sábado, 14 de dezembro de 2013

Elucubrações...

A miséria é a emissária da morte.

domingo, 24 de novembro de 2013

É preciso mudar...

"Sou feminina, não feminista", bradava orgulhosamente toda uma primeira geração de mulheres. Em compensação, noto que uma boa parcela das mulheres de hoje - uma segunda geração, por assim dizer - brada justamente o cântico contrário: "Sou feminista, com muito orgulho". Em comum, as mulheres destas duas gerações partilham um mesmo desconhecimento do que seja o feminismo. 

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Dons.

Certas pessoas abraçam seus dons com gratidão. Outras não sabem o que fazer com eles e só conseguem pensar em superar suas fraquezas. Só seus defeitos interessam e os desafiam. Assim, aqueles que detestam as pessoas podem ir à procura delas. Misantropos muitas vezes praticam a psiquiatria. Os tímidos se tornam atores. Ladrões por natureza procuram postos de confiança. Os assustados executam lances atrevidos.
 
(O Legado de Humboldt, Saul Bellow)

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Tênis.

- Só tem uma coisa pior do que vôlei. Vôlei feminino.
- Não, vôlei de praia feminino.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Onde está Marx quando precisamos dele...

- Trabalhar é uma merda, cara! Eu não aguento mais! Como será que meu pai agiria em uma circunstância destas? 
- Ele aumentaria a carga de trabalho para diminuir este tipo de pensamento.

(Marx provavelmente nunca cogitou que a ruptura completa com a alienação poderia fazer com que os trabalhadores questionassem o próprio valor do trabalho - dentre outros questionamentos que seriam realizados. Bendita seja a alienação!).

sábado, 22 de junho de 2013

A demagogia do 'oprimido' (2).

Para cada moralista de direita existe também um moralista de esquerda.

Gente como a gente

Gente que faz uma faculdade de ciências humanas, passa a graduação inteira sem ler um texto sequer e depois coloca o dedo na sua cara querendo te ensinar política. 

Gente que faz parte do movimento social porque é “amigo do pessoal”. 

Gente que diz que é democrático, mas quando você discorda de um ponto foge do argumento e quer logo te desqualificar, te censurar. 

Gente que vai à praça de alimentação do shopping e é incapaz de tirar a bandeja de cima da mesa depois de lanchar. 

Gente que vai ao supermercado e que, depois de feitas as compras, não coloca o carrinho ou a cestinha de volta no lugar. 

Gente que dá aula em universidade, adora falar mal dos problemas da cidade, criticar o prefeito, os partidos “a” ou “b” e que, no entanto, passa o dia inteiro no gtalk em vez de ler os trabalhos dos alunos – e que, naturalmente, não gosta de receber nenhum tipo de questionamento a este respeito. Ah, sim: e ainda por cima chama seu comportamento de “ético”. 

Gente que organiza processos seletivos não com base nas qualificações, mas por conta de interesses particulares – escusos ou não. 

Gente que bajula chefe, professor, colega e quem mais estiver ao seu alcance em prol de status e/ou da obtenção de benefícios pessoais. 

Gente que vai para as manifestações para fumar maconha porque na ditadura, na revolução francesa ou na revolução paleolítica se fumava maconha em manifestações. 

Gente que diz que a manifestação é por 20 centavos, depois diz que é por muito mais do que 20 centavos e por fim decreta oficialmente que são 20 centavos e só. 

Gente "de esquerda" que trabalha produzindo dados para empresa de consultoria defensora de interesses estritamente privados - vulgo: "os reais interesses do povo brasileiro". 

Gente que quando recebeu a notícia da copa no Brasil disse que quem não a apoiasse não era patriota. Dois anos depois, com a mesma ênfase, disse que quem apoiasse uma copa no Brasil jamais seria um patriota. 

Gente que corrompe os funcionários públicos. Gente que aceita ser corrompida. 

Gente que desrespeita os regulamentos estabelecidos a fim de obter vantagem pessoal. 

