sábado, 31 de maio de 2008

It's just smoke.

Well I say it's just smoke
So you say it's the hair of ghosts
So I say it's the white hair of Poseidon
Ebbing in the tide in some dead sea

So you say it's some Shroud of Turin
And the sun wore it white and the earth wore it thin
Or the sun wore it white and His faith wore it thin
Unraveling heavenward
It's saddled to tiny birds
Or other such winged things
Either way they are struggling
Either way they are miniature
Either way they're invisible
But either way they're confused
As Hell would have them

And the pattern of flight is chaotic and blind
But it's right cause chaos is yours and it's mine
And chaos is luck and like love and love blind
The pattern of flight is chaotic and blind
But it's right cause chaos is yours and chaos is mine mine mine mine
And chaos is love and they say love is blind

But they're subject to hating us
Oh, just like the rest of us
Oh, we're just like the rest of us
They need the rest of us to stay alive
So thats not where confusion lies
That's not where illusions to the fact that the truth is just smoke in your eyes
Does lie

Confusion lies in which other wicked things do lie with
Confusion lies in which other wicked things do lie with
And chaos is yours
And chaos is mine
And chaos is love and they say love is blind

So I say oh I see now it's just smoke
So I say oh I see now it's just smoke
Oh I say oh I see now it's just smoke
Oh I say oh I see now it's just smoke

(Winged/Wicked Things, Sunset Rubdown)

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Um final sem um fim.

Ele se sentou à margem e esperou. E, como se sabe, toda espera guarda um limite, uma possibilidade, um quase – mesmo que tudo isso não passe de projeções alucinadas de um estado de pura blindagem interior. Diferente do que faz habitualmente, hoje ele resolveu não colocar uma barreira entre seus ouvidos e o mundo. Decidiu sair do seu mundo – embora não tenha saído efetivamente dele, ou talvez, com isso, tenha apenas tentado se aprofundar ao máximo em seu universo.

Esperou. E esperando permaneceu à margem. Esperou exatamente aquela espera que faz com que a estrada cumpra sua função de existir. Ficou imóvel. Pelo menos aparentemente, enquanto o que estava dentro se movimentava bruscamente, tentando se expulsar daquele limite tão frágil. De qualquer modo, apesar de todas as inconstâncias da sua respiração, havia certa serenidade em sua expressão. Talvez fingida, como eventualmente um ou outro riso que escapara naqueles momentos em que o fim parecia tão próximo.

Mas o fim não estava próximo. Porque no exato momento seguinte ele se dava conta que cada segundo parecia o começo de uma nova espera. O riso dissimulado não se modificava embora seu sentido, inapreensível como de costume, agora beijasse as mãos do desespero. Olhava quase que maquinalmente para seu relógio de pulso, por mais que soubesse que aquela informação não apontava para lugar algum. Tratava-se de uma espera sem saber exatamente o que se pretendia encontrar. Portanto não importava para ele que os dias passassem, que as estações se alterassem, que as horas corressem. Era inútil como o vento que tocava seu rosto. O tempo era sempre o mesmo tempo, embora revestido de maneiras distintas. Mas ainda assim, talvez por uma séria distração, ele não parava de olhar para o relógio até que, depois de muito tempo, ele mesmo, para os que passaram a ver aquela estranha condição, passou a ser um marcador de tempo.

Aquela espera tinha feito dele algo vivo por mais que efetivamente parecesse morto. A barba crescia. O cabelo crescia. As unhas cresciam. Mas sua vida – e não o seu tempo - parecia se contrair. De repente sem que ele se desse conta, da margem ele passou a ser o centro da atenção daqueles mesmos curiosos transeuntes que, incomodados, deram pela sua existência. Alguns alvoroçados o contemplavam como quem encontrasse a salvação, como quem sugerisse um caminho. Seria ele o novo messias? Tudo que se procura é justamente alguma mão, não é mesmo? No entanto, apesar dessa mudança, ele permanecia indiferente. Apenas se limitava a esperar, sentado, preso ainda à margem.

Olhava ao redor e não conseguia enxergar nada além de cores. Tudo eram cores, nada mais. Eventualmente esboçava alguns gestos que aqueles que o seguiam tentavam atribuir algum tipo de significado oculto a procura de alguma resposta. Nada além de gestos sem propósito que procuravam contornar o desgaste de seu corpo. O desespero dele aos poucos foi encontrando eco naqueles que o olhavam. A espera, com isso, parecia dividida embora ninguém ali se atrevesse a dizer o que esperavam diante daquele fato. Simplesmente esperavam. E pouco a pouco mais e mais pessoas comungavam com ele e aquela espera.

