domingo, 30 de agosto de 2009

Sessão da Tarde.

Acordei sem nem ao menos conseguir dormir
E sonhei por um momento estar num sonho seu
Me perdi em pensamentos que eu quis esquecer
Mas corri, rompi comigo só pra te dizer

Que eu vou chorar...

Vou ver o filme que você falou
Sozinho, junto com meu cobertor
Um lenço e o filme da sessão da tarde
Tão tarde...

Quando eu vi os nossos planos em frente a TV
Percebi o que você queria me dizer
Sobre o sol que se põe antes do amanhecer
Pobre sol que já não pode iluminar você

Agora eu sei...

Palavras são sons ao ventilador
Que falam mas se esquecem de dizer
E escondem o silêncio precioso, zeloso
Eu sei...

Minhas palavras tão desnecessárias desvirtuaram o sentido do amor
Tardio filme da sessão da tarde que de tão tarde nosso tempo...

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Ciorando (8).

O segredo de minha adaptação à vida? Ter trocado de desespero como troco de camisa.

(Silogismos da Amargura, Emil Cioran)

Deus (9).

Deus (8).


quinta-feira, 27 de agosto de 2009

As canções...

Uma menina me ensinou
Quase tudo que eu sei
Era quase escravidão
Mas ela me tratava como um rei
Ela fazia muitos planos
Eu só queria estar ali
Sempre ao lado dela
Eu não tinha aonde ir
Mas, egoísta que eu sou,
Me esqueci de ajudar
A ela como ela me ajudou
E não quis me separar
Ela também estava perdida
E por isso se agarrava a mim também
E eu me agarrava a ela
Porque eu não tinha mais ninguém
E eu dizia: - Ainda é cedo
cedo, cedo, cedo, cedo.

Sei que ela terminou
O que eu não comecei
E o que ela descobriu
Eu aprendi também, eu sei
Ela falou: - Você tem medo.
Aí eu disse: - Quem tem medo é você.
Falamos o que não devia
Nunca ser dito por ninguém
Ela me disse: - Eu não sei mais o que eu
sinto por você.
Vamos dar um tempo, um dia a gente se vê.

E eu dizia: - Ainda é cedo
cedo, cedo, cedo, cedo.

(Ainda é Cedo, Legião Urbana)

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Sobre(viver). (2)

- Se você começou a falar com alguém, falou da sua intimidade, abriu o coração, falou das fraquezas, pode ter uma certeza: vai dar tudo errado. Ninguém quer um saco vazio ao seu lado.
- (...)
- Você parece um Quixote lutando contra moinhos invisíveis. A imagem que melhor te descreve é a daquele padre dos balões: voa, voa mais alto, voa mais alto ainda e se continuar assim mais cedo ou mais tarde vai desaparecer. Você tem que se preocupar é com os problemas concretos, emprego, ter uma posição social, que o resto vem.
- (...)
- Nem precisa perder tempo procurando por alguém que te entenda, porque não existe essa pessoa. Põe na cabeça uma coisa: você é só e não há como acabar com isso.
- (...)
- Sexo? Não passa de uma dupla masturbação.
- (...)
- As idéias são uma parede de fumaça que você coloca na sua frente. Você tem que aprender é a usar o corpo. Essa é a única coisa que existe. De nada adiantam as palavrinhas.
- (...)
- Você é um louco manso.
- (...)
- Casamento não tem nada a ver com amor, com compreensão. Tem três fases. Sexo, curtição e cooperação. Eles dão errado porque as pessoas sempre querem uma coisa que o casamento não é capaz de oferecer.
- (...)
- Você tem que desenvolver a sua virilidade. Você é muito feminino e isso não se pode negar. Eu disse feminino e não afeminado. Você se preocupou muito com a essência e esqueceu a aparência. A vida é um jogo e o que vale é a aparência.
- (...)

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Trechinho.

E que choque foi ver o mundo não acabar
Depois que você abriu a boca pra falar
E compreendeu tudo
numa generosidade tão insuportável
Que a gente te amou como nunca amou a si mesmo.

(Nova do Violins, Beto Cuertino)

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Sobre(viver).

O viver consiste em plantar rosas, dando-lhes carinho, atenção e amor para depois poder colher gafanhotos.

domingo, 23 de agosto de 2009

Ciorando (7).

Por que não explodir? Não existe em mim energia suficiente para tremer ao universo, loucura suficiente para aniquilar a mínima claridade? Acaso minha única alegria não é a do caso, e meu maior prazer o impulso que me destrói? Acaso minhas ascensões não são quedas e minha paixão minha própria explosão? Não sou capaz de amar sem autodestruição? Sou um homem hermeticamente fechado aos estados puros? Conteria meu amor tanto veneno? Devo abandonar-me completamente ao meu frenesi, não voltar a pensar nele para experimentá-lo com o excesso mais total. Acaso não combati a morte suficientemente? Devo, além disso, suportar que Eros seja meu inimigo? Por que sinto tanto amor quando o amor ressuscita em mim, por que me chegam vontades de aniquilar ao mundo para deter o progresso desse amor? Minha desgraça consiste no fato de que desejo ser decepcionado no amor para ter novas razões de sofrer. Pois somente o amor nos revela nossa degradação. Quem viu a morte de frente, pode ainda amar? Pode morrer de amor?

(A renúncia, Emil Cioran)


Tudo é possível e nada o é; tudo está permitido e nada o está. Qualquer que seja a direção que tomemos, não será melhor que as demais. Realizemos algo ou nada, acreditemos em algo ou não, é tudo a mesma coisa, tal qual é o mesmo gritar que se calar. Pode-se encontrar uma justificação a tudo, como também nenhuma. Tudo é por sua vez real e irreal, lógico e absurdo, glorioso e anódino. Nada vale mais que outra coisa, como tampouco nenhuma idéia é superior a outra. Por que entristecer-nos devido a nossa tristeza e regozijar-nos devido ao nosso regozijo? Que mais que nossas lágrimas sejam lágrimas de prazer ou de dor? Amai vossas desgraças e odiai vossa felicidade, mesclai tudo, confundi tudo! Sede como um floco de neve bamboleando pelo vento ou como uma flor destruída pelas ondas. Resisti quando não devais fazê-lo e sede covardes quando tenha que resistir. Quem sabe? Talvez ganheis com isso... E, de toda forma, que importa se, pelo contrário, perdeis? Há realmente algo que ganhar ou que perder neste mundo? Todo ganho é uma perda e toda perda um ganho. Por que esperar sempre uma atitude clara, idéias precisas e palavras sensatas? Sinto que deveria cuspir fogo à guisa de resposta a todas as perguntas que me tenham sido feitas ou que não me tenham sido.

(Que mais dá!, Emil Cioran)

sábado, 22 de agosto de 2009

Um trechinho.