Gente que reclama apenas e tão somente depois que o leite entornou. Melhor: gente que reclama, intransitivamente. 

Gente que adora dizer que as coisas são óbvias e lógicas, quando elas são tudo menos óbvias e lógicas. 

Gente que adoraria a volta da ditadura para sentir que a sua vida tem sentido, para dizer que participou de um momento histórico, para poder roubar em segurança ou apenas para fazer uma canção de protesto. 

Gente que adora colocar banca nas redes sociais pagando de politizado e revoltado – mas que é bem menos consciente do que muitas pessoas que nem perdem o seu tempo discutindo política. 

Gente que acredita que basta colocar os pés na rua para que haja um “aumento da reflexão política”. 

Gente que acredita que consciência política é um processo osmótico. 

Gente que participa de uma manifestação pós-moderna: grita slogans, ops, palavras de ordem sem nem saber o que elas significam, sem nem saber o motivo das manifestações, sem nem saber porque elas estão lá. 

Gente que pensa que "se você não está conosco, está contra nós". 

Esse é exatamente o tipo de gente que diz estar cansada. É o tipo de gente que fica em casa. É o tipo de gente que vai às ruas. É o tipo de gente que assume os cargos públicos. Gente que vota. Gente que critica os políticos. Gente que critica os partidos políticos. Gente que se torna político. Gente que se acha o panteão da moralidade. Gente que está certa. Gente que sempre se vê como parte da solução. Gente que nunca se enxerga como o foco do problema. Gente que muda apenas para tudo continuar como está. Gente que escreve textos falando da gente. Gentalha, gentalha, gentalha...

sexta-feira, 21 de junho de 2013

A demagogia do 'oprimido'.

Guilherme: Acho engraçado que, dentre tantos colegas politizados do meu estimado Facebook, muitos reclamaram do grande orçamento da Copa mas nenhuma menção tem sido feita às Olimpiadas. Chorar pelo leite derramado é muito fácil. Reclamar agora, depois de oficialmente gastos 60 bilhões soa como moralismo barato. Que tal falarmos sobre os gastos das Olimpiadas no Rio? Haja visto o fracasso dos jogos Panamericanos - de público como de estrutura - que tal solicitarmos o cancelamento das Olimpiadas no Rio? Só não me venham reclamar depois quando as obras não licitadas das Olimpiadas estiverem quase no fim, quando nada mais puder ser feito, ok? 

*** 

Zé Mané: o pessoal foca mais na copa pro duas razões ÓBVIAS que eu, sinceramente, não entendi porque você não, viu, guilherme. 1- a copa no brasil inteiro, afeta, diretamente, os juízos e debates em todo o país, em diversas capitais. 2- a copa está mais próxima e se mistura ao evento que está acontecendo AGORA: a copa das confederações. não tem como negar que visibilidade nacional e internacional é uma peça importantíssima desse momento, já que a copa e as olimpíadas são eventos internacionais. e outra: a copa não é página virada ainda, não. os gastos públicos não acabaram, ainda estão sendo feitos e ainda há gastos por vir mas, principalmente, estes gastos foram feitos para que? para que a fifa e os grupos envolvidos lucrassem rios de dinheiro com o evento. barrar a copa é impedir que esses grupos e, especialmente, a fifa venha aqui sugar ainda mais dinheiro. não é, nem de longe, o ideal. óbvio. mas não diga que é "leite derramado" que assim você ofende a motivação das pessoas e ignora os milhões que ainda estão para serem gastos e ou extraviados. colocar o fim das olimpíadas na pauta? SENSACIONAL! mas criar uma disputa entre pautas, como se impedir a copa fosse bobagem e impedir as olimpísdas fosse super-bacanudo-esperto-pra-caralho é vacilo demais. propões essa pauta nos movimentos, nas páginas, sem apagar as outras pautas super legítimas, pragmatica e simbolicamente. cola na galera das assembléias e vamo fazer acontecer. 