Um dia, olhou para seu relógio de pulso e notou que o mesmo, de repente, havia parado de funcionar. E pela primeira vez desde aquele dia que sua espera começou ele conseguiu distinguir formas entre as cores. Com isso ele percebeu a enorme quantidade de pessoas que estavam a seu redor. Achou estranho, evidentemente, afinal, em toda a sua vida não conseguia estabelecer quase nenhuma forma de comunicação com outro coração. Tentava e não adiantava. Faltava algo sempre. E agora lá estava ele perdido entre diferentes corações, em meio a tantas expectativas que não conseguiam encontrar propósito. E lá estava ele no centro daqueles corações que nada sabiam do sangue que circulava no seu. Havia apenas um silêncio compartilhado como se nele contivesse mais sentido que em qualquer palavra falada.

Foi quando, para a surpresa da multidão, ele se levantou. Todos os que estavam a seu redor apenas o olharam lentamente se dirigir para fora daquele furacão. Em seu lugar, apenas restou o olho, um vazio, o ponto central da circunferência. Ali pela metade do raio, ninguém mais conseguia distingui-lo entre as demais pessoas que se encontravam no lugar. Na presença, todos se pareciam na ausência. No entanto no olho do furacão era como se ele jamais tivesse saído dali; parecia haver magia e esperança para aquele tanto de gente que estava esperando. Para essas pessoas a espera finalmente havia conseguido encontrar algum fim – embora não se dessem conta de que nada havia mudado efetivamente em suas vidas. Mas ainda assim os mesmos passaram a se sentir um pouco maiores.

Já distante ele, ainda confuso, não entendia o que acabara de presenciar. Nada havia se modificado dentro daquele corpo até o momento em que ele, ao ver que uma jovem havia deixado cair sua bolsa no chão, pegou seu empecilho e correu em sua direção, para devolvê-lo. Sequer teve tempo para ter consciência de que ali a sua espera havia chegado ao fim. Um outro homem, mais atrás, confrontando sua aparência com a delicadeza da bolsa, apenas deduziu. Não bastou mais do que uma dedução e o sangue escorreu pela calçada. Enquanto isso, aquelas pessoas que o acompanharam por tanto tempo deixavam o centro se dirigindo à margem de suas vidas. No meio do caminho da volta dos cegos preenchidos havia, no centro, apenas um corpo inerte, vazio.

Mais um, Caio.

Feito febre, baixava às vezes nele aquela sensação de que nada daria jamais certo, que todos os esforços seriam para sempre inúteis, e coisa nenhuma de alguma forma se modificaria. Mais que sensação, densa certeza viscosa impedindo qualquer movimento em direção à luz. E além da certeza, a premonição de um futuro onde não haveria o menor esboço de uma espécie qualquer não sabia se de esperança, fé, alegria, mas certamente qualquer coisa assim.

Eram dias parados, aqueles. Por mais que se movimentasse em gestos cotidianos - acordar, comer, caminhar, dormir, dentro dele algo permanecia imóvel. Como se seu corpo fosse apenas a moldura do desenho de um rosto apoiado sobre uma das mãos, olhos fixos na distância. Ausentou-se, diriam ao vê-lo, se o vissem. E não seria verdade. Nesses dias, estava presente como nunca, tão pleno e perto que estava dentro do que chamaria - tivesse palavras, mas não as tinha ou não queria tê-las - vaga e precisamente de: A Grande Falta.

Era translúcida e gelada. Tivesse olhos, seriam certamente verdes, com remotas pupilas. À beira da praia certa vez encontrara um caco de garrafa tão burilado pelas ondas, areias e ventos que cintilava ao sol, pequena jóia vadia. Apertou-o entre os dedos, sentindo um frio anestésico que o impedia de perceber as gotas de sangue brotando mornas da palma da mão. Era assim A Grande Falta. Pudessem vê-lo, pudesse ver-se, veriam também o sangue, ele e os outros. Acontece que tornava-se invisível nesses dias. Olhando-se ao espelho, sabia de imediato que estava dentro Dela. No vidro, além dele mesmo, localizava apenas um claro reflexo esverdeado.