Sim, mas não adianta, eu sei desse teu ser que também é o meu, sei que Ruisis é também você, e Rukah é o ser a três que também és, inventaste muito bem, és tão só, eu compreendo. Pára, não diz que é invenção. Ora, Ruiska, vão saber de qualquer jeito. Tenho vergonha, pára. Por agora, mas fica sabendo que a tua metafísica de dentro é coisa pra depois, entendes? E anda mais depressa, estás mancando. Anão, por favor, o meu de dentro o teu a dor o vazio palvra morta da minha boca tudo trevoso queria amo não sei amo não sei demais paredões da memória memória memória cascalho confundindo o percurso das águas dor pátio onde os homens caminha chamados ai AAAAAAAAAIIIIIIIII que chamados estiletes a terra os dentes pó pó mas a memória os girassóis Deus Deus Deus o azul o ovo a periferia da galáxia vida vida ali começa a matéria ai e eu e eu nunca mais o meu de mim sempre a cora o meu de outro meu mais longe ou meu mais perto não sei o outro não é eu ou não sei umbigo centro de mim ou do universo não sei ando querendo colocar o bilhete na parede alguém vai pegar vai ler diz diz que é também o teu de dentro diz que não sou só eu que tento diz por favor lê lê vou vomitar ninguém para pôr a mão na testa goi goi chin chin roseiral-mirim laranjeiras correria vida goiabada em lata memória memória memória morrer fica saliva gosma gosma esticando sempre teia sempre teia teia de aranha centro umbigo AAAAAAIIAAAIAAI. Agora fica quieto, há uma passeata, não vês? São os príncipes do mundo, a juventude, os que vão fazer. O quê? Vão acabar com os discursos do medo, o homem vai nascer outra vez, e tu, olha, deves te preparar para esse fim-começo, esconde as tuas mãos, são mão de escriba, escondo a minha voltada para cima, o homem é carne e sangue, ossos também, e só, entendes? Não tentes falar. Eles vêm vindo. Não digas que. Não dá mais tempo. E VOCÊS DOIS QUEM SÃO? Responde corretinho, Ruiska. Sabem, eu escrevia e esse aqui sou eu mesmo, mas do cone sombrio. PÁRA AÍ. Um escritor, senhores, muito bem, o que escreves? AÍ. Escrevia,s abem, sobre essa angústia de dentro. PÁRA AÍ. Senhores, eis aqui, um nada, um merda neste tempo de luta, enquanto nos despimos, enquanto caminhamos pelas ruas carregando no peito um grito enorme, enquanto nos matam, sim porque nos matam a cada dia, um merda escreve sobre o que o angustia, e é por causa desses merdas, desses subjetivos do baralho, desses que lutam pela própria tripa, essa tripa de vidro delicada, que nós estamos aqui mas chega, chega, morte à palavra desses anêmicos do século, esses enrolados que se dizem com Deus, Deus é esse ferro frio agora na tua mão, quente no peito do teu inimigo, Deus é essa bala, olhem bem, Deus é um fogo que vai queimar essas gargantas brancas, Deus é Tum mesmo, homem, tu é que vais dispor do outro que te engole, e quem é que te engole, homem? Todos que não estão do teu lado te engolem, todos esses que se omitem, esses escribas rosados, verdolengos, esses merdas dessa angústia de dentro. Espera um pouco, moço, não sou desses não, quando falo de mim quero falar de ti, nós dois e todos, nós todos somos um, entende? Vem, Ruiska, o moço vai te arrancar a víscera. Espera, anão, o senhor entendeu? Baralho, velho escriba, olha esse cara aqui, sabes quantas vezes por semana nesse cara come? Não senhor, não trouxe penico nem medidor. Pois não era preciso, velho escriba, ele come uma côdea seca por semana, não come bifes não, come só o enxofre da vida. Alcachofra? Alcachofra para o teu rabo de escriba, vilão, PESSOALLL! OS IMUNDOS VEM VINDO!, façam uma frente só, sai porco-escriba, sai porco-anão, unam-se aos nossos inimigos. OOHHHHAHHHHUIUIUI PEGA ESSE AÍ COM ESSE ANÃO DE CIRCO. OS SENHORES FAZM PARTE DOS REVOLTOSOS? Para dizer a verdade, capitão, estava apenas conversando sobre essa coisa de escrever e. ESCREVES? Sim senhor. Porra Ruiska, outra vez. TOMA LÁ UMAS BORDOADAS. Ai, capitão, me larga, me ajuda anão, dos dois lados me matam, UIIII. Vem, Ruiska, não fica aí no meio, olha lá um caminho, vamos correr, corre mais e chega até o riacho, corre, pára, onde é que estás, ah já estás aí, oi, sabe-se lá qual é o lado? Descansa, molha os pés, tens um olho de sangue, que mania também de dizer tudo, pára com isso, já não escreves há séculos, morde a mão e cala, isso de palavras acabou-se. Não posso mais dizer, anão? Não como dizes, deves falar do outro, mas não do jeito que falas, fala claro, fala assim: apresentar armas, e todos te entenderão, escarra três vezes sobre os teus mitos, enche a boca de sangue e todos te entenderão, enfia a faca no peito dos eleitos e todos te entenderão, usa o estrôncio noventa, fala cem vezes merda, e principalmente degola a tua cabeça, fecha o punho assim, assim Ruiska, não sabes nem fechar o punho, também que merda, assim não. Olha, anão, corta um pedaço. De quê? Tira uma lasca da minha perna, tira um pouco de pele. Por quê? Pronto, tiro eu. Deixa a pele aí perto do rio, aí entre as pedras, deixa que a água chegue perto, melhor viver na água, sabes esse pouco de epiderme vai crescer formar um novo eu. Dessa lasca de pele que tiraste há de se fazer um Ruiska outro inteirinho, tanto assim queres viver? Um construtor de águas, um outro feito de mim mas todo nu, despojado de tudo, nu no corpo, nu por dentro, ah, vai balbuciar, isso vai, não abro mão do balbucio, vai dizer blu, plinka plinka ohe ohahu, vai entrar dentro do rio e gritar OHEOHUOHAHU. Ruiska, que queres dos homens? Que te entendam? Que te cocem a cabeça? Façam blu blu no teu pintinho? Conta de um jeito claro o que pretendes, as palavras existem para... para, bem, para. Parabéns anão, elucidaste, as palavras enfim, as palavras... oh pervinca, oh begônia, sabes da begônia? Sabes do mistério da begônia? Sabes do verme que é cortado em mil pedaços e que depois cada pedaço é um verme? A palavra, anão, vê bem, se eu digo amor, o que é que sentes? Uma coisa no peito, um quente. E se tu dizes, sem que te perguntem, sinto uma coisa no peito, um quente, as gentes te dirão que é amor o que sentes? Ora, Ruiska, não, vão dizer, espera um pouco, diz para mim essa coisa que no fundo me obrigaste a dizer. Anão, sinto uma coisa no peito, um quente. Então te digo, Ruiska, estás mal, talvez adoentado, e olha que deu certo porque... não é doença o amor? Não, é coisa grande que nasce contigo e depois vai morrendo. Por quê? Coexistes, vives ao lado dos, das. Olha a minha cara, anão. Olhei. Gostas dela? Bem, não é nada esquisita, é normal, tens umas rugas aí perto dos olhos, um olho, olha pra mim é bom teu olho, clarinho, tem pintas amarelas. Amas o meu rosto, anão? Bem, é uma cara que não se pode amar, sabes por quê? Já te digo, tu não te dás, quando me olhas estás dizendo sempre: eu sou eu, em nada teu igual. Mas tu sabes que eu sou parte de ti, não sabes? Pois é claro, Ruiska, sou tua sombra, tudo que vem de baixo em i, é coisa minha, e és tu também inteiro. Tens ódio no teu de dentro, anão? Claro, não sou feito de açucenas, tu sabes que me enrabam por aí, que é treva esse sulco que faço sob a terra, que existo porque, sabes que não sei bem por que existo? Nem eu, anão. Estamos conversando há muito tempo e quase nada do que falas eu entendo. Nem eu, Ruiska. AIURGUR é bonito porque tem ronco e ais, AUIRGUR é muito dor, tu não achas? Tem ronco, isso é verdade. Te lembras das coisas que eu dizia? Quem é que não se lembra, Ruiska, tinhas o dom... tinhas... ora, uma magnificência, e tinhas também altivez, uma... espera, uma austeridade, lá isso eras, austero, muito, um mestre da austeridade. E que boa linguagem. Dizias: morte, meu sopro, dizias: é a palavras essa que se levanta agora prodigiosa? Ai, estás te desmanchando, Ruiska. Não, é nada, é esse sol do meio-dia, o olho já não vê, mas percebe uma luz, percebe que... o olho a dimensão do nada a memória outra vez o corpo retina infância quaresmeiras do acaso fugidias fugidias quando me tocaram a primeira vez quando me tocaste pai as mãos sobre o meu peito meu Deus eu que não sou eu matéria de vileza eu que ai esse amor mais fundo universo do medo balbucio apenas mas e muito mais é muito mais isso de dizer menos é mui to ma is. Ruiska, o que é que procuras? Deus? E tu pensas que Ele se fará aqui, na tua página? No teu caminhar de louco? No silêncio de tua vaidade? Sim, no teu caminhar de louco, em ti todo fragmentado, abjeto. Ele se fará na vontade que tens de quebrar o equilíbrio, de te estilhaçares, Ele se fará no riso dos outros, nesses que sorriem apiedados quando te descobrem, Ele se fará enorme porque e somente agora que te mostras, agora é que dás ao outro o mais pobre de it, fala, Ruiska, sem parar, fala desse teu fundo cor cinza, mostra a tua anca, teus artelhos, tuas canelas peludas, teu peito encovado, teu riso frouxo, mostra tudo de ti, sabes, não tens nada, tua língua se enrola a cada palavra, não tens amor nem guias, estás sozinho como um boi que vai ser comido, sabes como é com o boi? Abrem a veia, deixam-no sangrar, enquanto isso todos conversam, amam, tu és um boi, Ruiska, um boi aberto, esburacado, tu és um porco, Ruiska, e te imaginas home, pedes todos os dias que te dêem as mãos, suplicas, procuras do Deus, Ele está aí mesmo no teu sangue, na tua natureza de porco, no teu olho revirado, ai, acalma-te, preserva-te, estás em emoção, te pensas magnífico dizendo as tuas verdades, mas continuas breu para o teu próximo, e todo o teu caminho terá um só destino, a morte, ela sim é grandiloqüente, ela é a rainha, chega a qualquer hora, oh, não te exaltes, receba-a, tens mais ossos que carnes?

