti ódio da Thais eu nunca senti ódio de você. Senão, eu não estaria falando contigo. Só que pra você é mais fácil falar: ele tem ódio de mim e é por isso que me ofende com tanta vontade. Interprete como melhor te convier, mas saiba que se pegar este caminho, ele estará totalmente equivocado. Aliás, eu sugiro que para entender a situação - que você ajudou a construir - você olhe mais para o seu passado, Cintia. Porque é realmente incrível como você mexeu tanto comigo a ponto d'eu me ver em todas aquelas suas descrições daquele seu 'ano negro'. E isso é o que eu ainda acho mais absurdo disso tudo: você não percebe que o que eu senti, a maneira como você me tratou - a sua escolha - foi exatamente a mesma com a qual te trataram e que quebraram você em duas metades. Só que hoje você está no lugar dele e vê as coisas segundo a parte que te é mais própria. É disso que eu falei nos textos: você não sai de dentro de você para olhar o que se passa fora. Você sente e ao mesmo tempo não sente, Cintia. E se você me põe a todo instante como um egoísta assassino cuja função é exclusivamente denegrir a sua belíssima imagem, você não percebe também a outra face da sua moeda.

Eu proponho que você deixe de se fazer de ofendida com coisas que não foram feitas para te ofender. Porque eu não fiquei me fazendo de ofendido por, por exemplo, você me analisar! Hahahahaha. E por que? Porque ao mesmo tempo que eu não me reconhecia em algumas coisas, em outras você era precisa! Totalmente. E eu não fico ofendida que você - mesmo dizendo que não - tente olhar pra mim, ver a minha mecânica. Não há motivos, Cintia. Todo mundo faz isso! TODO MUNDO! Não sou só eu, não é só você, mas a linguagem funciona a partir de categorias. Será que você não percebe que esse seu sentir em abstrato é completamente mentiroso? Os animais, Cintia, não amam porque eles não sabem o que é amor. Eles fazem sexo, eles tem instinto, eles se reproduzem. A gente põe uma capa de sentido nas coisas e o sentido é sempre esse duplo entre uma 'percepção e uma abstração'. O amor tá nessa merda dessa fronteira entre as palavras e as sensações. E se você sente em abstrato, realmente, você é uma pedra. Então sugiro que você - que gosta tanto das palavras e das linguagens - fique muda, vegete. Se eu te escrevi sempre, se eu escrevi aqui, foi simples, foi porque o que tava aqui, Cintia, era o que tava dentro de mim, me incomodando. E se você negar que nunca falou para que eu dissesse 'realmente' o que eu estava 'sentindo', então, realmente você está irreconhecível. É disso que eu peguei no seu pé com os textos sobre sinceridade. Óbvio que estes eram para você! Que tipo de sinceridade que você quer? É aquela demagógica em que não se pode dizer o que está dentro sob pena da repulsa? É essa? Porque se for, tudo bem. Eu tinha outro conceito de sinceridade, pelo menos da maneira como você expunha outrora.

O momento em que você passar novamente por uma situação como a minha, você vai perceber com clareza que não havia nada de errado ou absurdo no que eu te disse, na forma como eu me expus ou me posicionei. Mas isso você só vai perceber quando encontrar situação semelhante. Você vai ver o quanto é muito mais dolorido uma lacuna, a rudeza indiferente, do que uma palavra qualquer, que seja ela a mais vil de toda a humanidade. Porque ser indiferente é tratar o outro como nada. E eu já te falei disso lá no principio da coisa, quando você se importava mais com que estava ao redor.

Agora, eu volto a falar: apesar disso tudo, você é menor? Absolutamente não.

Eu não faço seus 'draminhas' de falar que a beleza do que havia se esvaiu por causa da ofensa. Eu continuo te falando: do primeiro e-mail até o último momento com você foi uma coisa realmente de outro nível. Hahahahaha. Você nunca acreditou nisso, no lance do 'outro nível'. Nem lembrava que eu tinha usado o termo, mas isso te definia muito bem. E é engraçado porque eu falava isso o tempo todo com outras pessoas ao meu redor, porque realmente isso dizia muito de você. Porque eu não sou o insensível que você pinta que olhava apenas e tão somente para a minha busca de prazer, mas achava bonito todo o seu esforço, Cintia, todo o seu movimento. Não me cansei de dizer isso, de te mostrar isso pontualmente, porque não era 'demagogia'. Foi o que eu te falei: você me fazia sentir amado e mais do que isso, da maneira como eu queria realmente ser amado. Isso é gostoso, Cintia. E um belo dia, sem mais nem menos, sem uma explicação suficientemente coerente, eu vejo a coisa mudando. As palavras de carinho que eram recebidas de maneira positiva, de repente viram OFENSAS! Dá uma lida nas estrofes paralelas da Convênio, do Violins.

O sono faz pensar no quanto eu ri
Ao te ouvir celebrar tudo o que eu fiz para chegar aqui
Isso te faz pedir por mais, pedir por mais

(...)

O sono faz pensar no quanto eu ri
Ao te ouvir reclamar de tudo que eu fiz pra chegar aqui
E isso te faz andar pra trás, andar pra trás...

Foi isso, Cintia. Incrível! Inacreditável. Absurdo.

Aquela velha história: tava bom demais para ser verdade!

Então, convenhamos que é uma situação na melhor das hipóteses muito maluca. É muito maluco o barco virar de repente, do nada. E se isso é fácil de você assimilar, eu peço desculpas, mas para mim não é. Eu só percebi mesmo que eu tenho que mudar a minha tara por mulheres loucas, como te disse, porque a loucura dela transcende a minha capacidade de compreender a situação. Elas aparecem da maneira mais inusitada na minha vida e desaparecem de outra ainda mais ininteligível. É loucura demais - o que as torna totalmente interessantes, óbvio - mas por outro lado é muita instabilidade. Não dá pra suportar isso, porque nunca se sabe o limiar em que o carinho vai virar uma ofensa pessoal e mortal. Dizer que se está apaixonado vira uma ofensa. Realmente a vida é um tremendo absurdo. Esse jogo de esconde esconde é complicado demais para mim. Totalmente. Eu dou aquela risada nervosa e estranha quando me pego pensando nesse tipo de coisa.

E óbvio que você tem razão quando me cutuca quanto aos meus medos totalmente infundados. E olha que engraçado, por ter medo de ofender eu ofendo! Que beleza! Por tentar de todas as maneiras possíveis agir da forma menos agressiva, eu agrido! Nossos velho amigo 'paradoxo', Cintia. Uau. Só que você se esquece que, como eu tinha te dito, se eu quisesse uma vida de avatar, eu teria me limitado a ficar aqui te imaginando. E não foi o que ocorreu.

E o que dizer para finalizar? A-verdade-em-si-mesma: eu não te odeio. Você tem a mania - e eu já te disse isso inúmeras vezes - de se enxergar única e exclusivamente como um catalisador de desastres. E esquece sumariamente de que você também faz bem as pessoas. E talvez seja esse o grande problema, não? Porque quando a outra pessoa se sente bem, ela quer mais e você não está disposta exatamente a criar vinculos, porque você vê muita 'responsabilidade' nisso. E aí eu apenas te mostro que é você quem leva muito mais a coisa a sério e aproveita menos da situação. Procura pela ofensa, procura pelos socos que nunca foram desferidos, pelo fim antecipado antes... do que, Cintia? Antes do que? Tá nisso a antecipação de que eu te falei. Eu tenho essa coisa da vida calculada tipo o professor do 'A Corrente do Bem', mas quando eu vi você, tudo o que eu quis foi justamente parar de usar as mesmas roupas, de vestir os mesmos hábitos. É essa a diferença entre libertação e salvação. Só que você se preocupou muito tempo 'em querer ser salva' para poder enxergar o que estava exatamente diante dos seus olhos. Talvez seja esse seu problema com a salvação: você não quer salvar, mas sim ser salva. É algo a se pensar, mas que não chega a ser totalmente despropositado. Por isso você bate tanto nesse tema. Ou então por não ser ele exatamente o ponto central, mas apenas uma maneira de jogar para o lado a questão principal. E isso a gente só descobre conversando, dialogando.