*** 

Guilherme: Bem, cara, realmente eu discordo da sua fala. Aliás, é uma fala realmente bem marcada para te ser franco. A “primavera árabe”, com quem estes movimentos procuram se identificar, aconteceu por causa de uma copa do mundo ou de olimpíadas? O seu raciocínio me parece deslocado de um entendimento tríplice de tempo: você vê apenas e tão somente com os olhares imediatos do presente e se exime tanto do passado quanto das conseqüência futuras. E assim a política se reproduz: não muda ou muda apenas pra permanecer a mesma coisa. Que eu saiba, o Brasil tem razões suficientes para se mobilizar INDEPENDENTEMENTE de qualquer evento, ainda mais uma Copa das Conferederações cuja importância – se é que ela existe – é prioritariamente brasileira (você sabe me falar de cabeça, sem consultar no Google, os cinco últimos campeões? Quais países representativos do futebol participam da Copa das Confederações?) Não se precisa da aprovação – ou desaprovação – dos olhares internacionais para gerar uma oportunidade de mobilização, me desculpe; a opressão é mais significativa do que um Big Brother Mundial. A "primavera árabe" é exemplo do que eu disse: a motivação foi ela própria e não qualquer evento externo; a "primavera" se tornou um fenômeno importante com seus próprios pés - se foi ou não bem sucedida, aí é outra questão. Penso eu que a dimensão internacional e mesmo brasileira deste "nosso" movimento não foi reforçada pela Copa das Confederações; na verdade, dada a sua força e autonomia, ela obliterou a ‘importância’ da Copa das Confederações. Ou seja, levando em conta que a Copa das Confederações não existisse, se a mobilização tivesse alcançado hipoteticamente o mesmo alcance ela teria a mesma cobertura da mídia. A propósito, que me desculpe o slogan “não são por 20 centavos”, mas a janela de oportunidade de agregar novas demandas surgiu exatamente e tão somente por conta desses 20 centavos. Sem as mobilizações por conta do transporte coletivo haveria essa dimensão? Aliás, haveria algum protesto? E mais: sem as borrachadas da polícia em São Paulo, o movimento tomaria esse impacto? Que eu saiba, o movimento em todas as capitais não aconteceu AO MESMO TEMPO. Então, não adianta a posteriori fantasiar sobre o romantismo do movimento, sobre a pureza dele. É sempre bonito escrever a história da maneira que melhor nos convém. Os 20 centavos foram o ponto de partida. Fato. O ponto de chegada, eu não sei. Talvez haja mudanças significativas, talvez não. Veremos. O ponto que eu levantei na minha provocação foi outro: temos de fugir da cilada do moralismo barato do “nossa, nos roubaram 60 bilhões – e outros tantos mais que ainda nos roubarão”. Fica fácil demais reclamar do leite derramado, meu chapa (e é leite derramado sim, porque esse dinheiro gasto não vai voltar – ou você pensa em quebrar a estrutura dos estádios e devolver o material de construção para levantar alguma graninha?). Porque isso me leva a outra questão: eu não sou lá muito fã do Sartre, mas ele tem um conceito que eu acho muito apropriado para a discussão de política, a “má fé”. Em linhas diretas, má fé é a postura de transferir aos outros a responsabilidade por atos que são nossos. Em suma, queremos sempre o bônus, mas nunca o ônus das nossas ações. Aplicado ao contexto, é como partir do pressuposto de que os manifestantes são extremamente lúcidos – fato muito questionável –, íntegros e externos ao próprio povo; é não se ver como parte do problema antes de se ver como parte da solução. O que me lembra de outra idéia que a gente viu na faculdade – parto do princípio que pelo menos nós dois freqüentamos a aula do Bebeto: a microfísica do poder, do Foucault. A noção é bastante simples, embora sua recepção seja extremamente pífia: a manifestação institucional do poder está diretamente relacionada a estrutura capilarizada da vida social. Traduzindo: as pessoas no microcosmos das relações que estabelecem com outras reproduzem exatamente o tipo de poder consta o qual elas se ‘insurgem’ num macrocosmos. Olhar pra fora e apontar os problemas é mais fácil do que olhar pra dentro e corrigir suas posturas. Eu já to cansado de ver professores fanfarrões reclamarem do Márcio Lacerda na terra da fantasia chamada Universidade e agirem de forma semelhante ou pior em sala de aula – ou nos lugares que podem exercer seu poder. Esse é apenas um exemplo de uma circunstância que nos é familiar. Vaidade, vaidade, tudo é vaidade. Participar de um movimento social não te torna imune a isso, como você sugere - ainda mais porque os movimentos costumam ser ideologicamente cegos as suas próprias fragilidades argumentativas. Reclamar agora da Copa, me desculpe, mas é demagogia barata; a