(Fluxo, Hilda Hilst)

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Ciorando (6).

Não sei o que está bem nem o que está mal; o que está permitido e o que não está; não posso elogiar nem condenar nada. Neste mundo, é impossível ter um critério; é impossível ter critérios coerentes. Surpreende-me que tenha gente que se preocupe, todavia, da teoria do conhecimento. Para ser sincero, devo confessar que me importa muito pouco a relatividade de nosso saber, posto que este mundo não merece ser conhecido. Algumas vezes tenho a impressão de que existe um saber integral que esgota todo conteúdo do mundo, outras não compreendo absolutamente nada do que sucede ao meu redor. Sinto uma espécie de gosto acre, uma amargura diabólica e bestial que fazem inclusive que o problema da morte me pareça insosso. Dou-me conta, pela primeira vez, do quão difícil é definir essa amargura; possivelmente também porque perco tempo buscando-lhe as origens de ordem teórica quando a realidade procede de uma região eminentemente pré-teórica.

Neste momento não creio em absolutamente nada e não tenho a mínima esperança. Tudo o que nos atrai e seduz na vida me parece vazio de sentido. Não possuo nem o sentimento do passado nem do futuro; o presente me parece um veneno. Não sei se estou desesperado, pois a ausência de toda a esperança não equivale obrigatoriamente ao desespero. Nenhum qualificativo poderia afetar-me, pois não tenho mais nada a perder. E pensar que perdi tudo no momento em que ao meu redor tudo desperta à vida... Quão longe me acho de tudo!

(Não Sei, Emil Cioran)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Descontinuidades.

Uma fotografia. Sim, novamente uma fotografia. A mesma delicadeza do ritual submarino. Exploração, nuances, aquela ambigüidade descarada – involuntariamente proposital. Só que no fundo do mar existe o fundo. O fundo do poço sem fundo. E infelizmente toda imagem não passa de uma ilusão: trancafia o espaço em um plano. Mais do que uma simples redução, uma aparente despersonalização. Falta o substrato encerrado nas conchas, o negrume, as veias – e não as artérias. A diferença entre as veias e as artérias é a mesma entre o sono e a fúria. A velha história das portas - de entrada, de saída, de espera. Portas que no fundo são a mesma, momentos separados feitos especialmente para alguém se afogar em um oceano. Um oceano e não um pequeno retângulo de papel em preto e branco.

Além dos sentidos.

É com o rosto quente de alegria e honrado (inchado)
Que falo aos suicidas, aos desajustados
Aos quase-mortos, aos homens sem destino
Às tristes crianças cheirando cocaína
Todos alegres demais
(A desesperança, as tragédias dos meninos
que não envelhecem jamais)

Agradecendo o comparecimento de todos
Reunidos aqui nesse auditório
Vocês, escória, multidão sem rosto
De homens fracos (baixos), homens fartos de escritório

Eu trago novas de um homem belo
Que foi até um mundo novo, eu diria paralelo
Onde só se sente um orgasmo eterno, prazer sem fim
E voltou em espírito pra depositar em mim
A missão de lhes tirar do prelo

Eu sou só o médium

Eu lhes trago então aqui com a palavra
Aquele que lhes dará de volta a vida
Vocês, quase mortos, pré-suicidas
Sem mais para o momento
Prestes a sentir o vento

Eu lhes trago W, de contentamento

(Médium, Beto Cupertino)

terça-feira, 18 de agosto de 2009

HCn - Segunda Dose.

Pergunta - O tédio nesse sentido faz parte dessa categoria da temporalidade que é outra, diferente?

Cioran - Sim, exatamente, porque o tédio está finalmente baseado no tempo, no horror do tempo, no medo do tempo, na revelação do tempo, na consciência do tempo. Os que não têm consciência do tempo não se entediam; a vida só é suportável se não houver consciência de cada momento que passa, se não for assim está tudo perdido. A experiência do tédio é a consciência do tempo exasperado.