Para de ficar achando que eu tenho ódio de você porque eu sei das suas virtudes - e que não são apenas meras palavras, ou sofismas, como você deu pra apelidar a linguagem. O que mais me deixa indignado, Cintia, é sério, é que eu te vi pessoalmente. E eu simplesmente não consigo acreditar que essa pessoa aí das palavras é a mesma de 'carne, osso e ihhhhhhhhs'! Eu vi você! Tô falando de pele, de rosto, da maneira gostosa com a qual você consegue deixar uma pessoa tão introvertida como eu muito mais a vontade do que de costume - ainda que não tenha sido exatamente o suficiente. Saca? Não me entra na cabeça que essa pessoa tão legal, seja a mesma que se fez de ofendida por um esboço de carinho e de repente abriu mão da compreensão em nome de uma rudeza besta. Não deve ser a mesma pessoa que de repente sem mais nem menos parou de dizer e se limitou a falar, a andar em círculos e se esconder. Não pode ser! Não é a mesma pessoa que criou uma invasão fictícia para justificar tudo isso. Eu estive com você em três momentos. E não tem como essa mudança tão completamente inesperada. Eu ouvi você, Cintia. Saca? Por isso, não me entra na cabeça de modo algum que aquela pessoa tenha a vontade idiota de negar a si mesma. Eu tive nas suas frentes e lembro das suas gargalhadas. E quando lembro eu mesmo gargalho, porque eram gestos tão bonitos e espontâneos que simplesmente não há como não se comover. Esses sim os gestos bonitos e verdadeira marcantes. É disso que eu falo, Cintia: foi legal ver que aquelas 'palavras' suas no pré-Rio não eram sofismas! E de repente no Pós, viraram! Misteriosamente viraram. Se você tentava se explicar, se fazer entender, depois, não fazia mais questão nenhuma! E me vem falando que nunca quis se explicar em nenhum momento! Hahahahahaha! Era tão 'idiota', porque a gente sempre temendo ser mal compreendido tinha aquele esforço didático que beirava a bobeira. Mas que por trás demonstrava ao mesmo tempo medo e preocupação com o outro e que, portanto, eram sim verdadeiramente sinceros. Como as palavras que saiam da sua boca e as alternâncias nas suas expressões durante os momentos que nos falamos pessoalmente também o eram. Ali havia aquela sinceridade que você apregoava! Ali havia, sendo que o ápice foi justamente nos momentos em que eu vi que você não era tão somente um avatar. Em que eu vi seu corpo, olhei para os seus pés, vi o seu rosto e os seus olhos. Ouvi o seu chiado. Entendeu? Depois virou isso aí que virou - sem que houvesse a necessidade. Sabe o que sempre dói mais? É ver que as coisas poderiam se resolver de uma outra maneira melhor. Eu tentei fazer a minha parte para isso. Mas mesmo assim isso não deixa a consciência menos pesada, porque o que aconteceu foi isso aí, Cintia, de você cair nas armadilhas que você mesmo tentava apontar. Aquela coisa do perigo da má interpretação, etc. Tudo bem. Logo, eu ainda acho - ou pelo menos quero acreditar - que aquela Cintia lá do inicio até o Rio exista e que em algum momento ela - e não esta - se ponha a ler o que eu escrevi. Não custa sonhar, certo? Enfim.

Bem, menina 'odiadada' que desaprendeu a brincar, a sorrir, a ser cínica, eu espero apenas e tão somente que você resolva a frequentar esse blog não para encontrar vestígios de que eu esteja te colocando contra a cruz, te martirizando, santa 'Cintia Má', e que faça um uso positivo do que aqui está escrito. Senão, faça a escolha verdadeiramente certa e poupe a si mesma de se ofender gratuitamente. E que se você vier cá, você não se limite a falar, mas a dizer, o que não acontece há muito tempo. E que não se preocupe em se defender porque não há necessidade quando ninguém está te denegrindo. E que uma imagem, se você a julga como falsa, é apenas uma imagem - do contrário, você acha que o que eu falo é verdade, não? Não quero que você fique caçando aqui motivos para se sentir mal. Até porque eu te acho de outro nível e sempre te achei - mesmo quando não queria te achar. E que o problema é sempre a falta, Cintia. Mas, enfim. Você é você. Escolha e siga em frente! E eu sei que há beleza em você - por mais ache o oposto.

E se cuida - sem demagogia! Ou pensou que essa bobagem iria passar em branco?

Se cuida, Cintia Má.

Desalojado II.

Já perdi a conta das vezes em que utilizei a expressão ‘é engraçado’. Mas não vai ser dessa vez que eu finalmente poderei abrir mão da mesma, afinal, realmente se trata de uma situação que pode ser definida por este rótulo. Logo, eu acho realmente engraçado de perceber como a vida é totalmente imprevisível. E, para variar, esse engraçado não exatamente tem graça e, talvez, este seja o grande charme do emprego palavra. Há cerca de sete meses um furacão passou por mim, conforme já relatei em outro momento. Fiquei, como era de se esperar, desalojado – e nesse caso, desalojado tem realmente o significado oposto àquele que comumente se costuma esperar. E não tem jeito: um furacão sempre consome algo que existia dentro da gente, agride, transforma. Não há jamais como sair intacto. A brisa nunca tem o mesmo sabor depois do turbilhão de sensações provocado pela passagem de um furacão. Só que quando finalmente se esperaria que do furacão pudesse brotar uma rosa perdida, aquela por tanto tempo procurada, acontece. Simplesmente acontece o inimaginável. A maior de todas as ofensas possíveis e inexplicáveis: ‘eu estou apaixonado por você, furacão’. Pronto. O furacão se trancou na sua torre de marfim. Logo ele que se supunha tão avassalador e, portanto, compreensivo, se dissipou. Se dissipou diante da fraqueza de um simples homem. Fraqueza completa de não saber controlar o que se sente, de não saber comunicar o que o atravessa. A brutalidade do vento entrou em colapso ao querer encontrar mais do que havia naquelas palavras. Confundiu libertação com salvação. Vê se pode! Sim, há rima, é fato, mas o significado diverge significativamente. E no meio dessa confusão, a existência do homem passou a ser motivo de ofensa para o furacão – que a essa altura já não era mais furacão, já não era vento, já não era nada. O furacão que pedia pela fúria, que clamava pelas chamas que existiam no homem, no primeiro degrau temeu a fúria, temeu as chamas. O homem soprou com toda a força que pôde, querendo reerguer o furacão. Querendo o calor do furacão. Nada. O furacão, que provocava deslocamentos, rupturas, quando foi dar alguma notícia tinha se tornado gelo. Sólido. E vocês sabem, os sólidos assim o são por conta de suas estruturas rígidas – compreensão se tornara repreensão. O sólido não faz barulho, não nos comunica absolutamente nada, não fala ao ouvido. Não sai da sua forma, não tolera outra possibilidade que não aquela que lhe convém. As tentativas do homem derreter o sólido, de tentar fazer ele novamente voar foram vãs. Orgulho bobo, como todo orgulho que se preza. Orgulho que condena, que se coloca num patamar elevado, afinal, havia de se conservar aquela pretensa solidez para não se desmanchar. Se transformar em vento seria se reconhecer incompleto, seria perder o estatuto da verdade que havia dentro e que não podia ser modificada sob o risco de. O homem passou a ser condenado por um crime de que nem tinha consciência. Não adiantava calor. Hipocrisia, dizia o sólido. ‘Eu tenho convicções, eu sei! Você não sabe’. Convicções sólidas, como toda burrice. E o sólido diz que sente. E realmente sente, assim como uma pedra sente. Mas uma pedra talvez seja mais quente. E sente tanto que sequer sabe o que é sentir: diz que sente. E quando diz não sente mais: pensa. Interessante: critica os sofismas sofismando, não se percebendo portadora das mesmas ações que critica. Não reconhece. O que sente – verdadeiramente – não reconhece.

Um belo dia, aquela pedra de gelo, portanto ainda sólida, dá as caras. E insiste em ‘sofismar’: fala, fala, fala e simplesmente não diz absolutamente nada. Fala de rancor, fala de ódio, parece tão solícita. O homem machucado, se machuca um pouco mais e se espanta. E se machucou, porque quando o furacão se dissipou ele sofreu pelos dois: a culpa e a rejeição. Mas o sólido é egoísta demais para reconhecer que existe algo no mundo além das suas moléculas rígidas, dos seus átomos verdadeiramente reais: inverte a equação. Não se lembra que um dia foi também furacão, muito menos de que também já foi outro ser humano. Não se lembra de nada do que disse, não se lembra que já foi feita de sal, não se lembra que brincou com o homem. Já o homem padece do problema contrário: não esquece o furacão, não esquece a mulher, não esquece o sal. Não esquece o ballet fundamental que o fez correr ao encontro do olho do furacão. Olha o sólido não com ódio, mas com tristeza e, sobretudo, pena de ver uma vida tão bonita sendo desperdiçada, se conformando em um espaço tão pequeno onde – em outras condições - haveria de nascer tanta beleza, tanta riqueza. Mas não nasce nada em um lugar tão frio - a não ser rancor e frustração, o que, como não poderia deixar de ser, o sólido tentou atribuir ao coração do homem. Também pudera: o gelo vive em frente ao espelho e se preocupa mais com a imagem projetada, exterior, do que com o que existe de mais íntimo dentro de si mesmo. Para isso sempre utiliza espelhos esféricos achando que todos ao seu redor o vêem de maneira deturpada, quando por vezes é justamente o gelo quem deturpa sua imagem, enxerga o que quer – e o que não quer. E nisso o mesmo gelo deixa de se dar conta que bem no fundo ainda existe movimento, ainda existe beleza. Ainda está tudo lá – apesar da rigidez. O homem – idiota – sabe disso, ou pelo menos quer acreditar que existe algo para além do frio. Mas este é apenas um homem qualquer, com defeitos, medos, fraquezas, paixões e angústias e não o Super Homem de Nietzsche, esse sim o par adequado para toda a perfeição reticular do gelo. Talvez se esse Super Homem existisse, o gelo pudesse finalmente viver seu insípido conto de fadas – mas provavelmente tudo terminaria no exato momento em que o Super Homem resolvesse abrir a boca e se opusesse ao juízo excepcional do meritíssimo sólido. Pena que o gelo não percebe que sua intransigência o torna mais gelado, mais morto. Um gelo que sente, mas não tem olhos, nem ouvidos, nem língua, nem nariz, nem pele. Apenas sente, o que significa que nada sente. Pois se o gelo sentisse de verdade, com todos os sentidos, em vez de ofensas ele talvez conseguisse enxergar o que existe dentro das palavras, olhando nos olhos das palavras. Se ele sentisse de verdade, ele poderia sentir as palavras em vez de as denegrir. Mas quando vê o homem, o gelo sente: pensa e julga sem sequer se preocupar em olhar nos olhos. E tudo que verá mais uma vez é uma grande ofensa, num mundo em que tudo que não é gelo o ofende – quando não se dá conta que a ofensa de verdade está exatamente presente na maneira como ele olha para si mesmo, refletido. É engraçado, mas não tem graça nenhuma.

sábado, 28 de março de 2009

Problemas.