Ela estava tão dentro dele quanto ele dentro Dela. Intrincados, a ponto de um tornar-se ao mesmo tempo fundo e superfície do outro. Amenizava-se às vezes no decorrer do dia, nuvens que se dissipam, turvo de água clareando até o cair da noite surpreendê-lo nítido, passado a limpo, passado a ferro. Então sorria, dava telefonemas, cantava ou ia ao cinema. Mas em outras vezes adensava-se feito céu cada vez mais escuro, turvo agitado subindo do fundo, vidro bafejado. Sem dormir, fosforescia entre os lençóis ouvindo os ruídos da madrugada chegarem como abafados por uma grossa camada de algodão. Dissipava-se ou concentrava-se na manhã seguinte e, concentrando-se, não era uma manhã seguinte, mas apenas uma fluida e mansa continuação sem solavancos.

Seu maior medo era o destemor que sentia. Íntegro, sem mágoas nem carências ou expectativas. Inteiro, sem memórias nem fantasias. Mesmo o não-medo sequer sentia, pois não-dar-certo era o natural das coisas serem, imodificáveis, irredutíveis a qualquer tipo de esforço. Fosse íntimo das águas ou dos ares, teria quem sabe parâmetros para compreender esse quieto deslizar de peixe, ave. Criatura da terra, seu temor era quem sabe perder o apoio dos pés. E criatura do fogo, A Grande Falta crepitava em chamas dentro dele.

Sua invisibilidade no entanto não o invisibilizava: encadernava-o meticulosa em um determinado corpo e uma voz particular e uns gestos habituais e alguns trejeitos pessoais que, aparentemente, eram ele mesmo. Por isso não é verdade que não o veriam. Veriam e viam, sim, aquela casca reproduzindo com perfeição o externo dele. Tão perfeito que nem ao menos provocava suspeitas aumentando as pausas entre as palavras, demorando o olhar, ralentando o passo daquele falso corpo.

Atrás da casca, porém, o cristal incandescia. Debaixo da terra, fogo-fátuo soterrado tão profundamente que a pele nem reluzia.

Alguma coisa que jamais teria, e tão consciente estava dessa para sempre ausência que, por paradoxal que pareça, era completo nesse estado de carência plena. Isso acontecia apenas quando dentro Dela, pois ao desembarcar, em vez de sorrir ou fazer coisas, freqüentemente limitava-se a chorar penoso como se apenas a dor fosse capaz de devolvê-lo ao estágio anterior. A dor desconsolada e inconsolável, em soluços que o sacudiam cada vez mais fortemente, a cada um deles partindo-se a casca, quebrando-se a moldura, rachando-se o vidro, apagando-se o fogo.

Como uma outra espécie de felicidade, esse desembaraçar-se de uma também felicidade. Emerso, chafurdava em emoções: tinha desejos violentos, pequenas gulas, urgências perigosas, enternecimentos melados, ódios virulentos, tesões insaciáveis. Ouvia canções lamurientas, bebia para despertar fantasmas distraídos, relia ou escrevia cartas apaixonadas, transbordantes de rosas e abismos. Exausto, então, afogava-se num sono por vezes sem sonhos, por vezes - quando o ensaio geral das emoções artificialmente provocadas (mas que um dia, em outro plano, aquele da terra onde, supunha, gostava de pisar, aconteceriam realmente) não era suficiente - povoado com répteis frios, a tentar enlaçá-lo com tentáculos pegajosos e verdes olhos de pupilas verticais.

Não saberia dizer com certeza como nem quando aconteceu. Mas um dia - um certo dia, um dia qualquer, um dia banal - deu-se conta que. Não, realmente não saberia dizer ao menos do que dera-se conta. Mas foi assim: olhando-se ao espelho, pela manhã, percebeu o claro reflexo esverdeado. Está de volta, pensou. E no mesmo instante, tão imediatamente seguinte que confundiu-se com o anterior, cantava, novamente ele mesmo. No segundo verso, pequena contração, tinha novamente entre os dedos o caco de vidro luminoso. Mas antes que a mão sangrasse, havia preparado um drinque, embora fosse de manhã, e bebia lento, todo intenso. Antes de engolir o líquido, seu corpo ganhou vértices súbitos, emoldurando o desenho de um rosto apoiado sobre uma das mãos abertas, olhos fixos na distância.