Pergunta - O sr. acaba de dizer algo que mostra até que ponto todo escrito esconde uma voz subterrânea...

Cioran - Todos os nossos atos têm subterrâneos, e é isso que é psicologicamente interessante, nós só conhecemos a superfície, o lado superficial. Acedemos ao que é formulado, mas o importante é o que não é formulado, o que está implícito, o segredo de uma atitude ou de uma proposição. É por isso que todos os nossos juízos sobre os outros, mas também sobre nós são parcialmente falsos. O lado mesquinho fica camuflado. Ora, o lado mesquinho é profundo, eu diria mesmo que é o que há de mais profundo nos seres, e é aquele a que menos temos acesso.

Os grandes escritores são precisamente aqueles que têm o sentimento desses baixos, Dostoiévski principalmente. Ele revela tudo o que é profundo e aparentemente mesquinho, mas é mais que mesquinho, é trágico; são esses os verdadeiros psicólogos. Eu conheço muita gente que escreveu romances e fracassou —mesmo Mircea Eliade escreveu muitos romances e fracassou, por quê? Porque eles só traduzem os fenômenos de superfície e não a origem dos sentimentos. A origem de um sentimento é muito difícil de captar, mas é isso que é importante e isso é válido para qualquer fenômeno: para a fé religiosa etc. Como começou? Por que continuou? É esse o desafio e só quem tem a divinação é capaz de enxergar de onde vem isso. E isso não vem da razão.

Pergunta - Também nas suas leituras o sr. está atrás dessa origem?

Cioran - Estou, e na minha vida também. O que é formulado é só uma parte do pensamento. É por isso que há poucos romancistas verdadeiros. Todo mundo pode escrever um romance mas não se trata apenas de escrevê-lo. Dostoiévski, para mim, é o único que foi até as origens dos atos; vê-se muito bem porque suas personagens fizeram isto ou aquilo, mas não se vê de imediato. Minha atitude não tem nada a ver com a psicanálise, nada, pois ela quer curar; não é isso que é interessante. É o demônio que habita os seres que importa —mas como captá-lo?

HCn - Primeira Dose.

Pergunta - E vai sempre aos cemitérios?

Cioran - Não só aos cemitérios. Eu tenho, é verdade, um fraco por cemitérios; mas hoje em dia os cemitérios não são mais bonitos, estão sobrecarregados. Quando vejo amigos, mas também desconhecidos passarem por momentos de abatimento, de desespero, só tenho um conselho a dar: Passe 20 minutos num cemitério, vai ver que a sua tristeza não vai desaparecer, mas vai ser quase superada.

Outro dia, encontrei uma moça que eu conheço, desesperada por causa de um problema amoroso, e lhe disse: Você não está muito longe de Montparnasse, vá lá, passe por ali meia hora, vai ver que a sua tristeza lhe parecer tolerável.

É muito melhor do que ir no médico. Um passeio no cemitério é uma lição de sabedoria quase automática. Eu mesmo sempre pratiquei esse tipo de método; não parece muito sério, mas é relativamente eficaz. O que é que você vai dizer a alguém que está num desespero profundo? Nada ou mais ou menos nada. A única maneira de suportar realmente esse tipo de vazio é ter consciência do nada. Sem isso, a vida não é suportável.

Se você tem consciência do nada, tudo o que lhe acontece é de proporção normal e não assume as proporções dementes que caracterizam o exagero do desespero.

Pergunta - E uma espécie de solução catártica que o sr. está recomendando?

Cioran - Certamente. Precisamos ver o que somos. Eu conheci, por exemplo, muitos jovens escritores que queriam se suicidar por não ter sucesso, o que eu compreendo, a rigor. Mas é muito difícil acalmar alguém que chegou nesse ponto. O que é terrível na vida é o fracasso, e isso acontece com todo mundo...

Pergunta - Mas se tira alguma coisa do fracasso? Quando se sobrevive...

Cioran - É uma lição extraordinária; mas tem muita gente que não a suporta, e isso em todos os níveis, empregados e gente importante. No fim das contas, a experiência da vida é o fracasso.

São principalmente os ambiciosos, os que fazem um plano de vida que ficam tocados, os que pensam no futuro. É por isso que eu mando as pessoas para o cemitério. É a única maneira de minimizar uma situação trágica.

Duas linhas.

Um passo a frente, dois para trás.
E os relógios não bastam.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Ah, o Amor... (3)

A cada segundo
Muda tanta coisa nesse mundo, oh baby
Será que devemos pagar com isso?

Eu nada posso prometer
Eu só tenho uma garrafa e um doce no meu bolso
Mas, sei que você também quer
Entrar numas de se desligar
O amor é feito de plástico

Não tenho medo
Já cruzei a linha de chegada, oh darling
Saiba que é no fim onde tudo começa

Eu nada posso prometer
Eu só tenho uma garrafa e um doce no meu bolso
Mas, sei que você também quer
Entrar numas de se desligar
O amor é feito de plástico

(O Amor é Feito de Plástico, Mopho)

domingo, 16 de agosto de 2009

Passa-se o ponto.

Hora de passar a maldição pra frente.
Amém! - ou amem.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Um Sonho.

1. Anti-Herói pt.1
2. Deus Você
3. Ensaio Sobre Poligamia
4. Il Maledito
5. Nostálgica
6. Missão de Paz na África
7. Festa Universal da Queda
8. Gênio Incompreendido
9. Problema Meu
10. Distração
11. Entre o Céu e o Inferno
12. Auto-de-fé
13. Anti-Herói pt.2
14. O Pregador
15. Glória

Bis

16. Manicômio
17. Nada Sério
18. Auto-Paparazzi

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

2006-2009.

Agosto de 2006. Festa de aniversário do programa Alto-Falante no Lapa Multishow, em Belo Horizonte. Daquela noite, em que tive a grata surpresa de ver os meninos do Superguidis pela primeira vez em cima de um palco, a recordação mais nítida que tenho veio do último show, já quase de manhã, o mais aguardado para mim. No entanto, não foi nenhuma das canções que eu mais queria ouvir a que mais estragos me causou. Tratava-se da até então ‘obscura’ Cenas de Um Filme Inglês, do queridíssimo Wado, ainda ao lado de sua antiga banda de apoio, o Realismo Fantástico. ‘Agora eu vou tocar a última música mais romântica da noite’. Foi assim que ele anunciou a canção que me partiria em dois e que rendeu um dos momentos mais bonitos do meu ano de 2006. Foi justamente essa a primeira recordação que me veio a tona quando, pelo telefone, o Jonathan me deu a grande nova:

- Tem um cara que vai tocar no Festival Garimpo desse ano que eu acho que você vai gostar, Guilherme.
- Quem, cara?
- O Wado.
- O Wado?
- Isso!

E de repente, no meio do marasmo, um festival promissor e alguns shows excelentes – um deles contando com uma visita especial de Deus - para tapar as lacunas da minha vida. Sublime. Singelo.