Problema meu se eu não sei morrer se eu não
Sei viver, se eu cansei de crer se eu não
Sei tocar sem cortar você

Problema meu se eu só sei julgar, se eu não
Perceber que eu errei o ar e então
Respirei você sem saber parar

Em quem você acreditou pra me declarar tão bom?
Que orgulho há em descobrir que não
Que alegria há em conhecer quem sou
Só pra depois contar que sempre desconfiou
Sempre desconfiou

Problema meu se você cansou e deitou
Com outros mais nem se preocupou somos pais
Problema é meu eu quis ver o gol

(Problema Meu, Violins)

***

O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso.

(O Pior, Mário Quintana)

***

Amor e restos humanos,
Depois do fim,
A construção já estremeceu
Maldade se faz assim,
Ou pior: restos de amor de um lado só

Sinto não sentir
Mais que um abismo entre nós

O grande jogo de escolhas a vida
Poderia se chamar: vida
Certas verdades saltam da boca,
Certas maldades não têm fim

Sinto não sentir
Mais que um abismo entre nós

(Amor e Restos Humanos, Wado e Realismo Fantástico)

***

Por que é desaconselhável perder a cabeça? Porque então a gente é sincero.

(O Ofício de Viver, Cesare Pavese)

sexta-feira, 27 de março de 2009

Corda Bamba.

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

(Poema em Linha Reta, Álvaro de Campos)

quarta-feira, 25 de março de 2009

Alive.

It's a war on war
It's a war on war
It's a war on war
It's a war on war
It's a war on war
It's a war on war
It's a war on war
There's a war on
You're gonna lose
You have to lose
You have to learn how to die

Let's watch the miles flying by
Let's watch the miles flying by
You are not my typewriter
But you could be my demon
Moving forward through flaming doors
You have to lose
You have to learn how to die
If you wanna be alive

O.k.

You have to lose
You have to lose
You have to learn how to die
If you wanna be alive

You have to die
You have to die
You have to learn how to die
If you wanna be alive

(War on War, Wilco)

Uma barata.

Só pode ser idiotice mesmo. Não tem outra explicação continuar a gostar de uma pessoa apesar. Apesar da loucura, apesar do cinismo, apesar da brincadeira, das lições de moral, dos álibis. Apesar do vômito. Apesar do peso. Não tem como desconstruir o que é: vai, mas volta. Inevitavelmente.

Quando se gosta, quando se ama, não tem como se utilizar subterfúgios. Todas as fugas são sempre fracassadas, talvez por uma questão de gravidade: você joga para cima, mas sempre desce. Você tenta expulsar, maldizer, blasfemar, odiar, mas não adianta. Apesar de todos os apesares, permanece. O que foi feito para destruir, destrói.

Claro que amor tem a ver com destruição. Óbvio. Não apenas a mais evidente que o termo sugere. Mas também com as transformações que a destruição invariavelmente gera. Pode parecer idiotice e até não deixa de ser. Porque a bomba explode, mas os efeitos persistem. Não há mais cercas.

Eu penso em você todos os dias, sistematicamente, nas mais diversas circunstâncias evocando os mais distintos pretextos. Eu sinto ódio, mas um ódio enorme justamente por não conseguir te odiar. Porque eu sei que o que existe aqui é sólido demais para voar pelos ares. Fica e mais nada.

Pode ser a maneira mais errada de amar. Pode ser a menos digna. Só que ainda assim, a base continua intacta: é amor. É, é paixão, é desejo, é vontade, é necessidade, é falta, é saudade. Tudo isso misturado em proporções desproporcionais que se transformam numa energia completamente avassaladora.

E daí se eu grito? E daí se seu grito? E daí se eu choro? E daí? Eu grito, choro, esperneio, me indigno, não me conformo. Quem dera fossem meras palavras. Pretensas palavras. Palavras ocas e escrotas. Quem dera. Quem dera fosse só saudade. Isso mesmo, fosse só saudade-palavra, significante vazio. Mas o problema é que a coisa está fora da palavra. É que essa coisa sequer precisa dessa palavra para existir e atormentar. É que essa coisa existe além e aquém da palavra. Atravessa.

Não sei escrever sobre o que eu não sinto de alguma maneira - o que é um grande problema. Minha imaginação é do tamanho da minha vida, quero dizer, completamente limitada, pequena, diria até inútil. Tão inútil quanto haver de sentir o que sinto e que eu poderia listar indefinidamente aqui - e no entanto isso não daria dimensão nenhuma do que existe por trás dessa barba, desse óculos, desse coração que tenta aparecer em cada uma dessas letrinhas.

É, o amor... Dizem que falar sobre ele é deixar de amar. Pode até ser, mas eu não acredito nisso! Porque é o dizer que reforça o sentir. É no abraço mútuo do dizer e do sentir que ele se constrói. E se eu digo é tão somente porque sinto. E se eu sinto é tão somente porque digo. Sim, é amor. Essa coisa inexplicável, indefinível, indecifrável que aglutina tantas abstrações e tantas expressões sensoriais que não conseguiriam jamais caber nessa palavrinha de quatro letras. Mas que mesmo assim são amor.

Aquela coisa besta de querer saber, de querer estar junto, de querer bem, de querer querer. Do coração disparar, do estalo, do sorriso bobo no canto da boca sem motivação aparente – e precisa? E também de sonhar e ter pesadelos. Porque o oposto da magia também se aplica e é verdadeiro. A busca pode se limitar a busca e aí falta, afeta, corrói. Depende da face. Depende sempre da face, da facilidade, da dificuldade.

E quando tudo tem que ficar guardado a sete chaves? É aí que mora o desespero. O de ter que esconder. Porque a bola de neve vai crescendo, crescendo, crescendo, crescendo até explodir. Porque uma hora, de alguma maneira explode, seja para dentro, seja para fora. Só que o amor fica. Não desaparece com a explosão. Uma barata que permaneceu depois que todo meu universo foi engolido por uma forte radiação nuclear. E se manteve intacta.

terça-feira, 24 de março de 2009

Um Diário.

24 de abril de 1936.

É preciso já ter sentido o anseio da autodestruição. Não falo do suicídio: gente como nós, apaixonada pela vida, pelo imprevisto, pelo prazer de “narrá-la”, não pode chegar ao suicídio senão por imprudência. Além disso, o suicídio aparece agora como um daqueles heroísmos míticos, uma daquelas fabulosas afirmações de dignidade do homem diante do destino, que são interessantes sob forma de estátuas, mas nos deixam na mesma.

O autodestruidor é ao mesmo tempo um tipo mais desesperado e utilitário. O autodestruidor se esforça por descobri em si todas as mazelas, todas as abjeções, e por favorecer essas predisposições à aniquilação, procurando-as, inebriando-se e deleitando-se com elas. O autodestruidor é, afinal, mais seguro de si que qualquer vencedor do passado, pois sabe que o fio do apego ao amanhã, ao possível, ao prodigioso futuro, é um cabo mais forte – ao se dar o último repuxo – que uma fé ou integridade qualquer.

O autodestruidor é, sobretudo, comediante e senhor de si. Não deixa passar a oportunidade de sentir-se e provar-se. É um otimista. Espera tudo da vida, e vai-se afirmando para reproduzir, ao toque das mãos do futuro, os sons agudos ou significativos.

O autodestruidor não pode suportar a solidão.

Mas vive no perigo contínuo; de ser surpreendido pelo anseio de construção, de organização, um imperativo moral. É então que sofre sem tréguas, podendo até vir a matar-se.

É preciso observar bem isto: em nossos tempos o suicídio é um modo de desaparecer, comete-se com timidez, de modo silencioso e comprimido. Já não é agir, é padecer.

Será que ainda há de voltar ao mundo o suicídio otimista?

Somente o artista que, através da tragédia vivida, já estiver sutilmente estendendo seus fios construtivos, que, numa palavra, já estiver em processo de incubação criadora, poderá exprimir uma tragédia interior de forma artística, para fins de catarse. Não é possível que a tempestade sofrida com loucura seja seguida de libertação por meio de uma obra, sob pena de suicídio. Tanto que os artistas que realmente se mataram devido a contingências trágicas costumam ser cantores superficiais, diletantes de sensações que em seus cancioneiros jamais fizeram qualquer alusão ao câncer que os ia roendo lá fundo. Por aí que se aprende que o único jeito de escapar do abismo é encará-lo, medi-lo, sondá-lo, descer até ele.