Foi um dia movimentado, aquele. Sua casca partia-se e refazia-se, entardecer sombrio e meio-dia cegante intercalados. Fumou demais, sem terminar nenhum cigarro. Bebeu muitos cafés, deixando restos no fundo das xícaras. Exaltou-se, ausentou-se. No intervalo da ausência, distraía-se em chamá-la também, entre susto e fascínio, de A Grande Indiferença, ou A Grande Ausência, ou A Grande Partida, ou A Grande, ou A, ou. Na tentativa ou esperança, quem saberia, de conseguindo nomeá-la conseguir também controlá-la.

Não conseguiu. Desimportou-se com aquilo. Tomado a intervalos pelo anônimo, atravessou a tarde, varou a noite, entrou madrugada adentro para encontrar a manhã seguinte, e outra tarde, e outra noite ainda, e nova madrugada, e assim por diante. Durante anos. Até as têmporas ficarem grisalhas, até afundarem os sulcos em torno dos lábios. Houvesse uma pausa, teria pedido ajuda, embora não soubesse ao certo a quem nem como. Não houve. Mas porque as coisas são mesmo assim, talvez por certa magia, predestinações, sinais ou simplesmente acaso, quem saberá, ou ainda por ser natural que assim fosse, e menos que natural, inevitável, fatalidade, trágicos encantos - enfim, houve um dia, marco, em que o tocaram de leve no ombro.

Ele olhou para o lado. Ao lado havia Outra Pessoa. A Outra Pessoa olhava-o com cuidadosos olhos castanhos. Os cuidadosos olhos castanhos eram mornos, levemente preocupados, um pouco expectantes. As transformações tinham se tornado tão aceleradas que, no primeiro momento, não soube dizer se a Outra Pessoa via a ele ou a Ela, se se dirigia à moldura, à casca, ao cristal ou ao desenho, ao corpo original, às gotas de sangue. Isso num primeiro momento. Num segundo, teve certeza absoluta que se tinha desinvisibilizado. A Outra Pessoa olhava para uma coisa que não era uma coisa, era ele mesmo. Ele mesmo olhava para uma coisa que não era uma coisa, era Outra Pessoa. O coração dele batia e batia, cheio de sangue. Pousada sobre seu ombro, a mão da Outra Pessoa tinha veias cheias de sangue, latejando suaves.

Alguma coisa explodiu, partida em cacos. A partir de então, tudo ficou ainda mais complicado. E mais real.

(Transformações - Uma Fábula, Caio Fernando Abreu)

Decifra-me ou devoro-te.

Martim
Francisco

belos nomes

não saem da minha
cabecinha de insana
criatura

tão na lista
de quem procura
nomes pros bebês
pros 'filhotes'
pras crias
pra prole?
vai saber...
quem sabe estão é na lista
de quem não sabe
o que fazer
nos domingos de manhã.

vai ver tão na lista
de quem ainda busca prazer,
maciez, doçura, rima ruim
cura... cura?
outra babaquice
de doer, mas
ainda tem quem procura.

vai ver
são nomes de sonho
nomes pra
santa idolatrada salve salve
literatice/literatura

Martim
Francisco

são nomes que me dizem
que posso ser louca & limitada
mas nessa coisa não estou errada

Francisco
Martim

são nomes na encruzilhada.
e isso é concreto. concreto.concreto.
concreto.concreto.

Não te peço nunca nada.
Acho que faz tempo não apelo
e pras merdas que você diz
dou muito pouca porrada.

Mas queria que por esses dias
parasse de agredir.
Que me deixasse em paz.

Me deixasse sonhar
não com cães famintos, rostos de cera, fantasmagóricos violoncelos
que tocam sozinhos às 5h55,
antes da alvorada.

Não com uma mão firme
que me tira da escuridão
mas pra me levar para um
branquíssimo cemitério.
Branquíssimo. Com túmulos
brancos, nuvens brancas, sol branco, grama branca.
Com portas batentes...
portas de sepulcros
que batem sem que haja vento.

Que fosse procurar inspiração
pros seus poemas em lugar mais
tranqüilo
que sumisse dos meus sonhos
(que já começo a esquecer)
Ou tentasse me deixar sonhar
De novo
Com um caminho de terra
vermelha e uma idéia menos dura de luz.

Uma árvore.
Uma casa simples e sem muro.
Uma não. Duas.
Um homem direto, com corpo, cheiro, garganta e voz. Mais nada.

Mais nada.
Só uma
pequena
estrada.

(Eu-Você)

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Comentários sobre os comentários.