pauta é muito velha, os debates deveriam ter sido feitos há tempos. Não recebi nenhuma notificação sua organizando um protesto CONTRA a copa do mundo na época que ela foi anunciada – a menos que o Facebook tenha me privado dessa notificação. Não recebi nenhuma notificação do seu organizando ou participando de um protesto em Belo Horizonte CONTRA a construção do Itaquerão, futuro estádio do Corinthians, quando o estado de São Paulo já tinha um estádio que precisaria ser apenas reformado – ao menos, os gastos públicos seriam menores; aliás, por favor, você não caiu no conto de achar que essa copa seria a copa da iniciativa privada, né? Nem vi mobilizações contra o próprio fato de serem realizados jogos no Mané Garrincha, em uma cidade que sequer terá times de futebol para usufruir deste 'legado' de 1,5, 2 bilhões de reais. Nem vi ninguém falar da falta de organização do Panamericano, com gastos estúpidos e público pífio que não rendeu lucratividade alguma nem deixou legado nem para a população tampouco para o esporte olímpico brasileiro. Uma vez que o gasto, no fim das contas, é nacional deveria ser legitimo que protestos contra o Itaquerão, o Mané Garrincha ou o sucateado Engenhão, por exemplo, ocorressem para além dos lugares onde essas obras foram realizadas. Certo? Ou seja, é fácil mobilizar agora contra algo que deveria ter sido realizado bem antes. A pergunta é: por que não foi feito antes? A 'indignação' com a Copa surgiu apenas agora, do nada? Desculpa, mas isso me soa como um argumento frágil demais. Tudo bem: antes tarde do que nunca; mas vamos assumir nossa responsabilidade e colocar as circunstâncias em perspectiva. O problema não é utilizar a Copa das Confederações como porta voz das mobilizações; é anterior: é a própria Copa das Confederações EXISTIR – enquanto evento teste da Copa do Mundo, que, evidentemente, não deveria ter entrado sequer na agenda do governo dada a quantidade de problemas estruturais que temos. A Copa não vai ser impedida. Sinto muito. Do jeito que você coloca a questão e do modo como responde a minha provocação, parece implicitamente aprovar os gastos idiotas com a existência Copa do Mundo para que o Brasil pudesse ter um holofote para o mundo na Copa das Confederações apenas para poder reclamar legitimamente dos gastos até pouco tempo, paradoxalmente, 'aprovados'. Do mesmo modo que, implicitamente da maneira cínica como rebate a minha provocação, deseja a existência de gastos públicos com as Olimpíadas para que daqui a dois, três anos, tenha mais motivos para reclamar. Eu tô alertando apenas para uma discussão que eu não vi em nenhum momento ser realizada, mas que eu tenho certeza que na véspera do evento no Rio de Janeiro ela surgirá. Não precisa ser nenhum sábio pra prever isso. Entretanto, HOJE (presente) ainda dá tempo de se fazer algo a este respeito. A Olimpíada será no Rio, mas na ocasião o Rio quer queira, quer não, será o Brasil – haverá também a comunhão entre os estados do nosso país, evidentemente – goste você ou não do Rio. Além disso, a Olimpíada ‘talvez’ tenha um alcance global até maior do que a Copa do Mundo – não para os brasileiros, provavelmente – porque tem uma gama de competições e modalidades muito mais extensa e que contemple outros interesses esportivos para além do futebol. Não dá pra inferir que o futebol é o esporte predileto do planeta inteiro, mesmo que ele tenha grande alcance global. Ou seja, então ela também tem a sua importância, não descartando a da Copa, naturalmente. E eu não propus uma ‘disputa’ de pautas: se a copa serve como 'ponto de partida' (e essa é a função da discussão sobre a copa, a meu ver), ok. Por favor, não deturpe o que eu falei. Eu ‘propus’ – na verdade não é uma proposta senão uma provocação – ampliar a pauta e olhar também para o que nos aguarda no futuro. Esse olhar imediatista é o que nos cega; falta sempre perspectiva. Uma dica, rapaz, é fugir ao esquematismo "ou está conosco ou está contra nós", que é muito perceptível no seu argumento. Maniqueísmo barato disfarçado de "diálogo democrático" não leva ninguém a lugar nenhum. A vida é bem mais complexa que isso, não acha? Eu não tô disputando nada com ninguém. Sinto não estar nem contra nem a favor de vocês - e se você quiser, pode me considerar "apolítico", "despolitizado", o que é em parte verdadeiro, em parte falso e pouco me incomoda, pra ser bem sincero. Prefiro ter alguma autonomia de pensamento. Eu acho que em vez de reproduzir falas marcadas é sempre melhor a gente tentar pensar bem sobre os problemas, olhando todos os ângulos da questão e observando a nossa conduta. Auto-análise é fundamental e frequentemente nos falta. No mais, boa sorte em sua caminhada! 