Sofrer injustiça traz um desconsolo tonificante – como a manhã de inverno. Revigora o fascínio da vida, segundo nossos mais ciosos desejos; devolve a sensação de nosso valor diante das coisas; adula; enquanto sofrer por mero acaso, infelicidade, é deprimente. Passei por isso e gostaria que a injustiça e a ingratidão tivessem sido maiores ainda. Isso é que se chama viver e não ser precoce aos vinte e oito anos.

Pela humildade. É tão raro, porém, sofrer uma boa injustiça total. Nossos atos são muito tortuosos. Em geral, sempre se descobre que também temos alguma culpa, e lá se vai a manhã de inverno.

Não é só um pouco de culpa, é toda a culpa, não há escapatória. Sempre.

O fato de a facada vir como brincadeira, como passatempo, por parte de pessoa leviana, não abranda a dor lancinante, torna-a mais atroz, levando a meditar sobre a casualidade do ato e sobre a responsabilidade pessoal de quem não previu a queda.

Imaginando que seria um consolo saber que quem feriu está se consumindo em remorsos, que dá importância ao fato? É um consolo que só pode nascer da necessidade de não estar sozinho, de estreitar vínculos com o eu de nós próprios e de outros. Além disso, se a tal pessoa sofresse remorso por ter atormentado não a mim, em particular, e sim a um homem enquanto criatura somente, será que eu havia de desejar esses remorsos? O que é preciso, portanto, é que se reconheça, se lamente e se ame a mim próprio, não ao homem que há em mim.

E será que não se abre espaço para outra tortura, duradoura, ao lembrar que a pessoa que feriu não é leviana, irresponsável nem superficial? Ao lembrar que ela é sempre séria, compreensiva, composta, e que somente em meu caso veio a brincar?

Essa pessoa além de não sofrer remorso, nos ter atormentado, a mim em particular, sente-se até alegre, justamente no meu caso particular. Só haveria um modo de julgar humana esta situação, mas eu me sinto na situação oposta. A coisa está cada vez melhor.

(O Ofício de Viver, Cesare Pavese)

Nada.

- Por que... Por que você me espia?
- Porque eu te amo.
- (Risos)
- É verdade, eu te amo.
- E o que você quer?
- Não sei.
- Quer me beijar?
- Não.
- Quer vir... Quer fazer amor?
- Não.
- Quer ir embora comigo para os Lagos ou Budapeste?
- Não.
- Então, o que quer?
- Nada.
- Nada?
- Nada.

(Não Amarás, Krzysztof Kieslowski)

Será que alguém deseja um amor que basta em si mesmo e não exija nada em troca? Acho que não.

Uma cena em uma cena.

Mais uma daquelas cenas que irrompem diante de você e te deixa totalmente nu, sem reação. Foi exatamente isso que ocorreu hoje quando cheguei à Fafich, por volta das 8:15h. Detalhe: em condições habituais, eu estaria cruzando o saguão do segundo andar – lugar do desenlace – apenas por volta das 9:15h. No entanto, por conta de uma reunião tive de sair mais cedo e, conseqüentemente, pisar naquele local exatamente naquele horário, como se aquela cena estivesse esperando ansiosamente pela minha presença.

Na verdade, não havia absolutamente nada de mais, como nos momentos mais marcantes de nossa vida. Não disse bonito, porque não era esse exatamente o caso em questão. Alguns até enxergariam beleza, mas era, na verdade, um sentimento de outra natureza que se sobrepunha e invadia. Estava rumo ao terceiro andar, onde me encontraria com a minha professora orientadora por volta das 8h, quando de repente vejo uma menina – escondida - chorando enquanto falava ao celular. Não qualquer choro. O rosto já estava vermelho, o corpo encolhido. O lenço já não era suficiente para um álibi.

Não era qualquer choro, como disse. E não apenas por ser uma pessoa que conheço – embora ela não me conheça. A questão é justamente a materialização da dor. É aquele choro que interpela quem está ao redor, que fere tanto aquele que chora quanto o que, de fora, observa. Não me contive: zanzei ao redor dela, como quem queria fazer algo e simplesmente não conseguia. Sentei-me no banco em frente, fingindo ler apenas para de alguma maneira tentar me fazer mais próximo – uma proximidade idiota, admito, porque ali eu não era absolutamente ninguém. A esta altura, a reunião era o de menos. Já não fazia mais sentido subir diante daquele drama oculto.

É tão difícil se sentir impotente ao participar de uma comunhão invisível. Não é a primeira vez que me pego agindo de tal maneira desengonçada diante de um fato de mesma natureza. Um incômodo que não é seu, mas ainda assim te penetra, persegue e incomoda de uma maneira tal que te paralisa, mortifica, remete a.

Como cena puxa cena, não por acaso as lágrimas de Thereza me fizeram recordar outra, ficcional, que retrata com maestria esta sensação. Trata-se de um fragmento pontual do filme ‘Não Amarás’, do diretor polonês Krzysztof Kieslowski. Num dado momento da película, Tomek, o jovem protagonista da trama, se corrói inteiramente ao observar por uma luneta que a mulher por quem está apaixonado está sofrendo bastante. Condoído, perde completamente o sono. Fica inquieto. A mãe de seu amigo, mulher com quem mora, notando a movimentação de Tomek o chama para conversar. Notadamente angustiado ele adentra o quarto dela como quem precisa dizer urgentemente algo que o perturba e não sabe a melhor maneira; como quem procura desesperadamente por uma resposta que não existe. Eis então, que surge um daqueles diálogos econômicos, mas que ao contrário do que poderiam fazer supor, longe de ser pobre, condensa com tal maestria toda a força emotiva da cena.

- Por que as pessoas choram?
- Não sabe? Nunca chorou?
- Uma vez há muito tempo.
- Quando te deixaram?
- (...)
- As pessoas choram por vários motivos. Quando alguém morre, quando alguém fica só. Quando não conseguem suportar...
- O que?
- Viver. Quando sofrem.
- Pode-se fazer algo para ajudar?

O que fazer para solucionar o que não padece de solução?

Assim Será...

Don't get any big ideas
They're not going to happen

You paint yourself white
And fill up with noise
But there'll be something missing

Now that you've found it, it's gone
Now that you feel it, you don't
You've gone off the rails

So don't get any big ideas
They're not going to happen

You'll go to hell for what your dirty mind is thinking

(Nude, Radiohead)

segunda-feira, 23 de março de 2009

Por acaso...

Pensar que tudo isso se deu por conta de uma simples pasta de dente soa realmente inverossímil, menor. Mas... foi! Eu sempre me pego pensando nesses detalhes: ‘se não fosse pela pasta de dentes, não teria sido; não haveria deslocamento algum, desencontro do ordem nenhuma; minha vida teria agora seria diferente’. Só que, oras bolas, naquela infinidade de possibilidades a que resolveu de acontecer foi justamente esta. Uma escolha involuntária – e quais escolhas, no fim de tudo, são totalmente voluntárias? Porque há sempre nelas um pouco do imprevisível embutido. Aquela-coisa-da-surpresa-que-oras-surpreende-por-ser-surpresa! Sim, vez por outra tautologias também servem para explicar muita coisa! E foi exatamente isso o que ocorreu.

‘Eu acho que já estive por aqui antes’. Aquela sensação abstrata tão comum àquelas que ficaram eternizadas sob a transposição lingüística ‘déjà vu’. Estranho, é fato, até mesmo por parecer coisa da minha cabeça e só. Só que não era, ou então começou sendo e depois, naquele momento, simplesmente deixou de ser. Uma pecinha de nada e pronto. Foi na volta. Aquela coisa displicente, desmedida, aleatória. Sabe quando ‘meio-sem-querer’ você bate o olho, volta ao caminho e de repente o estado de atenção foca aquele ponto inicial de uma tal maneira que te deixa completamente incrédulo? Eu sei porque foi isso que eu senti naquele instante. ‘Eu conheço esse cara!’. Mas será mesmo que se trata de quem eu imagino que seja? Se havia alguma dúvida, a placa da loja era a prova cabal de que eu não estava delirando.

Claro que, pra variar, na hora fiquei completamente sem reação. Ou, como costumo dizer, travado. Primeiro pelo impacto da circunstância – que, pasmem, poderia ter sido infinitamente pior se. Segundo, porque de nada adiantaria. Embora eu me lembrasse dele perfeitamente – e olha que nem chegamos a passar tanto tempo juntos assim, mas o suficiente para que tudo viesse a tona naquele pequeno intervalo – ele não faria a menor idéia de quem eu era. E, verdade seja dita, isso pouco importava. Não havia o que ser dito. A cena já bastava nela mesma. Aconteceu e ponto – final.

Pensar que tudo isso se deu por conta de uma simples pasta de dente soa realmente inverossímil, menor. Mas... foi! Afinal de contas, nada mais inverossímil do que o que é extremamente verossímil.

Tudo.