***

Faço questão de te ter aqui
Apesar de não me quereres mais
Meu coração de jasmim avulso
Tá embrulhado pra você no cais

Chocolate minha xícara no caminho dos teus lábios
Um navio anunciando que estamos separados

Se algum dia você volta minha casa não terá cerveja
Beberemos do sorriso que não estava nesta mesa

(Cenas de um Filme Inglês, Wado)

Dramas e dramas.

Não é novidade para quem me conhece que eu gosto essencialmente de dois gêneros cinematográficos aparentemente – e isso é bom frisar – antagônicos: os dramas e as comédias. Bem que se diga, algumas das melhores obras a que assisti são aquelas que conseguem aliar de maneira hábil uma carga dramática envolvente e uma boa dose de humor – de preferência bem ácido – receita esta que pode ser encontrada em Beleza Americana, o filme da minha vida até o momento. Porém não será desta vez que tratarei desta magnífica – e no caso de Beleza Americana todo elogio é sempre pouco – obra neste espaço. Na verdade, quero apenas fazer alguns poucos comentários sobre o gênero drama propriamente dito tomando como base os últimos três filmes que vi.

Ainda ontem fiquei me perguntando sobre os perigos que circundam este gênero e cheguei a duas conclusões bastante modestas, que os mais aficionados pela tal ‘sétima arte’ – o que não é exatamente o meu caso, pois a minha relação com o cinema é puramente intuitiva, baseada apenas em critérios estritamente subjetivos de qualidade - provavelmente já devem ter alcançado em um momento ou outro de suas respectivas vidas. O primeiro perigo, portanto, é a busca por um tipo de profundidade excessiva que invariavelmente acaba gerando roteiros com narrativas e diálogos demasiadamente forçados, caracterizando o que se pode chamar de ‘dramalhão’. É nesta categoria que eu encaixaria o filme ‘Minha Vida Sem Mim’, obra cujo título sem dúvida já deve ter enganado muita gente. Em linhas gerais, o filme trata da mesma ladainha já apresentada no clássico da apelação – ou da comoção, como preferirem – Minha Vida, com o ‘Batman’ Michael Keaton, qual seja, o relato de uma protagonista que se descobre com uma doença terminal e, diante disso, ao tomar consciência da fragilidade da vida começa, procura viver intensamente os últimos dias que lhe restam e deixando registros de sua existência antes do último suspiro. Uma espécie de atualização do Carpe Diem produzido apenas e tão somente para gerar lágrimas. Depois de assistir a um filme como esses, totalmente broxante de tão previsível, parece impossível dizer que Adorno e sua turma estavam equivocados em suas constatações.

Mas se existem filmes que apelam para o dramalhão, há também aqueles que incorrem no problema oposto: a total falta de profundidade. Este é o caso de Geração Prozac, cuja única virtude é possuir a belíssima atriz Christina Ricci no elenco – o que, convenhamos, é muito pouco, mesmo que seus dotes artísticos sejam tão qualificados quanto os físicos. Geração Prozac acaba caindo na mesma armadilha de Minha Vida Sem Mim: o título é melhor do que o filme-em-si-mesmo. É interessante frisar que o filme simplesmente não corresponde à sinopse informada no encarte do DVD. Portanto, não há efetivamente uma discussão sobre a validade do uso de anti-depressivos, isto é, se são substâncias que realmente são úteis ou meros paliativos produzidos em larga escala para os problemas do homem moderno. Trata-se de algo tão discrepante, que tudo o que é dito sobre anti-depressivos acontece apenas nos últimos dez minutos de projeção. E nem o nome Prozac é citado, a não ser para dizer que o filme foi feito tendo como base o livro best-seller do mesmo nome – sim, quantidade é qualidade, não? Pra variar, Geração Prozac termina com aquela esperança plástica individualista norte-americana, com o indivíduo racional capaz de controlar seu destino e seus impulsos!

Na ocasião em que aluguei ‘Minha Vida Sem Mim’ e ‘Geração Prozac’, por conta do pouco tempo que teria para assistir a mais filmes, acabei por deixar na prateleira ‘O Mundo de Leland’, provavelmente por não ter um título tão sugestivo quanto os demais - o que apenas atesta a nossa tendência a nos preocuparmos mais com a embalagem do que com o conteúdo, se bem que, no fundo no fundo, talvez seja melhor assim. Em todo caso, assim que tive outra oportunidade de ir à locadora não pensei duas vezes e tratei logo de reparar o meu erro: encontrei a terceira margem do rio. Não se trata de um filme perfeito, posso adiantar logo de cara. Só que há nele algo que o separa tanto dos dramalhões como das farsas: uma visão peculiar sobre a realidade que nos cerca. É a diferença no olhar, na maneira como se capta o que está escancarado a nossa frente o critério que separa o joio do trigo. Ou seja: é menos uma questão de originalidade a mais de autenticidade. O Mundo de Leland é, em alguma medida, parente de ‘O Estrangeiro’, de Albert Camus. Um rapaz numa pequena cidade assassina um deficiente mental, o que, como seria de se esperar, acaba causando um misto de revolta e comoção entre os moradores locais. Para minha grande surpresa, Kevin Spacey – um dos motivos que me levaram a alugar o filme, símbolo de credibilidade para mim, ainda que seus últimos trabalhos tenham deixado a desejar – tem apenas um personagem secundário, cabendo todo o destaque ao seu filho na trama, Leland, interpretado por Ryan Gosling. É de uma situação corriqueira e banal que nasce o poder do filme: a motivação de Leland é posta em segundo plano, até mesmo porque o próprio protagonista parece não conhecê-la ao certo e o que se vê em cena, nos diálogos do réu com seu professor dentro do presídio, são observações bonitas e fortes sobre a vida, sem apelar para clichês otimistas. Talvez o mais bonito do filme seja a capacidade que ele tem de expressar, por meio do absurdo, um certo fatalismo que nos conduz. Um fatalismo que, embora possa soar contraditório, está além da idéia de um destino traçado, pré-moldado. É a partir do ponto de vista deste fatalismo que o tema da hipocrisia ganha relevo e poesia, que o cinema ganha um filme tocante e que o espectador perde o chão. Pra variar, um filme que não tem nada demais e exatamente por conta disso, por fugir das firulas, se torna verdadeiramente grandioso.

Em homenagem ao grande Leland, mais um grande personagem presente a minha galeria de prediletos, segue um poema do igualmente grande Alberto Caeiro:

Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra coisa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão -
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Aquecimento.

Segurando o mundo com a mão
E pintando o céu com o mesmo pincel
Que eu pintei o seu nome no sol.

Desdenhando o som do seu perdão
E acusando a vida de contradição
Você dorme ouvindo meu longo sermão.

Protegendo você nos meus braços pequenos
Eu sou muito menos
Eu sou muito menos
Do que o sonho exige de mim
Conhecendo você pelos atos pequenos
Eu sou muito menos
Eu sou muito menos
Do que o sonho exige de mim

Habitando o mundo sem ação
E encarando o dia com meu corpo são
Que me reprime com imprecisão...