O que você, Cintia, espera da sua vida? Eu vivo aqui tentando quase que maquinalmente entender o que cada pessoa espera da sua vida. E tudo parece sempre tão paradoxal, tão estranho, tão inexplicável... O ‘Caos’. ‘O que eu posso oferecer é a destruição da sua paz’, cantou meu querido Beto Cupertino em ‘Corpo e Só’, canção presente no bom ‘A Redenção dos Corpos’, ultimo petardo do Violins. Pareceria deslocada uma frase dessas caso ela não fizesse tanto sentido. Em meio a tantas músicas que bradam a delicadeza do amor romântico, pacífico, tranqüilo, equilibrado, um verso como esse parece chocante. Afinal de contas, o que nós, de modo geral, procuramos em vida: amor ou a dor? O caos ou a paz, a ordem? E o que me parece é que a dor, a frustração sempre acaba nos prometendo mais do que a realização da conquista. Na verdade a promessa na maioria das vezes é sempre maior do que a realidade pode cumprir e, nesse ponto, a opção pela dor acaba sendo uma solução que tampona as nossas expectativas. O gostinho do não vivido parece que tem um sabor adocicadamente amargo. Eu poderia ter sido feliz... O gostinho do poderia é sempre refrescante. A mente fervilha, o corpo sofre, o coração bate rasgadamente e você percebe que está vivo. O caos está instaurado! O percurso acaba sendo mais gostoso que o fim, como acontece na maioria dos filmes, talvez a Thais me dissesse. Tudo isso está certo. Só que a busca pelo caos sempre encobre uma busca pela paz. Engraçado isso não é? Você sente todo aquele caos dentro de si, fervilhando integralmente, desejando paz. Sua paz chama caos. E de fato, o caos tem esse prazer mórbido, masoquista talvez. Eu confesso que gosto do caos embora procure nele algo de pacífico. Mas sei também que apesar de nos dizerem que a vida deve ser pautada pela busca da harmonia, o que acontece de fato é o oposto: viver é deixar aflorar os conflitos que existem dentro de cada um de nós. Viver é um estado de permanente conflito; é ter a capacidade de olhar para fora e se sentir um estrangeiro dentro de si. Porque é esse conflito que nos leva ao caos, que nos faz querer, desejar, modificar. É exatamente a prazerosa dor ou o doloroso prazer (que no limite são a mesma coisa) que nos faz querer viver, mesmo que muitas vezes digamos que preferíamos estar mortos.

Que tipo de salvação você espera, Cintia? Mais uma pergunta que fica no ar. De fato concordo com você que em última instância a salvação não passa de ilusão: estamos todos perdidos. Só que nessa perdição, nesse caminho sem rumo, sem chão para pisar, que se estabelece a magia do viver: as pessoas se apóiam mutuamente e cada uma, empurrando a outra para um caminho, apontando para outra a direção, encontra sua própria salvação. A cabeça às vezes é realmente dura: só pega no tranco, não é mesmo? Só que as portas é você e sua cabeça dura (como a minha, como a de todo mundo) quem as constrói. E você tem a liberdade de entrar e sair delas. São os únicos caminhos possíveis que te levam ao impossível. Não sei se ouvir a música do Beck por 43 minutos pode te ajudar, hehehe. Mas acho que atrapalhar não vai. De qualquer modo eu recomento as 8 músicas restantes acrescidas de mais 3 que provisoriamente completam o cd que estou montando aqui: The Smashing Pumpkins - Porcelina of the Vast Oceans, Black Rebel Motorcycle Club – Howl e Jeff Buckley - Lover, You Should've Come Over. Porque eu acredito piamente que uma dessas portas, que uma das formas de salvar as nossas vidas cotidianamente é ouvindo música.

Para terminar de comentar o seu pequeno comentário, menina, eu gostaria de dizer que a fala do Magnólia não entra muito em oposição a questão do caos, como você tentou mostrar. E eu diria que é sempre muito mais difícil fazer aquilo que é mais simples. Rodear, andar em círculos, se negar, se enganar, falar por metáforas, ser evasivo é muito mais fácil. Sobre isso, caso te interesse e você ainda não tenha lido, vale a pena dar uma lida num conto maravilhoso do Caio Fernando Abreu chamado ‘Para uma avenca partindo’, que, inclusive (hora do jabá!), eu publiquei há alguns dias atrás nesse mesmo blog.

