segunda-feira, 28 de abril de 2008

Apenas para constar.

Te ver incapaz de acordar
só constrange o meu sono esquecido por Deus
E eu já falei mais do que devia
Me expressar sempre foi um fardo
tão pesado de erguer

De agora em diante eu não brigo mais
por conta de palhaçada
sem ter motivos reais
sem motivos que não sejam sérios

Te ver incapaz de chorar
só constrange o meu corpo caído no seu
e eu já falei mais do que devia
me explicar sempre foi um fardo
tão pesado de erguer

De agora em diante eu não brigo mais
por conta de palhaçada
sem ter motivos reais
sem motivos que não sejam sérios

Se é para o bem de todos
a minha saúde já não vai tão bem
e logo a sua saúde vai cansar também

(Palhaçada, Beto Cupertino)

Na floresta do alheamento...

Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera.

(Bernardo Soares)


***

De uma coisa eu não posso reclamar: os textos vem a mim exatamente no momento em que eu preciso deles. Nesse caso, devo um agradecimento particular à Renata, que, embora eu não conheça, me proporcionou a oportunidade de entrar em contato com um texto confuso - como ela mesmo sugeriu - mas extremamente marcante, eu diria.

Pena que eu não consigo ficar alheio: ainda estou sob efeito da vida.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

2:45 am

- Alô?
- Alô, sou eu. Posso falar agora?
- Sim.
- Você acha que suas palavras não me cortam? Aliás, tudo que eu queria entender de verdade é o que você acha de mim. Quando eu disse cortar, eu não disse ferir, embora às vezes realmente elas me firam. Mas eu sei que amar tem a ver com ferir e que na grande maioria das vezes que isso ocorre é algo totalmente involuntário. Até agora estou com seu último telefonema em minha cabeça. Não falei nada na hora por um motivo apenas: não tenho timing. Parece que a minha vida é sempre em relação a um passado. A minha vida passa por mim e quando eu pego nela já é tarde demais: simplesmente acabou. Como da última vez que estive com você diante de mim. É tanta ânsia que eu simplesmente travo. Isso não quer dizer que eu não te ame muito menos que não te deseje. Pelo contrário: acho que é excesso de amor e desejo.
- Você supõe demais as coisas que eu sinto.
- Sim, você sabe muito bem que eu suponho. Mas acho que acerto em muito do que digo. Sinto isso pela forma que você se comporta em relação a mim. Se eu não dissesse nada que fosse realmente adequado, você simplesmente não me daria ‘trela’ e isso não te deixaria transtornada, como em alguns momentos. Eu sei que eu te machuco. E isso dói em mim. Mas de certa maneira acho que nós dois procuramos essa dor para nos sentirmos vivos. Pode realmente parecer absurdo, mas eu não consigo parar de pensar em você, de querer conversar com você, de querer saber como você está. Ainda hoje estava pensando comigo, enquanto andava de ônibus, que você já faz parte da minha vida. Não consigo mais me imaginar sem você.
- (...)
- Ouviu o silêncio?
- Ouvi.
- Ele me perfura. Gosto do silêncio. Mas sei que ele me perfura. E que te perfura. Mas às vezes ele é importante para que a gente entenda algumas coisas. Não, eu não te ignoro e não tenho sequer motivo para isso. Já tive medo do que eu sinto por você. Muito. Medo de estar sendo falso e de estar te iludindo. Quis cortar o mal pela raiz e me afastar de você. Só que foi tarde demais: você já estava em mim. E você sabe: quando isso acontece não adianta lutar contra porque se trata de uma luta vã. Você fica cercado. E se eu não consegui me concentrar ontem quando estava estudando e voltei para falar com você foi porque eu sei que perdi a luta – o que não se trata exatamente de uma derrota, mas talvez de uma vitória. Ou não. Pouco me importa a essa altura do campeonato saber o que é e o que não é com exatidão.