Se comporte ao menos
Ah, por favor
Você está causando constrangimento ao diabo
Saiba respeitar quem te deixou surdo
Quem se apegou a tudo e não amou nada
Saiba respeitar quem organizou o mundo
E te deu o direito de não ser nada
Pra mim você só deve água
Só se deve nua, só me deve mágoa
Como quem atua na grande área
Onde não cresce grama
Longe só cresce falta
Quando a felicidade vem como a um bêbado
É imediato
Firma seus pés no chão como um bêbado
Sobre um salto
Mas eu me equilibrei

(Constrangimento ao Diabo, Beto Cupertino)

domingo, 22 de março de 2009

Dívida.

Bem, Tuxa querida, estou lhe devendo algumas respostas, certo?

Vamos a elas então!

Antes de mais nada, perdoe-me pela ausência. De modo algum foi por indiferença que não lhe respondi.

Feitos os devidos esclarecimentos, fico eu bastante feliz por você estar prestes a completar 12 anos no próximo dia 30 de março! Porque assim ou você começa a olhar para alguns pontos luminosos levando em consideração também a minha óptica – afinal, em algum momento eu já disse que estacionei nos 12 anos e que isso de alguma maneira determinou tudo que aconteceu depois em minha vida; ou então você se torna uma menina birrenta e a gente pode se engalfinhar numa boa, como duas criancinhas pequenas e briguentas! De qualquer maneira, seja 'a' ou 'b', eu te desejo o que eu costumo desejar a quem eu conheço e gosto: muita saúde, paz, felicidades, sorte e amor em mais um 'ciclo simbólico' que se inicia em sua vida.

Continuando, o mais engraçado disso tudo, Renata, é que você parece dominar todo o conhecimento produzido pela vida humana no que se refere ao que é ‘certo’. Mas tudo bem, fica fria porque não sou somente eu o 'egocêntrico': você também é. E eu te digo que todo mundo no fundo no fundo também está do nosso lado da linha. Todos de uma maneira ou de outra se fecham em torno de si mesmos, ainda que alguns se proponham minimamente a efetuar vez por outra alguma relativização ou concessão. Lembra de como a senhorita se colocou no centro quando eu mandei aquele trecho do Efraim? Deixa eu te te relembrar:

'Imagens que (EU) já vi claramente, não em prosa ou poesia, mas na vida, e que mostram realmente que o que importa entre duas nuvens, duas pedras ou duas estrelas é o espaço vago entre elas...'

Como se a sua vida - e apenas ela - fosse um critério de validação. Como se eu tivesse apenas colocado tal trecho por 'literatice', pura abstração! Você viveu, eu apenas vi num livro e postei. No máximo, no máximo, fruto da minha imaginação.

Diante disso, Tuxa querida, eu realmente devo me recolher ao meu insignificante lugar e agradecer por todos os seus ensinamentos de vida – superiores, é claro - afinal, o tom de todo mundo que fala comigo é esse, daquele que ensina, como se já tivessem superado os mesmos problemas dos quais padeço. É realmente um absurdo isso! Primeiro, porque elas, apesar da intenção explicita de ensinarem – e, portanto, de condenarem também -, não assumem isso, se escondendo sob uma aura de neutralidade aparente. Isso fica perceptível na maneira como se colocam os problemas, as questões e as belíssimas soluções. Há modos e modos de dizer. Eu fico pasmo ouvindo explicações idiotas que estas pessoas dizem, mas que estão tão boas que elas sequer as utilizam em suas próprias vidas! Se fosse tão bom assim, tão eficaz, se tivesse realmente resolvido... Antes de prosseguir, eu não posso deixar de citar um trecho sensacional do Cioran a este respeito:

Quem chegasse, por uma imaginação transbordante de piedade, a registrar todos os sofrimentos, a ser contemporâneo de todas as penas e de todas as angústias de um instante qualquer, esse – supondo que tal ser pudesse existir – seria um monstro de amor e a maior vítima da história do sentimento. Mas é inútil imaginarmos tal possibilidade. Basta-nos proceder ao exame de nós mesmos, praticar a arqueologia de nossos temores. Se avançamos no suplício dos dias, é porque nada detém esta marcha, exceto nossas dores; as dos outros nos parecem sempre explicáveis e suscetíveis de serem superadas: acreditamos que sofrem porque não têm suficiente vontade, coragem ou lucidez. Cada sofrimento, salvo o nosso, nos parece legítimo ou ridiculamente inteligível; sem o que, o luto seria a única constante na versatilidade de nossos sentimentos. Mas só estamos de luto por nós mesmos.. Se pudéssemos compreender e amar a infinidade de agonias que se arrastam em torno de nós, todas as vidas que são mortes ocultas, precisaríamos de tantos corações quanto os seres que sofrem. E se tivéssemos uma memória milagrosamente atual que conservasse presente a totalidade de nossas penas passadas, sucumbiríamos sob tal fardo. A vida só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória.

(A Chave de Nossa Resistência, Breviário de Decomposição)

Retornando ao ponto, o fato é que nada resolve porque no fim das contas, nada se resolve. Absolutamente nada. Cria-se a lenda de que a vida é um estado de superação, quando inevitavelmente somos sempre uma soma de tudo o que vivemos. Quero dizer, não há como nos livrar dos nossos passados, dos nossos problemas. Eles vem com a gente sempre. No máximo, com o tempo algumas questões de nossas vidas amenizam, mas jamais se resolvem completamente. Sempre fica algum resquício, algum vestígio. Só que admitir isso é sempre difícil. Admitir que não tem como se livrar do que foi é difícil porque parece que assumindo essa condição não existe a possibilidade de um futuro, quando uma coisa não tem absolutamente nada a ver com a outra.

De repente, vejo uma porção de contradições, como, por exemplo, a sua de criticar meu egocentrismo e no instante seguinte, cair no mesmo problema. Não tô aqui pra questionar ou condenar as contradições de ninguém, até porque se contradizer é inevitável e eu invariavelmente caio bastante em contradição. Mas o problema é justamente esse: condenar exatamente a mesmíssima coisa que se faz! Esse lance do ‘dois pesos, duas medidas’ me aniquila, me mata. Só que o ‘eu’ que condena e faz o mesmo sempre tem uma justificativa não é mesmo? E não importa se é completamente sem sentido porque aos seus olhos é sempre certa, coerente e legítima. A verdade é que é muito fácil arranjar explicação para o que não tem explicação, ou para o que não se quer explicar. Assume-se sem medo o que convém e ponto. Mas sempre se trata de algo muito frágil quando decomposto, quando pensado.

Eis que eu volto ao Efraim. E se eu coloquei aquele trecho, foi porque à minha maneira eu não apenas vivi como tenho vivido esta questão profundamente, em meu íntimo. A ponto de ter reconhecido a existência desses espaços vazios e, por coincidência, no mesmo dia, cerca de meia hora depois, ter me deparado – quase como um ‘destino’ – com o tal fragmento citado. Ou seja: uma vivência tão intensa quanto, suponho, que a sua deva ter sido. E no entanto, eu fui recebido por você como ‘em casa’ – após meu período de total inércia -, com aquele tratamento habitual das flechadas e machadadas por conta de coisa nenhuma. Porque quando eu digo que achei meu texto bonito é porque ele diz algo de mim e que ficou cristalizada de uma maneira tal que me faz gostar de algo que eu fiz, o que nem sempre acontece. A questão, Renata, é que eu não sou adivinho, muito embora as pessoas pensem que eu deva saber o que se passa na cabeça delas e responder da forma como elas gostariam. Logo, se falo algo que não estava no script, tentam me nocautear – como você mesma tentou. Aí viro da noite pro dia o ser mais vil de todo o universo! Como se dentro de cada um não houvesse nenhum vestígio de sujeira e como se toda sujeira fosse uma coisa só – que convém a quem a define enquanto tal. E sim, sou completamente imperfeito, medroso, fraco. Não nego isso de modo algum, até porque meus textos falam dos contornos desses pontos, dos meus problemas todos com questões genéricas como amor, aceitação, sentido, estima. Você que lê um pouco sobre mim, mais do que muitos, tem contato com meu universo mais profundo, com minhas dores e angústias, bem como momentos de felicidade, surpresa – positivas, nesse caso - e revelação. No entanto, do modo como colocam, parece que eu sou o errado em todos os casos. Se eu não me posiciono de maneira explicita, deveria me posicionar; se eu me posiciono, faço o que não deveria ter sido feito. De volta ao beco. Metralhadoras disparando em todas as direções possíveis contra o ser mais idiota e estúpido do mundo: eu. E sim, de condenação em condenação – despropositada e sem sentido – eu vou ficando mais e mais acuado. Desde os doze anos, eu fui ficando mais acuado, justo porque todas as minhas tentativas foram recebendo apenas reprimendas de todos os tipos, sem que fossem esclarecidas alternativas ou dadas explicações coerentes e concretas. E, oras, se eu sou a única recorrência diante de todos os meus fracassos, por mais que não seja exatamente o errado – ou o totalmente errado - em todas as situações, a impressão que fica é sempre essa. Talvez por conta disso uma poesia como o ‘Poema em Linha Reta’, do Álvaro de Campos, seja capaz de me exprimir tão bem. Ou mesmo a letra de ‘Problema Meu’, do Violins. Pareço no fim das contas um objeto exótico que no início atrai, mas tem um prazo de validade determinado.