Eu não sou capaz de voltar atrás
E você não voltará atrás
Eu culpo você
Sentindo a alegria que você me deu
E sentindo a alegria que você perdeu

Eu nunca consegui sentir saudade
Das coisas bonitas que fiz com liberdade

(Qual a Criança, Violins)

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Sobre o lirismo perdido.

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare


— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

(Poética, Manuel Bandeira)

Dois poemas, um fragmento, um agradecimento.

Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já tivesse avançada).

Chovia

Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso
da noite.

Então me levantei.
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
-Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.

(Poema só para Jaime Ovalle, Manuel Bandeira)

***

Se sou alegre ou sou triste?...
Francamente, não o sei.
A tristeza em que consiste?
Da alegria o que farei?

Não sou alegre nem triste.
Verdade, não sei que sou.
Sou qualquer alma que existe
E sinto o que Deus fadou.

Afinal, alegre ou triste?
Pensar nunca tem bom fim...
Minha tristeza consiste
Em não saber bem de mim...
Mas a alegria é assim...

(Fernando Pessoa)

***

Às vezes quero sair, tenho vontade de sair; ao mesmo tempo não quero. Nunca sei direito se quero ou se não quero. Há essa necessidade de que eu estava falando; gente barulho, agitação. Mas depois há a volta. A gente chega em casa triste; mais triste do que quando saiu, isso é que é o pior. Não sei por quê, mas as pessoas sempre me deixam triste. Mas se fico em casa sozinho, também acabo triste. Quer dizer: não tem jeito. Eu agora estou aqui, bebendo, falando, e, de certa forma, pensando que eeu estou alegre. Mas não estou; sei que eu não estou. Como pode estar alegre um sujeito sozinho num quarto, bebendo e falando com um cachorro? Ainda mais numa noie de chuva como essa, e num sábado, quando todo mundo está por aí, nos bares, cinemas e clubes conversando, rindo, dançando, fazendo uma porção de coisas. Isso não é alegre. Mas, e se eu tivesse saído? Já sei: a volta, a entrada nesse quarto, os olhos pregados no escuro e aquele peso oprimindo o coração. É difícil, muito difícil. E não serve de nada pensar nisso. Eu devia pensar numa coisa mais agradável. Você, Tiu, não compreende porque é um animal, mas eu vou te dizer: gente é uma coisa muito triste. Muito triste. E é por isso que a gente bebe, que eu estou aqui bebendo, e que todo mundo bebe. A bebida faz a gente esquecer um pouco. Depois piora, ela aumenta a tristeza, e a gente fica mais triste ainda. Mas na hora é bom, ela ajuda a esquecer um pouco. Pelo menos um pouco a gente pode esquecer. E é por isso que a bebida é boa, e que eu bebo, e que todo mundo bebe. É por isso. Por causa disso.

(Chuva, Luiz Vilela)

***

Bingo, Desireê.

Incesto.

Agora não há mais saída. Na verdade, nunca houve. Antes, contudo, eu ainda não sabia disso. Antes dos pés na estrada, apenas pensava coisas como ‘basta pisar na estrada que um dia, quem sabe numa chuva de outono, num domingo morto ou no meio de um passe de mágica tudo ficará para trás e então o que eu fui finalmente será parte de mim, uma parte verdadeiramente minha’. Bastaram os pés na estrada para saber que os pés na estrada não bastavam simplesmente porque o bastante não é o suficiente.

O asfalto é o mesmo, negro, contínuo, que no limite se mistura com o calor do sol, ao fundo, formando uma espécie de alucinação, de tremor. Andando a gente percebe que as pedras no caminho e mesmo os pequenos buracos das grandes crateras não passam de asfalto. O horizonte não chega, faça sol ou faça sol. A gente aprende também que a chuva não deixa de ser uma forma que o sol adquire para tentar nos fazer criar átimos de esperança. Você bebe a água que cai, com desespero contido limpa o corpo imundo, contidamente desesperada a pele enruga. Os olhos transbordam. Você aprende a gritar e a comemorar o segredo do que não existe. A roupa, encharcada, não pesa a pressa. O sol entra dentro de você e quando o temporal acaba, pede passagem de volta, por meio do suor, para restaurar o horizonte árido. Nas margens, há areia. Uma areia amarelada, fina, formada por grãos desérticos, grãos que ficam mais visíveis quanto menores-espelhos - quando alçados à solidão pela ação do vento. Vez por outras, cactos quebram temporariamente a monotonia da paisagem. Há quem veja beleza nesses vegetais. Não porque existam, mas porque insistam em viver de resquícios, porque possuem uma profundidade invisível e, portanto, reconhecível. Um oásis perdido numa aparência grotesca, disforme, em meio a espinhos.

De cima:

O sol e o cacto.
O horizonte e o cacto.
A estrada e o cacto.
O cacto e o cacto.

O cacto prossegue enquanto o cacto permanece. A procura e o encontro por um instante se tocam e se despendem. O sol, a estrada, o deserto, a chuva e a cegueira. O tempo é tudo isso misturado e separado.

‘Sempre em frente, soldado, marchar! A sua hora há de chegar’. Este era o lema da estrada. É pelo lema que se acostuma a crescer. É pela lama. Antes da estrada há estradas que você não percorre. Todo falatório sempre se resume a comandos como ‘não desista nem se deixe enganar’; ‘o sol há de te iluminar’; ‘existem tentações, mas permaneça na estrada’; ou ‘a estrada é sempre o caminho mais curto’, este último modo é particularmente interessante porque ele simula uma ilusão de escolha, quando na prática não há concessão: estrada ou estrago, quando estrago é apenas um sinônimo de estrada, afinal, quem é o louco que há de preferi-lo?

Foi num dia, numa terça-feira de domingo, em abril, quero dizer, em dezembro, que eu parei de andar. Foi nesse dia singular - como todos os dias iguais sempre nos parecem – que eu parei de andar e me sentei no chão e me dei conta que eu mesmo já não passava de uma estrada. Naquele instante, sentado, chão eu me indaguei: o que havia realmente diferente entre mim e o caminho? Pensei comigo ‘e se eu morrer, o que eu vou me tornar’? ‘Isso se eu pudesse morrer, porque só morre quem é vivo e a estrada não é viva, é piche’, prossegui. Piche.

Rebobinei a fita.

- Quem é o louco que há de preferir o estrago à estrada?

Louco. Estrago. Estrada. Sanidade insana ou uma insanidade sã?

Câmera lenta.

.despendem se e tocam se instante um por encontro o e procura A. permanece cacto o enquanto prossegue cacto O

Play.

O cacto prossegue enquanto o cacto permanece. A procura e o encontro por um instante se tocam e se despendem.

O cacto. Uma erva daninha contaminando a estrada. A porta de saída da estrada, uma porta de entrada. ‘Por que não?’ e, convenhamos, por que não? Era preciso sentir. Por isso, coloquei o meu dedo indicador em um dos espinhos. Não hesitei. Apertei com força.