- Mas você não...
- Você que não entende. Gosto quando você grita, quando esperneia e dá ataque. É preciso saber dar vazão ao que se sente, sem medo. Mas você só se revolta por dentro, o que é um começo. Só que é preciso que você termine. Já pensou na quantidade de revoluções que acabaram antes mesmo de começar? Você é revolucionária. Não digo no sentido estritamente político ou de mobilização armada. Não se trata disso. É mais: sua arma é a sua vida; suas idéias; seu talento. Queria que fosse simples você enxergar isso tudo, que um espelho lhe bastasse. Mas o espelho só mostra a superfície, não deixa escapar a lava que te habita. Um turbilhão por natureza.
- É difícil modificar a ordem das coisas.
- Eu não disse que é fácil, menina. Mas me diga: o que é a vida? Por não acreditar em nada depois dela, eu acho que ela é a nossa única chance. E para se tornar imortal é preciso se fazer imortal em vida. Você tem mãos. É com elas que você pode mobilizar os seus instrumentos. Você tem pernas, pés. É preciso andar. E no percurso o seu rastro se torna algo posterior, imortal. Sem se dar conta os seus rastros são a sua revolução: marcam a vida depois da morte, ainda em vida. E você tem talento. Um talento que não pode ser desperdiçado.
- Você diz isso para me bajular...
- Não tenho porquê te bajular até porque durante todo esse tempo eu sempre procurei ser franco com você. Que eu te amo, você sabe há muito e acho que não preciso te dizer isso, embora materializar o nosso sentimento seja algo importante. Se eu me permito ser sincero com você é porque eu quero te ver maior. Mas quero deixar claro que a escolha é sempre sua e nem sempre ela deve coincidir com o que eu digo, porque eu vejo a sua vida pela janela. E é exatamente dessa janela que eu vejo um brilho que você insiste em esconder mas que até uma pessoa cega com sensibilidade seria capaz de enxergar. Não precisa ficar enrubescida. Não tem porquê. Tudo bem: eu gosto de te ver tímida, mas porque acho que você fica mais bonita. Pena que o telefone não me permita te enxergar agora...
- O que você quer que eu faça? Porque do jeito que tu diz até parece que as coisas são simples.
- Eu quero simplesmente que você viva, menina. Infelizmente não há fórmulas de conduta. Nem sempre o que a gente acha que seria bom se mostra bom na prática. Eu erro, sou imperfeito, sofro e tenho medo também. Tanto ou mais do que você. A gente está aprendendo junto, um com o outro a cada dia que passa. E você sabe muito bem que, apesar de todos os meus carinhosos puxões de orelha, você está no caminho certo.
- Tem certeza?
- Sim. Certeza absoluta. E se eu te liguei a essa hora da manhã mesmo sabendo que você detesta falar ao telefone – por mais que você não admita que na verdade ame falar ao telefone e tenha uma voz absolutamente deliciosa – não foi para te dar sermão nenhum, porque você não precisa de nenhum tipo de sermão.
- Foi por que, então?
- Para dizer que eu estou com muitas saudades de você, seja quem você for. Ah: quando eu disse que você foi um erro e um engano em minha vida, simplesmente omiti o fato que você foi meu melhor erro e o meu melhor engano – porque nada teve de errôneo ou enganoso.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