Em quem você acreditou pra me declarar tão bom?
Que orgulho há em descobrir que não
Que alegria há em conhecer quem sou
Só pra depois contar que sempre desconfiou
Sempre desconfiou


E desse ponto em diante, explicações inexplicáveis para justificar o que não tem fundamento. E cansa demais isso, devo confessar. E eu me pergunto a todo instante o que se pergunta o eu-lírico do ‘Poema em Linha Reta’:

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Só que a diferença é que eu não sou uma voz poética, discursiva. Por trás dessas letras, acredite se quiser, bate um coração. E tanto bate, que ele te responde, te escreve e bem ou mal interage com você.

Já chegando ao final, eu tenho apenas de dizer que em sua última mensagem seu comentário sobre o ‘Técnicas de Masturbação Entre Batman e Robin’ de alguma maneira me soou presunçoso, porque no fim das contas, qualquer livro tem seus altos e baixos, inclusive os melhores. Nada específico. Ainda bem que tem pontos altos e tocantes, não? Porque em geral é isso que distingue uma obra em nossa ‘memória afetiva’. Posso apenas dizer, enquanto leitor, que gostei bastante do livro, que a leitura além de prazerosa me foi tanto gratificante, elucidadora, não de um ponto de vista meramente racional como muitos suporiam, mais de querer adentrar nesse mundo tão complicado e vasto quanto o do relacionamento entre pessoas. E o sentido da vida, de maneira geral, é o que liga corações dispersos e faz, entre eles, produzir alguma faísca que torne a comunicação possível e ao mesmo tempo necessária. Viver tem a ver com necessidade.

Acho que era isso o que tinha a dizer, ‘Joaninha Francesa’.

Um beijo e se cuida.

Não Comerás.

Nunca pensei que uma simples ida a lanchonete poderia render um aprendizado tão profundo sobre a vida. Parafraseando o meu queridíssimo Álvaro de Campos em Tabacaria, eu posso dizer com precisão que ‘os manuais de etiqueta todos não ensinam mais do que uma ida à lanchonete’.

A Cena

Adentramos eu e o Tio Beto no recinto e nos direcionamos a uma mesa. Chega, então, o garçom com o cardápio em mãos.

- Quanta opção, não é mesmo?
- Pois é! Queria voltar aos tempos do Ford T, em que os carros estavam disponíveis em quaisquer cores contanto que fossem pretos!

O garçom, já impaciente, volta uma, duas vezes, sugere e nada. Percorremos todo o cardápio com o benefício da dúvida. Eis que, então, lá pela terceira incursão do nosso querido garçom, finalmente chegamos a um consenso.

- A gente vai querer esse aqui de costelinha!

Eis que o garçom amigavelmente retruca:

- Pessoal, hoje infelizmente a gente não tem costelinha...

E mais uma vez procura a indução:

- Mas tem o modelo X que é o melhor da casa, ainda mais se vocês trocarem o hambúrguer Z pelo Y. Vocês não vão se arrepender! É o sanduíche que mais saí aqui!

Vencidos pelo cansaço, depois do garçom tentar de todas as maneiras possíveis nos convencer das qualidades de tal prato, aceitamos a sugestão.

- Então vamos de X mesmo.

Próximo passo: a bebida.

- E para beber, o que vocês vão querer?
- Eu vou querer uma coca cola.
- E eu vou querer um suco de abacaxi com hortelã.
- Suco de abacaxi só tem de caixinha.
- Ah... Então me vê uma limonada suíça, por favor.

O garçom anota o pedido e volta para o balcão. Alguns minutos depois ele retorna com as bebidas. A coca cola estava quente. Já a limonada suíça não pegava doce de jeito nenhum. E olha que naquela altura o Tio Beto já estava no quarto sachezinho de açúcar! E o quarto nem foi o último. Sorte ele não ser diabético. Mas, ok, afinal, ainda havia o sanduíche pela frente. Não tardou muito e lá estava o sanduíche diante dos nossos olhos. Lindo e perfeitamente arrumado, bem que se diga!

Enquanto eu preferi iniciar o lanche pelas batatas, Tio Beto tirou os palitinhos que seguravam o recheio dentro dos pães e foi direto ao pote. No mesmo instante que dava a sua primeira mordida, eu tentava compreender em sua expressão facial indícios que atestassem o sabor do petardo. Não percebi lá tanta empolgação e por isso perguntei ‘e aí, Beto?’. Ele, por sua vez, hesitou. E hesitação não costuma ser um bom sinal. Não era: ‘é...’. Balançou a cabeça, até chegar a um veredicto: ‘normal...’. E completou: ‘não é lá tão apetitoso quanto parecia...’.

Eis que o garçom se aproxima. Pressinto a cena. Tarde demais:

- E aí, o que achou do sanduíche?
- Booom.

Antes mesmo do ‘booom’ sair da boca do meu tio, eu comecei a rir. Limdo! Simplesmente limdo!

Terminei as batatas. Era hora de tirar a prova e saber se tal sanduíche me era ou não tão apetitoso quanto parecia, ou ao menos, quanto o seu preço sugeria. Comecei pelo alface, que considero insosso e que, não raramente acabava por deixar pratos realmente gostosos sem sabor tamanha sua apatia sensível. Sem alface, o caminho estava livre. Porém, aquela sensação insossa ainda se mantinha: não havia absolutamente nada demais no hambúrguer. Nada que justificasse um ‘auê’ especial ou um preço acima da média. Faltava algo...

‘Encheu mas não preencheu’ foi a sensação que ficou no ar quando do fim da refeição. Sensação esta muito mais cara do que a própria conta da lanchonete.

Digressões

Foi justamente diante daquela vasta quantidade de opções de hambúrgueres e sanduíches que, entre mim e o Tio Beto, surgiram algumas digressões e paralelos acerca da 'lanchonete da vida'. Praticamente uma filosofia de boteco sobre o cotidiano. Nada muito planejado, é verdade, mas cuja seqüência de eventos mostrada acima apenas servia para ilustrar e ampliar nossas discussões.

Embora quem freqüente este blog já deva estar familiarizado com os meus temas habituais, nunca custa reforçá-los e trazê-los novamente à baila. Sendo assim, o cardápio simboliza a própria dificuldade que consiste em escolher. A possibilidade de escolha implica necessariamente em uma perda. Por isso a dificuldade. Obviamente há graus e graus de perda e que a dificuldade de se escolher entre um sanduíche ou outro está muito abaixo nesta escala de valores, até porque pode-se voltar ao local em outra oportunidade e se consertar um eventual equívoco. Mas, e quando isso não é possível? Tudo bem que na prática, mesmo a escolha de um mero sanduíche é algo único, pontual e circunstancial e, portanto, irreversível, pois aquele contexto não se repetirá, embora seja passível de 'reparos' no futuro. Mas nem sempre há a possibilidade de um futuro. E quando ‘a primeira vez é sempre a última chance’? A escolha é geralmente a fonte primeira de toda angústia que acaba por nos atravessar ainda mais quando se tem a consciência que entre uma ação e uma hesitação, pode haver uma mudança completa não apenas na sua existência, mas também reflexos em outras pessoas numa escala nunca dantes imaginada. Escolher entre o que se quer e o que se acha certo costuma sempre ser um dilema que parte da mesma base que está associada à dificuldade de se posicionar diante de um cardápio.

Eis que, depois do benefício da dúvida, você escolhe. E ai... é simplesmente surpreendido com a notícia de que não tem o que você pediu. Ou então quando você tem certeza e pede, a opção não está no cardápio; ou, mantida a certeza, ela apenas e tão somente não corresponde aos seus anseios. Uma situação aparentemente banal como uma costelinha que, embora no cardápio, não estava a disposição no dia, um suco que não estava no cardápio e uma coca-cola quente. Tudo em volta da questão do desejo, de uma busca por um prazer, mesmo que efêmero, por uma surpresa. De qualquer modo eu não poderia negar que houve surpresa, afinal, surpresa é sempre um módulo: nunca se sabe o sinal. A ruptura pode ser sempre positiva ou negativa, e quando está relacionada a esta última idéia recebe o nome singelo de frustração. Sim, a coca cola que você esperava estar no quarto estado da matéria, abaixo do gelo, na verdade estava quente. Ou a pessoa de quem você esperava bom senso e compreensão, de repente ficou fria, gelada, no quarto estado da matéria. Parecem paralelos idiotas, mas explicam com exatidão todo o fundamento de uma vida. Por vezes, diante da dificuldade, resta-nos ceder e acatar a escolhas pré-estabelecidas. ‘Entrar no esquema do garçom’, quero dizer. Não deste, necessariamente, mas no de tantos outros ‘garçons’ que estão distribuídos em cada esquina de nossas vidas – e que sim, sejamos justos, ora erram, ora acertam. Lembremo-nos sempre que mesmo optar por não optar é também uma escolha e negar isso seria má-fé.