De qualquer maneira, desde já gostaria de dizer que foi um prazer ter a oportunidade de lhe conhecer um pouquinho, agradecer sua postagem e dizer que passarei a freqüentar seu blog!

segunda-feira, 26 de maio de 2008

'Magnolia 3 x 0' ou 'Palavras sobre a salvação'.

Muita gente acha que é simplesmente um emprego. Na hora do almoço e no fim do expediente você o esquece. Mas você é policial 24 horas por dia. Não tem como ser diferente. E o que as pessoas não entendem é como é difícil fazer a coisa certa. Se tomo uma decisão as pessoas acham que as estou julgando. Mas não é isso o que eu faço. Não é o que deve ser feito. Tenho que analisar cada situação antes de tomar uma decisão. Às vezes as pessoas precisam de ajuda. Às vezes as pessoas precisam ser perdoadas. E, às vezes, elas precisam ir para a cadeia. E não é nada fácil para eu tomar uma decisão. Isto é, lei é lei. E eu não quero infringi-la. Mas você pode perdoar uma pessoa. Bem, essa é a parte difícil. O que podemos perdoar? Essa é a parte difícil do trabalho. A parte difícil de ser um ser humano.

Eu só queria vir aqui, vir aqui e dizer uma coisa. Algo importante. Algo que você disse. Disse que devíamos dizer coisas e fazer coisas. Não mentir, não ocultar nada. Essas coisas que matam os relacionamentos. Eu vou fazer isso. Vou fazer o que você disse, Cláudia. Não posso abrir mão disso. Não posso abrir mão de você. Agora... Agora ouça-me. Você é uma boa pessoa. Você é uma pessoa boa e bonita. E não vou permitir que você me deixe. E não vou permitir que você diga que ‘é estúpida, que é isso e aquilo’. Não vou tolerar isso. Se quiser ficar comigo então fique comigo. Entende?

(Fala do policial Jim em Magnolia)

domingo, 25 de maio de 2008

Nove atos pro dia nascer feliz.

1. Sunset Rubdown - Us Ones In Between (4:26)
2. Interpol - Take You On a Cruise (4:54)
3. Radiohead - Nude (4:15)
4. Wolf Parade - Same Ghost Every Night (5:44)
5. British Sea Power - No Need To Cry (3:43)
6. Portishead - It's a Fire (3:51)
7. Wilco - Ashes of American Flags (4:44)
8. My Bloody Valentine - Sometimes (5:19)
9.
Beck - Everybody's Gotta Learn Sometimes (5:54)

Total: 42:50 min.

Fragmento.

Pois então, eu agüentei. Mas não gosto de contar isso a ninguém, não gosto de tirar a fé das pessoas, a fé num lindo equívoco, que origina tantos sofrimentos, mas também muitas coisas maravilhosas: atos heróicos, obras de arte, esforços humanos extraordinários. Você se acha num estado de espírito desses, eu sei. Ainda assim quer que eu diga?…

Bem, se você quer. Mas depois não fique zangada comigo. Veja, querida, Deus me surrou e me castigou com isso, com o fato de que eu descobri e suportei e não morri. O que descobri?… Bem, que não existe mulher de verdade.

Um dia despertei, sentei na cama e sorri. Nada mais doía. E de súbito compreendi que não existe mulher de verdade. Nem na terra nem no céu. Não existe em lugar algum, aquela. Existem apenas pessoas, e em todas há um grão da verdadeira, e nenhuma delas tem o que do outro nós esperamos e desejamos. Não existe pessoa completa, e não existe aquela, a única, a maravilhosa, plenamente satisfatória, excepcional. Existem apenas pessoas, e em cada pessoa existe também tudo, dejeto e luz, tudo… Lázár sabia disso quando à porta da sua casa eu me despedi e ele silenciou, sorriu, porque eu disse que ia embora e procuraria a mulher de verdade para o meu marido. Ele sabia que ela não existe em lugar algum… Mas ele calou, e depois foi para Roma e escreveu um livro. No final, os escritores sempre fazem isso.

Meu marido, coitado, não era escritor; era um burguês e um artista que não tinha uma forma de expressão. Por isso sofria. E, quando um dia apareceu Judit Áldozó, que ele acreditava ser a mulher de verdade, e ela usava colônia Atkinson e disse, meio à inglesa, no telefone: “Hello!”, nós nos separamos. Foi uma separação difícil, como eu disse, levei embora até mesmo o piano.

Ele não se casou com ela logo, mas somente depois de um ano. Como eles vivem?… Acho que bem. Você viu há pouco, ele estava levando cascas de laranja cristalizada para ela.

