sexta-feira, 25 de março de 2011

Destino...

É difícil formular um juízo sobre a rebelião do menos filósofo dos anjos, sem mesclar nele simpatia, assombro e reprovação. A injustiça governa o universo. Tudo o que se constrói, tudo o que se desfaz, leva a impressão de uma fragilidade imunda, como se a matéria fosse o fruto de um escândalo no seio do nada. Cada ser se nutre da agonia de outro ser; os instantes se precipitam como vampiros sobre a anemia do tempo; o mundo é um receptáculo de soluços... Neste matadouro, cruzar os braços ou sacar a espada são gestos igualmente vãos. Nenhum soberbo desencadeamento saberia sacudir o espaço nem enobrecer as almas. Triunfos e fracassos se sucedem segundo uma lei ignorada que tem por nome destino, nome ao qual recorremos quando, filosoficamente desguarnecidos, nossa estância, aqui abaixo ou não importa onde, nos parece sem solução e como uma maldição que devemos sofrer irracional e imerecidamente. Destino: palavra seleta na terminologia dos vencidos... Ávidos de uma nomenclatura para o irremediável, buscamos um alívio na invenção verbal, nas claridades suspensas sobre os nossos desastres. As palavras são caritativas: sua frágil realidade nos engana e nos consola...

(Emil Cioran)

sexta-feira, 18 de março de 2011

De volta à realidade.

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio! ...

(Sou Eu, Álvaro de Campos)

segunda-feira, 14 de março de 2011

Cotidiano.

As formas de se esconder são sempre suaves. Chove. Nem a madrugada mais consegue me consolar. Os acordes em progressão emulam uma profundidade que não é condizente com a circunstância. Há tempos não escrevo. Seria incorreto dizer que se trata de algum tipo de bloqueio criativo, afinal, o fluxo que liga o papel à grafite inexiste. Repetições me cansam. As variações se repetem. A borracha nunca apaga totalmente os traços, apenas dissimula a cicatriz que se mantém firme e forte, quero dizer, a planície foi alterada. Basta passar a mão com cuidado para sentir que ali tem muito mais do que um espaço vazio. A seiva ainda circula pelas veias invisíveis. Não eram cartas de amor. Nunca foram. Pequenos espasmos, perdidos em algum momento de distração, que por ironia ou desprezo – e aí pergunto, de quem?, para quê? -, se esqueceram de flutuar; fixaram-se como que escavando entre minas terrestres. Um passo em falso, uma martelada a mais e... Bem, e... E o teto despenca enquanto você procura a origem do zumbido, em vão. Aqui? Não. Ali? Não. Não. O ferrão vem, entra na sua pele, desnuda, queima. Simplesmente. Fogo? Gelo? O plano b: não, brisa não. É a borracha quem desliza.

(Outono, Julio Dupré)

quarta-feira, 9 de março de 2011

Maybe, Maybe...

Só existe uma forma de não nos arriscarmos a perder aqueles que poderíamos amar. É não permitindo que eles entrem em nossa vida.

(Talvez uma história de amor, Martin Page)