*** 

Zé Mané: pô, eu vi esse textão e achei que ia ser ducaralho, mas não teve quase nada a ver com o que falei, cara. eu concordei que a luta deveria ter começado antes. isso é óbvio. minha crítica é ao seu ponto de que "já era". ainda rola de lutar e reivindicar muita coisa por causa da copa.e ninguém disse que a luta do movimento precisa ser SÓ contra a copa e, MUITO MENOS, que ou você está conosco ou está contra nós". muito pelo contrário. eu disse pra você entrar na briga. colocar as ideias de outras lutas em pautas, ou a inutilidade de algumas lutas em pauta.eu tô colado no comitê dos atingidos pela copa há muito tempo. sou amigo pessoal da galera. não preciso te convidar para um evento de facebook pra te provar que estou engajado há mais tempo.sinceramente, não saquei qual foi o rancor que fez você derramar esse texto ENORME, prolixo e fugindo MUITO do ponto.vamos debater o ponto inicial? vou dar um título a ele pra ver se ajuda: a luta contra a copa e seus efeitos precisa acabar?e só pra deixar claro: NÃO ESTOU propondo que o objetivo máximo do(s) movimento(s) seja esse, mas que ele esteja incluído. o movimento é plural e as reivindicações são plurais também. e a copa ainda incomodar (e ainda vai incomodar) MUITA gente. 

*** 

Guilherme: O bom é isso: ninguém entende ninguém. Você não me 'entende', eu não te 'entendo'. Eu não acrescentei nada a você, assim como sua fala também não acrescentou nada a mim. Valeu pela discussão plural e democrática, então.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Bakakai.

A arte perturba os satisfeitos e satisfaz os perturbados.

(Witold Gombrowicz)

A alegria inaudita de Cioran

Rue Garancière, rue Saint-Sulpice, rue de l'Odéon -quantas vezes não rememorei este trajeto que tanto significou para mim? Era 1990, fevereiro, estávamos- eu e Katia (Muricy) em Paris, rue de Vaugirard. A chegada fora tumultuada e trouxera um problema inesperado: Katia perdera a sua mala, aquela com todas as roupas e documentos importantes.