Só que ele envelheceu. Não muito, mas de um modo triste. Que acha, ele já sabe?… Receio que seja tarde quando descobrir; nesse meio-tempo a vida terá passado.
Veja, eles vão fechar mesmo.

Sim?… O que você está perguntando? Por que eu chorei há pouco, quando o vi? Se um dia passa a não existir mais a mulher de verdade e tudo acaba e a gente se cura, por que comecei a passar pó no rosto quando ouvi que ele ainda guardava a carteira de crocodilo? Espere, vou pensar. Acho que sei a resposta. No meu constrangimento, comecei a passar pó no rosto porque a mulher de verdade não existe, porque as ilusões passam, mas eu gosto dele, e isso faz toda a diferença. Quando gostamos de uma pessoa, o coração bate forte sempre que ouvimos falar nela ou a vemos. Na realidade, acredito que tudo passe, a não ser o amor. Mas isso não tem mais nenhum significado prático.

Um beijo, querida. Terça que vem de novo aqui, você quer?… Conversamos tão bem. Por volta das seis e quinze, se for bom para você. Não muito mais tarde. Eu certamente estarei aqui às seis e quinze.

(De Verdade, Sandor Márai)

Pequenas bobagens.

And I am a creature.
And I am survivin’.
And I want to be alone
But I want your body.
So when you eat me,
Mother and baby,
Oh baby, mother me,
Before you eat me.

sábado, 24 de maio de 2008

Pisando em solo lunar.

Havia alguma beleza. Mas nada que me chamasse muita atenção – ainda mais quando se costuma trabalhar com certas tipologias. Como é que se diz mesmo? Você não faz meu tipo. Realmente não faz. Mas certamente eu reconhecia haver ali alguma beleza.

Quando comentei a seu respeito com uma amiga ela me disse:

- Ela é bonita. Mas não é o meu tipo de beleza.

Concordei na hora, apesar de haver alguma euforia. Lembro de todos os detalhes, da situação constrangedora e de nossas maravilhosas atuações. Atuo tão mal que com certeza seria um grande ator. Talvez por pertencer a um tipo excêntrico, porém universal.

Mas a euforia passou. Tudo passa não é mesmo?

A segunda vez foi ainda mais peculiar que a primeira. Peculiar não: estranha. Bem quando eu estava terminando de comer um salgado você apareceu. Engoli tudo de uma só vez, seco. E ai me concentrei: hora de pisar no palco. Quem não me conhece pensa que eu sou calmo. Ledo engano. Goffman iria se orgulhar bastante de mim, penso eu. Fato é que você se sentou ao meu lado de novo. Isso é fato, inegável, por mais que o jornalismo muitas vezes seja uma fraude. E quando isso aconteceu, isso de você se sentar ao meu lado, eu comecei a me revirar por dentro.

Gosto desse seu jeito de chegar de repente, sem nem pedir licença. Você chegou e sentou. Simplesmente isso. Olhou para mim e estendeu o polegar no mesmo instante que seu rosto fez uma expressão tão... Indefinível. Não sei descrever. Não consigo achar palavras. Nem se eu tivesse todas as folhas de papel do mundo para escrever eu conseguiria transmitir a mesma sensação. Mas em sua expressão eu podia notar certo exagero. Aliás, exagero é uma palavra que tem muito a ver com você.

Silêncio.

Eu não sabia o que dizer. Eu sou melhor ouvinte do que falante. Ainda mais quando fico nervoso. E eu estava nervoso. Calmamente nervoso. O silêncio me incomodava e isso não é um bom sinal. Mas não era aquele tipo de incômodo que acontece quando alguém que a gente não tolera se senta bem ao nosso lado. É silêncio distinto. É aquele que acontece quando a gente quer tanto falar alguma coisa mas não consegue. Incomoda porque a gente sabe que as ondas sonoras haviam de existir naquele momento. Foi quando seu celular tocou. E nessa altura lá tava eu com um livrinho na mão, com os olhos aqui e os ouvidos ai.

Fim do silêncio.

Eu falo tão baixo e tão pra dentro. E já você é toda falante. Pareço sempre menos interessado-nte do que realmente sou. E nesse dia você estava particularmente bonita. Cabelos curtos. Lembro que você até me perguntou se seu novo corte parecia com o da menina da frente. De fato era igual. Eu confirmei. Você sorriu amarelo. Não sei se por perceber que seu estilo não era único, não sei se por não ouvir de mim o que eu deveria ter dito. Embora eu acredite ser pelo motivo um, acho que a solução dois te faria se sentir melhor; ganharia seu dia, por assim dizer.