‘Nem tudo que reluz é ouro’. Um ditado batido, mas que guarda consigo grande sabedoria. Aquela velha falta de sincronia entre o invólucro e o ‘produto-em-si-mesmo’. Algo semelhante as American Beauties: uma rosa lindíssima que não tem cheiro, que não tem vida. Um hambúrguer sem gordura trans, que seja. A aparência em detrimento de uma – ao menos suposta - essência. Quando carece, quando falta o principal: vida. É engraçado, porque isso me lembra duas circunstâncias distintas, mas que guardam relação íntima com o assunto. A primeira delas, apenas para ficar ainda no terreno alimentício, atende pelo nome de Barroco. Uma lanchonete simples, diria até eu meio desleixada, que fica em Mariana, cidade história de Minas Gerais. Quem olha para a lanchonete, simplesmente não dá muita coisa. E no entanto, quando você escolhe um sanduíche, de um valor módico se comparado ao ‘cultuado’ Eddie, você reconhece ali algo que não há cá: sabor. Sim, sabor, quero dizer, vida: prazer. Ok, tem gordura trans a dar com pau, mas é essa gordura que entope nossas veias e artérias o que procuramos para nos sentirmos vivos. E sentir vivo é sempre algo fundamental. Uma sensação como quando conheci uma pessoa e, a primeira vista, não havia ali algo que se pode chamar tradicionalmente de beleza. Não era feia, decerto, mas estava, por outro lado, longe do que se comumente chama de linda. E, no entanto, bastaram algumas palavras para que todas as lógicas tradicionais do mundo se invertessem, todos os fundamentos de estética fossem a merda – sobretudo aqueles que norteiam os padrões fundamentais de beleza que a sociedade apregoa e que se cristalizam em eventos insípidos como os 'desfiles-de-moda' – e aquela tal pessoa, sem mais nem menos, se tornasse linda, inesquecível. Tão inesquecível a ponto d’eu repetir sempre esta mesma história por onde quer que eu passe, a quem quer que eu conheça. Porque havia algo de fundamental ali por debaixo daqueles poros, daquela carne, que simplesmente precisava de caminho para aflorar, para reverberar, para sair e atingir o topo, revestir. E é exatamente nisso que reside todo o perigo do mundo. Porque essa beleza simplesmente não vira carne de açougue, não descola, não sai. Porque, como eu não me canso de dizer é nessa beleza que reside a vida, o gosto, o sal – e eventualmente a cal.

A mesma cal que ficou por queimar caso Tio Beto tivesse se atrevido a transgredir as normas da etiqueta social falando, digamos, a real impressão dele diante do tal hambúrguer. E no fim das contas tudo é uma questão de atrevimento e, em geral, a comodidade é o caminho mais fácil. Ainda mais quando se percebe que quebrar a cara seguidamente dói e que ainda que dor seja quase que sinônimo de vida – embora muitos disso discordem – não nos esqueçamos que a dor realmente dói, deixa marcas e paralisa. Conforme já disse recentemente, falar o que realmente se pensa é sempre um gesto de atrevimento e todo atrevimento tem seu preço, tem suas sanções previstas no código sócio-afetivo. Além do mais, o que faria o garçom caso recebesse a negativa como resposta? O que estava feito, estava feito e pronto. Irreversível. Ouvi um dia me dizerem que crescer rimava com desistir e minha eterna alma adolescente teimava em não acreditar. Mas mais do que desistir, ao que me parece, crescer rima é com resignar. Acreditar nunca é o suficiente quando se percebe que o tudo serve apenas de invólucro para ocultar o nada que todos, a todo custo, tentam colocar para debaixo do tapete. Quantos antes de mim já tiveram as mesmas aspirações de mudança, quantos acreditaram verdadeiramente que podia ser diferente, que o script podia se modificar e não obstante a isso, chegaram a conclusão de que toda luta, no fim das contas, é vã. A todo custo tentam oferecer reinterpretações gloriosas a vontade, ao desafio, mas em termos práticos, ninguém quer nada de novo. A novidade sempre ofusca os nossos sentidos e o que desejamos é sempre um porto seguro e conhecido. Para além disso, meras ‘agressões’ – cujos fundamentos não estamos dispostos a discutir. Põe tudo e coloca na panela do destino. Suspende a sua parte na conta. Jogar o jogo, oras!

Pena que a conta é sempre mais cara do que o valor que está anotado no papel.

Sobre crescer...

Você se torna um hipócrita, um mentiroso... Quer parecer forte pra causar uma boa impressão... É ridículo... Vive apenas pra disfarçar o quanto é infeliz...

...

E então fazemos filhos.

(Thom Yorke)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Correspondencia Suicida.

Você parecia estar ali, mas na verdade estava isolado e protegido do mundo. Esse vazio de dor em que você enfia a cabeça nunca vai deixar que você ame alguém de verdae. Você vive para essa porra de vazio... dói muito, principalmente quando penso naquela história de: Porque a ferocidade está num lugar do coração e não nas garras de tigre. Você escreveu, Sérgio. Caralho!

(Técnicas de Masturbação entre Batman e Robin, Efraim Medina Reyes)

terça-feira, 17 de março de 2009

Sobre certas solidões.

XXI

Há entre duas criaturas, entre dois silêncios, entre duas pedras, uma distância, um olho escuro e um relâmpago. O universo viaja muito adentro de si mesmo e se projeta em nós como um sonho. A realidade não são as estrelas mas os lugares vazios entre elas, a realidade não é o globo de Symnes mas o que está fora desse globo. Essa linha por onde se desloca cada dia nossa sombra, esse lugar que recolhe nossas emoções e silêncios, esse credo que não percebemos e que nos oprime, essa mutação sem saída.

Há entre duas criaturas um sopro, um fogo que arde para o interior, uma carícia jamais conseguida, um medo que assuta a si mesmo, um manicômio repleto uma vida que gostaria de se inventar, algo inquietante, abismal.

Há entre duas criaturas uma folha seca, um peixe de cristal, uma coluna de formigas de ouro, uma canção sem voz, um crime, um segredo que não lhe pertence.

(Técnicas de Masturbação entre Batman e Robin, Efraim Medina-Reyes)

***

Uma ridícula lei da vida é a seguinte: não é quem dá, mas quem cobra, que é amado. Ou seja, amado é quem não ama, porque quem ama, dá. E, é claro: dar é um prazer mais profundo do que receber; a quem damos, tornamos necessário, isto é, nós o amamos.

Dar é paixão, quase vício. A pessoa a quem damos transforma-se em necessidade nossa.

(O Ofício de Viver, Cesare Pavese)

segunda-feira, 16 de março de 2009

Educação Sentimental.

Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

(Carlos Drummond de Andrade)

Malbec.

Subterrâneo. Existe mas está oculto, não se deixa mostrar – ou melhor dizendo, não se sabe como dar vazão à(o). Teme-se fornecer acesso à porta de entrada. O mais íntimo e concreto. O emaranhado verdadeiro. Pus. Rosas.

Não foi difícil encontrar ao mesmo tempo tanta admiração e repulsa pelo ‘homem do subterrâneo’, personagem que Dostoievski escolheu para narrar de maneira cínica e ao mesmo tempo tão sensata o seu marcante ‘Memórias do Subsolo’.

Dizer é sempre um gesto de extremo atrevimento. As palavras, mesmo as mais belas e doces, são feitas, invariavelmente, de uma lâmina bastante cortante. A sinceridade, vista por esta óptica, é sinônimo de afronta, afinal, a mesma pode evocar fantasmas que jamais desejariam sair dos porões da nossa consciência. Há algo de insólito nessa idéia que muito me intriga: por que mesmo sabendo disso as pessoas em geral ainda clamam tanto por uma sinceridade quando, na verdade, não a querem de fato? Praticamente uma contradição em termos: ‘se você pede por sinceridade, já não está sendo sincero’.

Entrar na casa não significa descer até o calabouço. Talvez essa dificuldade de entendimento seja a verdadeira raiz do problema. O interior da casa é uma terra segura, cômoda, confortável. Ainda que os quartos ou eventualmente a cozinha vez por outra possam estar desarrumadas, basta passar um paninho úmido, dar uma esfregadinha e tudo está resolvido. Ou melhor: nem é preciso, até porque uma sujeirinha pequena, convenhamos, tem lá seu charme. Profundezas do raso.

Mas ainda assim, mesmo tentando a todo custo viver na superfície, aquela portinha feia e maltrapilha, apesar de posicionada em um lugar estrategicamente escondido, insiste em clamar por atenção. A vontade do verdadeiro pecado original é mais forte do que se contentar com o que se é permitido. Começam os pretextos para se passar em frente àquela salinha secreta. ‘Pode-dizer-tudo-o-quanto-você-sentir-que-eu-jamais-irei-te-censurar’. A senha está correta! Como que num passe de mágica, num verdadeiro ‘shazan!’, a porta se abre...

‘Quando o diabo veio, ele não era vermelho, ele era cromado e disse: venha comigo...’.