O estado de espírito não era lá muito animador. Tensão, nervosismo, comprometiam o início daquela temporada parisiense. Inscrito em Nice para um doutorado, resolvera residir em Paris, perto daquele a quem considerava um "amigo longínquo" e de quem já traduzira duas obras, "Exercícios de Admiração" e "Breviário de Decomposição".

Uma tarde em que saíra para tentar resolver a questão da mala, Katia recebe um telefonema, o primeiro nosso em Paris; Cioran, o próprio, com a solicitude e afeto que ainda desconhecíamos, nos intimava a jantar em sua mansarda naquela noite mesma. Por razões diversas, não pudemos ir. Mas, na noite seguinte, seguindo suas instruções (código de porta etc.) subimos as escadas daquele prédio antigo, mais ou menos às oito da noite. No quinto andar, de braços abertos e expressão luminosa, Cioran nos aguardava.

Seguiu-se uma cena inesperada: Cioran, sabendo de nossa mala extraviada, nos deu roupas e um jantar digno de um príncipe. Em sua mansarda diminuta, Cioran e Simone Boné (sua companheiro há mais de 40 anos) recebiam como em um palácio. Despojados, altivos e cheios de cumplicidade com o casal de estrangeiros recém-chegado. Este momento -isento de formalidades, repleto de um calor gratuito- marcou todos os dias de nossa relação em Paris.

A editora Rocco, do Rio de Janeiro, havia comprado os direitos dos "Silogismos da Amargura". Aproveitei esta estada em Paris para traduzi-los juntamente com Cioran. Os encontros -regados a "jus de pomme- eram geralmente sexta-feira à tarde. Traduzia em casa duas ou três páginas e depois ia para a mansarda ler em voz alta minha versão e discutir as nuances e o peso de cada adjetivo ou expressão.

Cioran, com uma generosidade e interesse autênticos, falou de sua admiração por Antero de Quental e extasiou-se com a "virgindade" de Fernando Pessoa. Sua verve sutil, sua poesia onipresente sempre davam um aspecto meio intemporal a esses encontros. Fazia questão de ressaltar uma cumplicidade que sentia de fato, talvez por -romeno- sentir-se próximo daquele latino-americano que chegava a Paris um pouco perplexo, como ele em 1937.

Além das reuniões específicas de tradução houve jantares onde Cioran brilhava com seu humor "non-sense". Houve uma noite em que estávamos, eu, Katia, Lidia Breda (que dirige uma coleção na editora francesa Rivages) e Christiane Frémont (tradutora de algumas de suas obras romenas).

No ar, nas conversas daquela noite, o espírito dos salões do século 18 que Cioran tanto admirava. Algo de Julie de Lespinasse, um tanto de Madame du Deffand. Cioran, o cético mais radical, o niilista menos autocomplacente, sabia, na intimidade, ser um "causeur" admirável. Envolvia seus convidados, discorria sobre Shakespeare, encantava com uma "joie de vivre" paradoxal e inaudita.

A mansarda de Cioran estava cheia de livros espalhados pelo chão. Edições antigas de Endre Ady -o grande poeta húngaro- acomodavam-se ao lado de livros de gnose, Herder e algum dicionário de inglês ou de latim. Cioran recebia muitos livros -de escritores novos ou de editoras que o presenteavam.

Ele os deixava pelo chão, amontoados, e os dava aos amigos como quem distribui bens efêmeros. Eu próprio ganhei um exemplar das "Confissões" de Santo Agostinho que provavelmente o acompanhara durante muitos anos. De nossa parte, recebeu um exemplar francês de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", (presente de Katia), que apreciou sinceramente.

Não foram poucas as conversas "tête-a-tête" com este apátrida cheio de vivacidade. Tinha 79 anos, mas suas "boutades" eram rápidas como as de um rapaz. Falou de Spengler, de como ninguém o lia mais hoje, e de como a decadência do Império Romano se assemelhava à européia, com seus bárbaros muçulmanos se espalhando por uma Paris mestiça e, às vezes, perigosa.