Retirei o espinho do meu dedo. Não gritei. Não consegui. Não. Simplesmente não. Meu coração disparou. Finalmente qualquer espasmo de dor latejando em mim. Os meus olhos pouco acostumados a enxergarem, repararam na existência de um pequeno, quase invisível pontinho vermelho que escorria primeiro aos poucos, sob a forma de um filete, para, em seguida, ganhar volume e sair caudalosamente, do meu dedo. A areia, seca, amarela, nua, estéril recebeu sentiu em sua pele morta um pouco de vermelho.

Cessada a saída daquele líquido vermelho, pude observar que no cacto, de onde aquele espinho fora removido, um líquido incolor timidamente extravasava os limites do verde. Não era água, apenas. De repente, o líquido saiu com raiva. Apenas um jato. Pequeno, porém grandioso porque, enfim.

Estrada
Ex-trada.
Estrago.

Toda forma de comunhão nasce de uma destruição - vermelho-incolor no amarelo.

Uma possibilidade em meio à certeza:

Ge-ni-al.

É ela, Agora é diferente, ela é diferentevamos ver no que vai dar, é sério; nunca senti isso!eu sei que é clichê mas agora é sério, tudo que eu queria acho que eu amo, q u a s e, deixa pra semana que vem o próximo mês, é quando a gente menos espera, eu sinto, não sei explicar, eu não sei, talvez seja o tempo, ainda é cedo”, amanhã eu falo, tempo, eu não sei, você está pressionando as coisas!, você não entende,
o quê?
eu apenas sinto, eu não vou repetir, o que? você confundiu as coisas, o que? eu te avisei, você é amelhor pessoa do mundo!, eu não entendo,
você tem que mudar, elas existem, você é que não percebe,
eu não consigo corresponder a sua expectativa, aconteceu, eu não sei,
não é você, é comigo, você é a melhor pessoa do mundo!
eu te avisei, você não me merece, você confundiu as coisas!,Amigos, OK?,
TE ODEIO,
te ligo amanhã?(…)
É ela, Agora é diferente, ela é diferentevamos ver no que vai dar, é sério; nunca senti isso!

(…) ad infinitum

(Relações Afetivas em Tag., Jonathan Tadeu)

Das micro-distinções.

Uma coisa é dizer que alguém nos faz feliz. Outra coisa, bastante diferente, é dizer que uma pessoa é capaz de nos livrar de nossas tristezas. A diferença entre estes personagens corresponde a um abismo na lembrança.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Pro dia morrer feliz.

Beto Cupertino:

Show do retorno!

Voltaremos aos palcos deste país abençoado por deus e bonito por natureza no dia 6 de setembro no Festival Garimpo em Belo Horizonte!

Saudade das terras mineiras! Tocamos lá apenas uma vez em 2003, ainda divulgando o Aurora Prisma.

***

Remorri.

***

Outra genial do genial Jonathan:

Pois se aqui é paz e monotonia,
do lado de lá
a luz não deixa ver
que a terra prometida
é apenas esse tédio reprisado
que vivemos
entre um susto e outro.
E o inferno
é passar a vida inteira
tentando acreditar nessas canções.


***

Ok Ok.

Pro dia nascer feliz...

...basta sorrir amarelo!

Notas sobre a trajetória (2).

Não importa o que aconteça, o retorno é sempre mais difícil do que a partida.

domingo, 9 de agosto de 2009

No ponto.

O ônibus passa sempre antes ou depois da hora.
Nunca no momento desejado.

A raiz do problema.

- Sabe qual é a raiz do problema, cara?
- Diga!
- Você concorda que a vida é uma farsa, não é?
- Sim. Ponto pacífico.
- Aí que tá: na vida prática a gente acaba não levando isso ao pé da letra.
- Como assim?
- É que no fundo no fundo a gente não consegue ou talvez não queira se conformar com isso.

sábado, 8 de agosto de 2009

Complexo de Coxinoy.

Sou o Raskolnikov da ejaculação!

(Alex Portnoy em Complexo de Portnoy, de Philip Roth)

Benesses da vida.

Eu acho que há duas formas de se ver o mundo: uma delas é quando a vida é boa. Talvez algumas coisas estejam erradas, mas você não vê. E a outra forma é quando você vê o que realmente é. Quando você vê que isso está sempre lá, mesmo quando parece bom.

(O Mundo de Leeland)

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Obscenidades.

Chorei, chorei
Até ficar com dó de mim
E me tranquei no camarim
Tomei o calmante, o excitante
E um bocado de gim

Amaldiçoei
O dia em que te conheci
Com muitos brilhos me vesti
Depois me pintei, me pintei
Me pintei, me pintei

Cantei, cantei
Como é cruel cantar assim
E num instante de ilusão
Te vi pelo salão
A caçoar de mim

Não me troquei
Voltei correndo ao nosso lar
Voltei pra me certificar
Que tu nunca mais vais voltar
Vais voltar, vais voltar

Cantei, cantei
Nem sei como eu cantava assim
Só sei que todo o cabaré
Me aplaudiu de pé
Quando cheguei ao fim

Mas não pisei
Voltei correndo ao nosso lar
Voltei pra me certificar
Que nunca mais vais voltar

Cantei, cantei
Jamais cantei tão lindo assim
E os homens lá pedindo bis
Bêbados e febris
A se rasgar por mim

Chorei, chorei
Até ficar com dó de mim

(Bastidores, Chico Buarque)

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Plagiando.

Assim ‘falou’ Caden Cotard em Sinédoque Nova York:

Tudo é mais complicado do que você pensa.
Você vê apenas um décimo do que é verdade.
Há um milhão de pequenos textos anexados a cada escolha que você faz.
Você pode destruir sua vida, cada vez que você escolher, mas talvez você não saberá por 20 anos.
E você talvez nunca, jamais localize a fonte.
E você tem apenas uma chance pra jogar isto fora.
Basta tentar e descobrir seu próprio divórcio.
E eles dizem que não existe destino, mas existe. É o que você cria.
E mesmo que o mundo continue por eras e eras você está aqui apenas por uma fração de uma fração de segundo.
A maior parte do seu tempo é gasto sendo morto ou ainda não nascido.
Mas enquanto está vivo, você espera em vão, desperdiçando anos por um telefonema, uma carta ou um olhar de alguém ou alguma coisa para fazer tudo certo.
E isso nunca vem ou parece vir, mas não vem realmente.
Então você passa seu tempo em vago arrependimento ou vaga esperança que alguma coisa boa virá adiante.
Algo pra fazer você se sentir conectado.
Algo pra fazer você se sentir inteiro.
Algo pra fazer você se sentir amado.
E a verdade é... Eu sinto tanta raiva!
E a verdade é que eu sinto a maldita tristeza!
E a verdade é... Eu tenho me sentido fudidamente magoado por muito tempo!
E por muito tempo eu venho fingindo que estou bem apenas pra seguir adiante, apenas para..
Eu nao sei porque.
Talvez porque ninguem queira ouvir sobre meu sofrimento.
Porque eles têm os seus próprios.

Foda-se todo mundo.


***

Agradecimento especial pelo 'Ctrl C + Ctrl V': Jonathan Tadeu.

Dez livros.