A Coisa Mais Linda do Mundo.

Na ânsia de entender a magnitude da Thais em minha vida, acabei justamente por negligenciar uma dimensão extremamente importante: a própria Thais. Talvez vocês que acompanhem este blog desde seu post inicial possam, com alguma razão, argumentar: ‘Como assim? Você o tempo todo só fala dela’. Sim e não, eu responderia. Porque a grande verdade (dentre as grandes coisas a minha grande mania de falar grande) é que até hoje eu construí um perfil psicológico dela, mas em nenhum momento lhes ofereci uma dimensão concreta a despeito da ‘dita cuja’. Por mais que vez por outra tenha prometido ou ensaiado, nunca falei de como a Thais conseguiu me atrair tamanha atenção. Dito de forma direta, nunca falei da Beleza da Thais.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.

A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.


Essas estrofes pertencem ao poema Madrigal Melancólico do genial Manuel Bandeira e apontam as bases do que eu compreendo pela idéia de Beleza. Invariavelmente acabo me pegando pensando na beleza, seja de forma mais geral, seja de maneira pontual centrada na figura da Thais.

Beleza. Onde está a beleza? Onde começa e onde termina a beleza? Qual o impacto da beleza? Pensar na Thais, invariavelmente me faz levantar essas dentre muitas questões. Lembro perfeitamente da primeira vez que vi uma imagem da Thais. Uma foto totalmente ambígua. Não soube definir com precisão o que achei dela na hora. A única coisa que me passou pela cabeça foi a de que aquela fotografia em preto e branco com um rosto fechado e aberto ao mesmo tempo era forte. Isso mesmo: forte. Foi como se eu jogasse uma moeda para cima e ela caísse em pé: nem cara, nem coroa. Ou melhor: cara e coroa. Ou mais simples ainda: uma moeda. Só que nesse mesmo dia a beleza da Thais se manifestava: uma menina extremamente interessante. Seis de janeiro. Fui dormir com ela na cabeça tentando ligar a ‘rudeza singela’ da foto com as palavras que ela me dizia. Sim, havia uma rudeza que não era completa, que era singela. Havia ali o ponto crucial da beleza da Thais em formação: o paradoxo, a perplexidade. E beleza para mim não está diretamente ligado com o ‘mais belo’, com os padrões de beleza vigentes na sociedade, mas sim como mais estranho, com aquilo que me deixa absorto, fora de mim. Beleza é o que me choca e me destrói, o que me faz perder o chão e a respiração, o que me deixa instigado. A beleza é justamente o enigma, o singular e, para provocar, o exótico. Só que isso diz de algo que atravessa o estético. É como se fosse uma simbiose entre vários elementos em que um reforçasse o outro mutuamente. A beleza, na minha opinião, é um processo que ganha materialidade física enquanto manifestação estética, mas que é anterior a isso.

Não por acaso, um belo dia a Thais modifica a fotografia do perfil do Orkut dela. No instante que eu me dei por tal mudança, a beleza se manifestou em mim. Não me contive: bradei aos quatro cantos o quanto ela me fascinava. Só que o que eu enxergava não se limitava ao campo instaurado pela fotografia. Era produto de identificação com toda aquela contradição de residia dentro daquele corpo que, até aquele presente momento, eu sequer sabia que veria pessoalmente algum dia. Aquela menina inteligente, porém retraída, aos poucos se soltava, se mostrava, ficava mais bonita. A cada dia alguma nuance, algum contorno ficava mais claro. Despretensiosamente. Não havia nada calculado, nenhuma expectativa explícita. Ao passo que minha admiração não se continha mais. A cada nova fotografia, a intensidade aumentava porque aumentava o amor. Isso mesmo: um amor que eu nem senti, mas que era gostoso por ser imperceptível. A moeda havia caído: era linda. Ou talvez era a moeda ainda em pé: era singular.

Foi apenas em um terceiro momento que finalmente a conheci pessoalmente. Ali já havia expectativa, decerto. Fotos são fotos e muitas vezes elas nos traem. Foi quando ela cruzou a porta. A coisa mais linda do mundo. Não consegui parar de olhar; não consegui parar de prestar atenção. Só que fiquei contido, talvez mesmo por conta de ter ficado sem reação. Tudo nela exalava a beleza mais destrutiva, mais assimétrica – por mais simétrica que ela fosse. Primeiro, as palavras, a voz. Em segundo lugar, as unhas roídas revelando toda a insegurança de alguém que queria se mostrar segura. Ainda nessa leva, lembro da sobrancelha pintada. Muita gente não gosta, mas para mim era simplesmente perfeito aquele traço. As bochechas abriam caminho para o sorriso mais bonito que eu já vi na vida. Não se tratava de um sorriso qualquer: tinha como trunfo a avassaladora timidez de seu olhar (lembro ainda que num futuro reencontro a cena se repetiu e ao tecer um comentário sobre essa postura, a Thais disse ‘até agora eu não fiz isso de novo’ sem sequer se dar conta de que toda a expressão que fizera até aquele momento residia justamente naquele sorriso, desviando o olhar). O cabelo escarlate era um charme a parte – mesmo charme daquele queixo repartido. E até os óculos – acessório que eu geralmente não gosto - ficaram maravilhosos. A cara dela era larga. Mentira. Era laaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaarga. Era rude, forte. Ao mesmo tempo havia uma meninice escondida. Havia a singeleza, a simplicidade. É difícil conceber a Thais fora de um paradoxo. E é justamente nessa imprecisão de delimitação que está a beleza dela. Porque ao mesmo tempo que é uma beleza intransigente, segura de si, por outro lado, é algo inseguro, incipiente. ‘Mas e a minha barriga?’, ela disse. E eu olhava aquela barriga. E olhava de novo. E dava vontade de brigar com ela: para de bobeira, Thais! Eu só olhava. Alias, não conseguia para de olhar. A imperfeição dela era a própria perfeição – o que talvez ela até então não tenha percebido ainda.