Falou de Léon Chestov, o pensador russo que tanto o marcou, do pesar de não havê-lo conhecido. Falou -por iniciativa e curiosidade- de sua admiração por Vassily Rozanov, o panfletário místico que o influenciou com seus aforismos instantâneos e acompanhados do local e circunstância da escrita (ex: "escrito no trem", "escrito tarde da noite").

Para este romeno que fizera do sexto "arrondissement o seu jardim, Paris era uma "cidade maldita" (como me disse certa vez ao telefone). Paris era "maldita", compreendi melhor depois, porque era seu calvário e seu lugar de eleição. No jardim de Louxembourg, muito perto de sua rue de l'Odéon, passeava frequentemente com suas idéias negras e sentimentos de tédio desolador e incurável.

Uma das histórias mais curiosas que ouvi de Cioran foi a que se referia a uma de suas viagens, na década de 60, pela Inglaterra. Um dia, na porta de um bar, parara encantado ouvindo uma música de uma "juke-box": "A Whiter Shade of Pale", do Procol Harum. A introdução ao órgão era tirada de Bach, o "deus" de Cioran. Repetiu a música diversas vezes, fazendo eco ao aforismo de "Écartèlement" (1979): "Em música, em filosofia e em tudo, amo o que incomoda pela insistência, pela recorrência..." A música -Brahms, Schumann, Schubert- sempre acompanhou o ceticismo do filósofo como um contraponto necessário.

Cioran pertencia a uma estirpe hoje extinta. Além de amigo e compatriota de Ionesco e Mircea Eliade, sua alma artística e filosófica estava do lado de um Borges, de um Michaux, de um Beckett. Tendo se afirmado, por um talento ímpar de escritor, em uma língua estrangeira, Cioran trazia a ironia e a distância do não-europeu, o pesar de haver nascido alhures -como nós, brasileiros- em algum "subúrbio do globo".

Mas também falou com carinho de sua infância, dos "camponeses analfabetos" e, dizia rindo, que aceitara ingressar na Academia Romena de Letras (recusara-se a entrar na francesa, embora muitas vezes convidado) porque "não se pode renunciar a tudo".

Acostumara-me, nas cartas que me enviava desde 1988, a esta verve instantânea, a seu humor às vezes cortante. "O ser ideal? Um anjo devastado pelo humor", dissera em um de seus livros. Mas este eremita fechava-se a qualquer assédio em que percebesse adulação ou lisonja interesseira. Ele, o grande estilista, gostava de compartilhar conivências silenciosas e comunhões gratuitas. Quando, por hesitação ou emoção, eu demorava para completar uma frase em francês, Cioran encerrava o constrangimento com um "já entendi" amistoso e encorajador.

Falamos de Schopenhauer, de Sartre com quem esbarrava no Café de Flore na época da guerra; falamos de muitos autores, sobretudo do passado. Saint-Évremond, perguntei certa vez, você o praticou muito, não? Um pouco só, respondeu rindo. "As pessoas que não se expressam literariamente são as mais ricas, sempre afirmou, acentuando o abismo onde se encontrava.

Sua morte, que já esperava com tristeza pois sabia de seu estado, priva o Ocidente de um de seus maiores pensadores e a Europa de seu último poeta elegíaco. Seu pessimismo, temperado por um ceticismo refinado, era a maior prova de uma superabundância espiritual e expressiva. Sua energia, que se traduzia em negações veementes, era reflexo de um caráter vigoroso e de uma alma exaltada.

Havia raiva em Cioran -em suas obras ácidas e crepusculares. E também uma vitalidade enorme, desmedida: eco dos Balcãs que o rigor herdado dos moralistas franceses filtrou em uma mistura sábia e tonificante. "Não há razão para não ser triste", disse em "Cartea Amàgirilor" ("O Livro dos Logros", 1936).

Neste momento, em que se perde um grande amigo, só me ocorre citar, com o dicionário na mão, o sentido da palavra romena "dor": desejo ardente, nostalgia, saudade... 

(José Thomaz Brum)