Eis o começo do fim: ‘sin-ce-ri-da-de’. O que existe nos subterrâneos de um homem? Existe justamente o fundamento de toda uma vida. Existem paixões devastadoras, existem temores, existem angústias enormes. E sim, existe sujeira, cinismo, vilidade. Mas também há beleza, doçura, carinho. O subterrâneo é um local em que forças completamente distintas e, por vezes, até mesmo contraditórias acabam por entrar em choque e, a partir desse movimento explosivo (ou implosivo, como preferirem), são responsáveis por definir o conteúdo de uma alma. Sim Álvaro, ‘a alma humana é um abismo’. Diante dessa constatação percebe-se que ficar na borda do abismo traz sempre uma sensação incômoda que transita ao mesmo tempo entre a liberdade mais profunda e o perigo de uma queda iminente. A vulnerabilidade de outrem nos torna tão ou mais vulneráveis, o que com certeza é algo muito delicado, para não dizer pavoroso, afinal, fazemos de tudo para não colocar a nossa integridade em jogo. O subsolo é sempre um terreno movediço.

Desvelado o subsolo, a mesma mão que um dia te estenderam é justamente a que se ergue contra você. A alegria de se conhecer o íntimo, apenas para dizer que o tempo todo já desconfiava. Depois que se descobre recolher indícios é tarefa simples. O difícil mesmo é prever e evitar as catástrofes antes que elas aconteçam. Onde poderia, em meio a todo o caos, nascer uma flor exótica, rara, se torna um cemitério de lembranças vivas. Porque o subsolo é o terreno da memória, esse grande diabo que nos torna humanos, raiz primeira e última dos nossos prazeres e dores mais intensos.

‘Indiferente pra mim é o que não destrói’.

O gênio de Dostoievski nos mostra claramente como a literatura se apropria tão bem da vida. Mas ainda assim vale um lembrete aos esquecidos: a vida é infindavelmente maior que a literatura.

Sinceridade é simples, mas quase ninguém quer. E você, deseja realmente abrir as portas de uma alma?

Anatomia poética.

Chega a ser no mínimo inusitado, para não dizer despropositado, quando uma parte tão exótica (ou seria melhor 'erótica'?) do corpo humano como um queixo - sim, um reles queixo - é capaz de expressar tão bem o universo íntimo de uma pessoa, não?

domingo, 15 de março de 2009

Carne trêmula.

Na escada de acesso ao bar, do lado de fora, sentada como quem tateia o que não se sabe muito bem o que é, como quem deseja com os pés descalços ao relento. Não me recordo se chovia, embora houvesse tempestade em um dos céus que circunscreviam o local. Às vezes, a água é apenas um pretexto.

De dentro, eu apenas a observava. O mesmo de sempre, a procura das minúcias, dos pequenos retratos, dos indícios. Nada demais, nada de novo, nada de fundamental. Apenas a velha mania de não conseguir ficar alheio ao que está saindo da terra, ao primeiro vestígio visível.

Era uma noite dentro da noite. Disso me recordo bem.

De repente, o corte na cena. Outros flashes, outras possibilidades e aquele apagamento que desloca o eixo para suspender o espanto para o momento mais adequado, impensável. Distrações, um universo em movimento envolto em uma folhagem rala, esparsa, mas ainda assim suficiente para manter aquela espécie de harmonia tênue.

A câmera volta ao primeiro plano abruptamente. Tão abruptamente, devo confessar, que naquele momento não havia reconhecido o elo. Na mesa ao lado, um incômodo. Embora acompanhada, havia algo como um pedido de socorro escondido por entre movimentos desconfortáveis e uma solidão velada. Eu apenas a olhava tomando aquele velho cuidado para o qual me preparo a anos de não ser notado, um cuidado tão eficiente que por vezes eu consigo atingir a plenitude da invisibilidade. Não neste dia.

Aquela coisa piegas dos olhares que se cruzam. Mas não apenas isso, porque olhares se cruzam e descruzam a todo o momento e entre dois olhares há sempre um abismo, por vezes intransponível. Será? Será mesmo? E não costuma sair disso, dessas perguntas que brotam dentro de duas cabeças e que, no entanto, não ligam as solidões. Mas como já disse, não era apenas isso: o incômodo gerou movimento. O reconhecimento provocou ação. Não minha.

Sentado, não acreditei quando a vi arrumar algumas coisas e rapidamente partir em minha direção. E agora? Sim, tive um momento de pânico. Aquela velha conhecida sensação de não saber o que fazer. Fiquei rígido. Quebrar o silêncio é sempre uma despedida. Novamente, não coube a mim tal tarefa. Verdade seja dita, não entendi muito bem o que ela me dizia. Em parte pelo enorme barulho que tomava o ambiente; em parte porque as palavras que saiam de dentro daquele mistério, de tão urgentes, se atropelavam. Talvez este último fato fosse culpa do álcool. Mas isso pouco importa.

O que importa na verdade, é o que ali se desenrolava, mesmo com dificuldade. Palavras esparsas, sentimentos desconexos para os quais eu apenas assentia enquanto tentava juntar os cacos de vidro dentro de mim. Ela olhava, dizia com convicção, calava. Aquela velha coisa do ‘tenho-que-me-mostrar-forte-mesmo-que para-um-desconhecido’. Só que não tava funcionando, até mesmo pelo fato d’eu ser um (des)conhecido – e talvez essa tenha sido a grande magia.

Disse que tinha terminado um namoro recentemente, que estava sozinha, para no momento seguinte dizer que namorava o baixista da banda. Sugeri ir para a sala anterior do bar, para que pudéssemos conversar melhor. Em vez de ir para tal local, ela apenas se dirigiu para a parte anterior da mesma sala, o que não melhorava em nada nossa comunicação – embora eu a entendesse de uma maneira perfeitamente difusa.

Estávamos em pé a uma distância praticamente – e por vezes realmente - nula. Os corpos se tocavam como quem precisa de um apoio para se manter. Cada um por conta de seus respectivos motivos. ‘A maioria das pessoas gosta do que é fútil, gosta de viver na superfície’. Os cacos de vidro até podiam ter voltado a sua forma normal quando do meu processamento, mas ainda assim não deixavam de cortar.

O semblante denunciava. Não foram poucas as vezes em que as palavras simplesmente não conseguiram sair. Olhos nos olhos: tentava dizer e não conseguia: e isso por si só dizia. E como dizia. E olhava para a mesa: ‘Falando sério, eu tenho cara de quem é namorada? Olha só essas meninas...’.

Sem jeito, como de costume, tentei alguma aproximação singela. Resolvi perguntar pelo nome: enquanto a maioria das pessoas gosta de começar pelo começo, eu gosto de começar sempre pelo fim. Silêncio. Isabel. Sou péssimo para apresentações. Sou péssimo em geral, para relações, para contatos. Meu silêncio corta, minhas palavras silenciam. ‘Eu queria encontrar algum objeto pontiagudo’. Eu havia escutado isso? Não queria ter ouvido.

‘Você vai me esfaquear? Brincadeira’.

Tentei novamente chamá-la para ante-sala. ‘Já vou!’. E parou. E começou a esboçar algo como uma verdade concreta dessas que saem de dentro da gente quando não há mais como fugir. E veio. E eu me sentei em uma cadeira. E ela disse: ‘não posso ficar aqui; meu namorado está tocando’. Voltamos a sala.

Sentamos. O barulho fazendo trilha. ‘Eu adoro o que eu faço. Freud, Lacan, sei de tudo. Eu só queria uma chance, um emprego. Coisa pouca. Eu sei que não é coisa pouca, é muita coisa’. Bem vindo ao mundo real. De repente, um pedido de desculpas inesperado: ‘desculpa por apenas falar dos meus problemas, por não ter deixado você falar’. A minha tentativa de soar empático foi recebida com um soco:

- Fica tranqüila, até porque eu sou melhor ouvinte do que falante.
- Esse é o problema da maioria das pessoas.

Verdade. Doeu porque era verdade, porque ela estava absolutamente certa.

‘Eu queria apenas algum objeto de metal. Você nunca vai ter noção da sensação de ter um objeto de metal entranhado na carne. Eu parei de fazer isso. Não precisava que fosse algo tão profundo, apenas...’. As palavras foram o de menos. A dor estava ali, na maneira como ela sentia a faca imaginária, na forma como procurava extrair alguma espécie de gozo a partir do limite máximo que conseguia suportar. A vulnerabilidade de uma pessoa diante dos nossos olhos é contagiosa. Estremeci – por dentro. Porque por mais que muito do que ela me dizia por diversas vezes já havia feito – e na verdade ainda faz – parte dos meus pensamentos, ouvir isso cristalizado, de fora, tem sempre um sabor mais amargo.

- E você, o que faz?
- Comunicação Social.
- Você ta fodido. Não tô querendo ser pessimista nem te ofender, mas você tá realmente fodido.
- Na verdade, eu nunca soube bem o que eu quis fazer.
- Isso é comum no perfil de quem faz Comunicação. Eu também já fiz Comunicação.

Fim do show. Pouco antes dos últimos acordes, Isabel pegou em minhas mãos, olhou no fundo dos meus olhos – quero dizer, como quem ousa me invadir - e me agradeceu por ter compartilhado aquele pequeno tempo da minha vida com ela. Partiu rumo ao camarim.

Saí. Saí, como quem fica. Ânsia de vômito. Dessa vez, diferentemente, sem vômito. Apenas a ânsia, o desconforto, a vontade, a impotência. Quando a luz acende de uma forma tão incandescente, tão intensa, há um instante mágico que antecede o apagão completo e irreversível. Apaguei.

E quem está disposto a ouvir o que a psicóloga tem a dizer?