Só que não era apenas isso. Não era estético puramente. Não era tão palpável ou visível assim – ou talvez facilmente traduzível. O jeito. Sim, o jeito da Thais. O que me deixava bobo era o jeito da Thais. A maneira como ela se portava, como falava, como dava aquelas risadas tão gostosas, como falava sobre coisas sérias, como tangenciava assuntos que lhe eram importantes, como ficava em silêncio olhando para o nada, parada. A beleza estava nela, por fora e por dentro, e pairava sobre mim; estava também em mim. Porque a beleza contagia: nos faz sentir mais bonitos.

Ainda por esses dias voltamos a tocar no assunto da beleza. ‘Não entendo por que tu me acha a coisa mais linda do mundo’; ‘Eu não sou a coisa mais linda do mundo’; ‘Eu me acho normal, não linda’; ‘Eu sou mais bonita que a Mulher-Samambaia HAHAHAHAHA (reforçando o tom irônico). É justamente em frases como essas que o Bandeira revela sua sabedoria: a beleza é um conceito triste porque frágil e incerto. Eu olho para um foto qualquer dela. Menos do que isso: eu penso em algum fragmento fugidio dela. E vejo ali beleza em doses cavalares. E vejo diante de meus olhos A Coisa Mais Linda do Mundo, porque a coisa mais linda do mundo é a vida dela.

Um corpo que continha em si mais do que um corpo propriamente dito. Talvez seja por isso que ela tenha medo do espelho - porque ele é incapaz de mostrar à Thais quem de fato ela realmente 'está'. Pode parecer uma idéia absurda, mas que na verdade (não) é.

PS: Obrigado pelas palavras Wado.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Sob efeito da vida...

Talvez seja pelo fato de ser um sonho. Tudo se mistura, todas as falas se interpõem e revestem o silêncio de sentido. Toda a efervescência em um estado bruto, prestes a ser lapidado. O lugar da perfeição. Basta abrir os olhos, sair do transe para tudo cair por terra. É simples: abrir a boca destrói o fluxo. Menos do que isso: pensar desfragmenta a corrente, organiza. E naquele momento tudo o que deve ser pensado é exatamente um não pensamento. A primeira vez, Caeiro, duas lágrimas, o desejo continuamente contido, a extrema deformidade que baliza o momento do sentir, o sentir sem pensar, o pensar sentindo, o medo. Tava tudo exatamente ali no intervalo entre a vida e a vida. E nesse intervalo em que me pus a deixar a consciência de lado, ela se incumbiu de colar quase como um poema dadaísta – surrealisticamente – as pecinhas que não se encaixariam em nenhuma espécie de quebra cabeças. Todas as dimensões de alguma maneira se ligam com a mais bela inexatidão. De repente, eu não sou eu mesmo, ao mesmo tempo em que esse lugar passa a encontrar uma porção de explicações para coisas aparentemente inexplicáveis. A velha mania de perseguir as explicações. Parece alucinação, efeito de uma droga qualquer. Mas é apenas o existir, o ser. A confusão organiza os passos. É como pisar na superfície lunar e tentar se acostumar com a diferença da gravidade, mas em vez de ser o meu corpo é o meu pensamento que está sob efeito dessa mesma gravidade estranha e muitas vezes oscilante. Acordei tendo muito a dizer e de repente, quando me dei conta, não sabia sobre o que exatamente havia para falar. Os mesmos temas recorrentes que ganham relevo naquela segunda leitura da experiência. Li meu coração novamente e foi como se eu conseguisse espremer dele tanta coisa que eu não consegui sentir antes. É assim que as pontes são feitas, eu acho. E é assim também que as pontes são quebradas e as mãos se encontram - sem nem se tocar.

sábado, 12 de abril de 2008

Coxismo.

Portishead no show do Móveis? Ahn?

terça-feira, 8 de abril de 2008

Um Capítulo.

Provo que a mais alta expressão da dor consiste essencialmente na alegria.