1. O Homem Ortogonal, R. R. McFarley.
2. Sobre Heróis e Tumbas, Ernesto Sábato.
3. A Obscena Senhora D, Hilda Hilst.
4. A Legião dos Enganados, Teckeb Leumas
5. Breviário de Decomposição, Emil Cioran.
6. O Homem Sem Qualidades, Robert Musil.
7. Técnicas de Masturbação entre Batman e Robin, Efraim Medina-Reyes.
8. Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, Clarice Lispector.
9. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse.
10. O Deserto dos Tátaros, Dino Buzzati.

Das qualidades.

- Bate-pronto: qual a qualidade que você mais admira em uma pessoa?
- Não sei se eu posso chamar isso de qualidade - eu diria até que, na verdade, trata-se de um defeito crasso -, mas a característica que mais me agrada em uma pessoa é o... ci-nis-mo.
- Por que?
- Você não sabe? Oh céus... Oras, porque eles são os únicos que ainda acreditam no futuro da humanidade...

Ciorando (5).

A vida só é tolerável pelo grau de mistificação que se põe nela. Um modelo baseado na franqueza seria a ruína da sociedade, pois a “doçura” de viver em comum reside na impossibilidade de dar livre curso ao infinito de nossos pensamentos ocultos. É porque somos todos impostores que nos suportamos uns aos outros. Quem não aceitasse mentir veria a terra fugir sob seus pés; estamos biologicamente obrigados ao falso. Não há herói moral que não seja ou pueril, ou ineficaz, ou inautêntico; pois a verdadeira autenticidade é o aviltamento na fraude, no decoro da adulação pública e da difamação secreta. Se nossos semelhantes pudessem constatar nossas opiniões sobre eles, o amor, a amizade, o devotamento seriam riscados para sempre dos dicionários; e se tivéssemos a coragem de olhar cara a cara as dúvidas que concebemos timidamente sobre nós mesmos, nenhum de nós proferiria um “eu” sem envergonhar-se. A dissimulação arrasta tudo o que vive, desde o troglodita até o cético. Como só o respeito das aparências nos separa dos cadáveres, precisar o fundo das coisas e dos seres é perecer; conformemo-nos a um nada mais agradável; nossa constituição só tolera uma certa dose de verdade…

(Breviário da Decomposição, Emil Cioran)

Das efusividades.

Desconfie sempre daqueles que insistem em fazer questão de querer demonstrar com convicção efusiva algo na presença alheia: a platéia em questão serve apenas para respaudar uma tentativa - e esse é o grande verbo da frase - de auto-convencimento. Tentativa esta que, com frequencia, não costuma ser bem sucedida.

Um (belo) exemplo:

Soube que um casal que mora aqui perto da minha casa se separou após mais de 25 anos juntos. É estranho pois eles eram muito felizes (demonstravam isso a todo momento) e eram instrutores de terapias de casal. Uma vez eles disseram que amavam mais um ao outro do que os próprios filhos. Além disso, eram muito religiosos e sempre estavam rezando pelos relacionamentos alheios e ajudando outros casais a se entenderem... fiquei chocada com a separação, ainda mais sabendo que houve traição.

Dos tempos imemoriais.

Quem foi que nunca ouviu frases como 'mas hoje em dia, fulano, a coisa passou dos limites' ou 'no meu tempo as coisas eram diferentes'? Eu acho muito engraçado de ver como as pessoas sempre evocam a pureza perdida de um tempo que jamais existiu - sem sequer se darem conta que no passado não apenas o mesmo fenomeno se repetia, como, com efeito, acontecia de maneira ainda pior. Isso só prova que a ilusão - nesse caso por via de uma nostalgia mítica -, com seu consequente auto-engano, é a maneira mais eficiente que os seres humanos encontraram para suportar as suas vidas. Olhar para o lado, observar a crueza e simplesmente aceitá-la tal qual a mesma é pode ser um caminho sem volta.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Freud não é Fraude.

Título auto-explicativo.

Nada além da car...

No ônibus.

- ...
- ...
- ...
- ...
- ...
- Hahahaha.
- ...
- ...
- ...
- Esse ônibus vai para o terminal central?
- Vai sim!
- (...).
- (...).

Subsolo.

- Cara, ainda bem que você apareceu aqui. Eu tenho que te contar uma coisa urgente.
- Pode falar, rapaz.
- É que ontem eu descobri uma coisa que me deixou completamente estarrecido.
- Que coisa?
- Eu tava com a Maura ontem e uma hora reparei que ela tem um problema na vista que eu nunca tinha enxergado antes. Acho que ela é vesga, mas como ela só tirava fotos de perfil, eu nunca tinha percebido isso. Não sei se eu vou conseguir me sentir a vontade de novo quando estiver com ela
- Vamos com calma, cara.
- Não sei se eu vou conseguir me sentir a vontade de novo quando estiver ao lado dela. Vou te mostrar uma fotografia dela para você ver.
- Tudo bem.
- Olha aqui.
- Mas eu não estou vendo nada.
- Um olho está mais para dentro do que o outro.
- Cara, eu continuo dizendo que não estou vendo nada disso. Ela me parece normal.
- Você está querendo me enganar, me consolar, não é?
- Não teria motivo nenhum para isso. Porque se eu tivesse vendo a diferença, eu te diria na hora. E nem por isso, nem que ela realmente tenha esse ‘defeito’ eu acho que você deveria se afastar dela ou criar qualquer tipo de caso, afinal, todo mundo – e até quem você acredita ser perfeito – tem alguma característica imperfeita, por assim dizer. Basta olhar para você mesmo. E mesmo assim ela gosta de você, te trata bem e pelo que você me fala, te faz feliz, certo?
- Eu sei, você tem razão, mas olha só...
- Ah, agora eu vi! Realmente você tem razão! Tem um defeito sim. Como é que pôde me passar despercebido, cara? Mas fica tranqüilo. Não tem nada a ver com a fotografia. O problema é vista cansada: a sua, de tanto procurar algum defeito na Maura para poder criar um subterfúgio e sair de fininho dessa relação antes que você realmente se envolva, perca o controle e corra o risco de ser surpreendido por algum tipo de sofrimento, acertei?
- É...
- Cuidado, porque quem procura uma hora encontra. E quando encontra, perde.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Ciorando (4).

a. No pessimista combina-se uma bondade ineficaz e uma maldade insatisfeita.

b. Somente o idiota está equipado para respirar.

c. O segredo de um ser coincide com os sofrimentos que espera.

d. "Senhor, sem ti estou louco, mas mais louco ainda contigo". Esse seria, no melhor dos casos, o resultado do contato entre o fracassado de baixo e o fracassado de cima.

(Silogimos da Amargura, Emil Cioran)

Morrendo.

Quisera viver significasse apenas e tão somente viver. Mas não. Viver, para além de viver e, portanto, de ser, inclui também o não-ser. Não há como fugir, quero dizer, de realmente deixar de vivenciar todas as vidas que nos são dadas a simples possibilidade de viver. Escolher mais do que propriamente eliminar é, por excelência, saber. Dessa multiplicidade de vidas paralelas que a gente vive, seja concretamente, seja imaginariamente, nasce a própria idéia da morte.