Augusto dos Anjos

***

Da vez seguinte em que se encontraram no terraço do bar, uma semana depois, Ulisses estava com o seu ar moroso e desinteressante. Mas Lóri já o conhecia: este ar vinha de que ele tranqüilamente treinava instante por instante um modo de abrir caminho. Se saía desse ar longínquo era para olhá-la com um vago desejo que não parecia querer se tornar mais forte.

Lóri manteve-se em silêncio, deixando que ele bebesse em silêncio, sem olhá-lo. Foi pois com um pequeno susto que o ouviu dirigir-se a ela, e não saberia há quanto tempo ele a contemplara para dizer-lhe:

— Você é tão antiga, Lóri, disse ele e para surpresa dela havia ternura na sua voz. Você é tão antiga, minha flor, que eu deveria lhe dar a beber vinho numa ânfora, disse já sem ternura e chamara-a de "minha flor" como ela o ouvira chamar a secretária dele, da vez em que a haviam encontrado na rua. Era um modo disfarçado de uma falsa camaradagem, assim como Lóri agia em relação a ele com certa secura. Mas havia tenacidade em Ulisses, havia tenacidade em Lóri.

Ulisses agora olhava-a curioso:

— Lóri, você nem ao menos consegue sentir o que há de profunda e arriscada aventura no que nós dois tentamos? Lóri, Lóri! Nós estamos tentando a alegria! Você ao menos sente isso? E sente como nos arriscamos no perigo? Você sente que há mais segurança na dor morna? Ah Lóri, Lóri, você não consegue recuperar, mesmo vagamente, na lembrança da carne, o prazer que pelo menos no berço você deve ter sentido por estar? Por ser? Ou pelo menos outra vez na vida, não importa quando, nem por quê?

Lóri não respondeu, sabia que ele adivinhava que a resposta era negativa.

— Você prefere a dor?

Também a isso ela não respondeu, sabia que ele adivinhava que a resposta seria de novo: não.

— O que é? Para aprender a alegria você precisa de todas as garantias?

Ela ficou em silêncio, porque o tom de Ulisses mudara e em vez de ardente se tornara sardônico e era para feri-la. Ele reclinou-se na cadeira um pouco cansado e disse:

— Você é das que precisam de garantia. Quer saber como eu sou para me aceitar? Vou me fazer conhecer melhor por você, disse com ironia. Olhe, tenho uma alma muito prolixa e uso poucas palavras. Sou irritável e firo facilmente. Também sou muito calmo e perdôo logo. Não esqueço nunca. Mas há poucas coisas de que eu me lembre. Sou paciente mas profundamente colérico, como a maioria dos pacientes. As pessoas nunca me irritam mesmo, certamente porque eu as perdôo de antemão. Gosto muito das pessoas por egoísmo: é que elas se parecem no fundo comigo. Nunca esqueço uma ofensa, o que é uma verdade, mas como pode ser verdade, se as ofensas saem de minha cabeça como se nunca nela tivessem entrado?

Lóri começava a achar que Ulisses zombava dela. E apertou os lábios em cólera. Só que não podia se impedir de querer ouvi-lo, sua curiosidade crescia à medida que, mesmo sabendo que ele brincava, também falava a verdade.

— Tenho uma paz profunda, continuou ele, somente porque ela é profunda e não pode ser sequer atingida por mim mesmo. Se fosse alcançável por mim, eu não teria um minuto de paz. Quanto à minha paz superficial, ela é uma alusão à verdadeira paz. Outra coisa que esqueci é que há outra alusão em mim — a do mundo grande e aberto. Sou professor de Filosofia porque é o que eu mais estudei e no fundo gosto de me ouvir falando sobre o que me interessa. Tenho um senso didático pronunciado que faz com que meus alunos se apaixonem pela matéria e me procurem fora das aulas. Este meu senso didático, que é uma vontade de transmitir, eu também tenho em relação a você, Lóri, se bem que você seja a pior de meus alunos. Bom, apesar de meu ar duro, que aliás vem também do fato de meu nariz ser tão reto, apesar de meu ar duro, sou cheio de muito amor e é isso o que certamente me dá uma grandeza, essa grandeza que você percebe e de que tem medo.

Como se de súbito tivesse notado que falara sério, parou e riu para desfazer tudo o que dissera:

— Meu amor pelo mundo é assim: eu perdôo as pessoas terem um nariz mal feito ou terem lábios finos demais e serem feias — todo erro dos outros e nos outros é uma oportunidade para mim de amar. Veja, não permito que ninguém mande em mim, e no entanto não me incomodo por exemplo de simplesmente seguir o programa traçado na faculdade para o ensino de cada classe.

Ulisses finalmente notou a cólera muda de Lóri. Então disse simples e sincero:

— Bem sei que estava brincando, mas não menti nenhuma vez, tudo o que eu disse é verdade. E se me confessei, não importa, sobretudo se foi a você. Aliás eu me confessaria também a outros, sem nenhum perigo: ninguém pode fazer uso do que os outros são, nem mesmo uso mental, por isso, esse tipo de confissão não é jamais perigoso. Talvez agora você ainda me desconheça mais. O melhor modo de despistar é dizer a verdade, embora eu não tenha tentado nenhuma vez despistar você, Lóri, disse ele. Com alguma dor então Lóri percebeu que Ulisses, apesar de dizer o contrário, não queria se dar a ela. E ela pagaria com a mesma moeda. Talvez antes de ele falar, ela tivesse a intenção de um dia dar-se, pois sabia que teria de dar a alguém o que ela era, senão o que faria de si? Como morrer antes de dar-se, mesmo em silêncio? Porque no dar-se teria enfim uma testemunha de si própria. E porque Ulisses também teria pensado na morte, ele disse:

— Antes de morrer se vive, Lóri. E uma naturalidade morrer, transformar-se, transmutar-se. Nunca se inventou nada além de morrer. Como nunca se inventou um modo diferente de amor de corpo que, no entanto, é estranho e cego e no entanto cada pessoa, sem saber da outra, reinventa a cópia. Morrer deve ser um gozo natural. Depois de morrer não se vai ao paraíso, morrer é que é o paraíso.

Ficaram em silêncio muito tempo, um silêncio que não pesava. Até que ele, como se quisesse lhe dar alguma coisa, disse:

— Olhe para esse pardal, Lóri — mandou ele — não pára de ciscar o chão que aparentemente está vazio mas com certeza seus olhos vêem a comida.

Obediente, ela olhou. E de súbito eis que o pardal alçou vôo, e na surpresa Lóri esqueceu-se de si própria e disse como uma criança para Ulisses:

— É tão bonito que voa!

Falara com a inocência que usava nas aulas com as crianças, quando não temia ser julgada. Inquieta então olhou rápido para o lado de Ulisses. Ele a olhava. Com um susto Lóri notou: era um olhar... de amor?

(Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, Clarice Lispector)

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Para não criar teias de aranha...

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.

(Mundo Grande, Carlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Fim ou Começo?

Isso é só o fim
Do que restou de nós
Nada ficou pra mim
Eu sei que resto é resto
Me importo se tenho apreço
Então algo me diz que isso é só o começo.

(Isso é só o começo/Isso é só o fim, Prot(o))

Pinduca.

Engates de emoções em marchas de euforia
As ruas seguiam sempre rumo ao descontrole
E o que ficou para trás lhe traz melancolia
Faria sentido dar adeus ao seu passado

Você sabe que o atalho pro futuro está bem aqui
E hesitar é como dirigir só atento ao retrovisor

"Derrapes" de intenções em oléo sobre a pista
Convém estar ligada nos sinais da nossa estrada

Pois note bem: há um amplo horizonte à nossa frente
E não aceitá-lo é quase como estar indiferente


(Retrovisor, Prot(o))

Final.(?) (2)

Eu. Lóri. Loreley.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Bomba-Relógio.

Berna, 2 de janeiro de 1947

Querida,

Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perde o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.

Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e dos outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.

Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse e me perguntou: "Você era muito diferente, não era?". Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinqüenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.

Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma.

Tua Clarice

***

Em 95, o escritor Caio Fernando Abreu, então colunista do jornal O Estado de São Paulo, publicou uma carta que teria sido escrita por Clarice Lispector a uma amiga brasileira. Ele comenta, no artigo, que não há nada que comprove sua autenticidade, a não ser o estilo-não estilo de escrita de Clarice Lispector. Ele dizia: "A beleza e o conteúdo de humanidade que a carta contém valem a pena a publicação..."

Final.(?)

Começou com uma vírgula.
Terminou com dois pontos.


Em contagem regresiva...