Meia-calça preta fio 40 tamanho M.

Tudo graças a uma meia-calça preta fio 40 tamanho M. Foi por isso que ganhei um tempinho a mais com você. Não havia pretensão, devo admitir. Até aquele momento não. De qualquer modo foi bom você me dizer que não gosta de cheiro de incenso porque eu simplesmente detesto esses aromas. E ai que tudo começou de verdade. No caminho de volta.

Na semana seguinte eu tomei a liberdade de tentar ajudar o meu destino. Consegui. Eu lhe trouxe o texto que havia prometido por alto. Não era um texto qualquer, de fato. Assim como eu percebi que meu primeiro olhar me traíra: você não era uma pessoa qualquer. Ainda mais com aquela sandália e as unhas dos pés pintadas de vermelho. Não que eu tenha uma particular fascinação por vermelho mas é que naquele dia vermelho era tudo que eu precisava.

Dessa vez não houve silêncio embora a sua intromissão fosse a mesma. Seu rosto é estranho. Suas expressões são estranhas. Mas quando você fica eufórica eu isso sinto na minha pele. E de repente eu me deparei com uma gargalhada que há muito eu não presenciava. Entrei em outro mundo. Ainda não foi dessa vez que entrei no seu mundo embora tenha dado um primeiro passo. Mesmas crises, mesmas reclamações. E reclamar sempre é tão gostoso. Gostoso como quando você, exagerada, perdia o controle das mãos e tocava em meus braços, de leve. Gostoso como quando os pelos da sua pele ficavam todos eriçados. Pena que é sempre mais difícil conseguir dizer o que se deve da maneira mais simples.

O que ficou na lembrança foram dois pés pequenos com unhas vermelhas pisando em solo lunar e um pequeno aviso:

Bem vinda à superfície.

Retrato.

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?

(Cecília Meireles)

sexta-feira, 23 de maio de 2008

A música do momento.

He made an enemy then
he made an enemy of all of you
It's him, not you
You never heard it from me
But there's a breech in the hull where the truth
And the water's too deep to prove

He made an enemy then
He made an enemy of all of you
It's him, not you
It's a little red sea
Let the miracle worker go free
See the paddle go up and the paddle go down
See the paddle go up and the paddle go down
See the paddle go up and the paddle go down
And a man falls in the sea

He was a man of many nations
Had a hundred souls and a hundred to go
He was a man of many nations
Two hearts, two hands, it's a slippery slope
He had a fear of being naked
But you're any other man in another man's clothes
He was a man of many nations
With revelations, oh revelations
He wrote a book about the Bible
He wrote a book about men in the sky
He wrote a book about the smell of the winter and then two...
A little less simple to decipher
Saying "I am the water at the foot of the palms,
Or I am sand and wind, and a shitty mirage,
But either way, I'm a man of many nations!"

Was it the mending of the gown,
Or the running it around?
Was it the mending of the gown,
Or the running and the running it around?

She had a name, she had a spirit
She had a line in the play if you waited to hear it
But a master of disguises...
Her demise was her design, they said
"Was it the mending of the gown
or the running and the running and the running it around?"

She said: "My name and my spirit are both corrupted
If you hold me close you gotta hold me up!
It was the tender meaning of this slender gown
That brought me bending to the ground

Now you'll wear any old thing, oh you'll wear any old thing
So she wrapped herself in swaddling
That the fever deviated to a broken wing
"It's an act, I think she's just pretending"
"It's an act, I think she's just pretending"

And I will burn the virgin flags
And I will shake (shake) as the heat waves in the sand
This one's for Maggie (This one's for Maggie)
This one's for Sam (This one's for Sam)
This one's for Maggie (This one's for Maggie)
This one's for Sam (This one's for Sam)
Or any other random spirit lover busted
I have lusted after you

The way bloodsuckers do
The way bloodsuckers do
The way bloodsuckers do

Was it the mending of the gown,
Or the running it around?
Was it the mending of the gown,
Or the running it around?

It was the tender mending of this slender gown
That brought me bending to the ground
But this ship was built to go down
See the paddle go up and the paddle go down
See the paddle go up and the paddle go down
See the paddle go up and the paddle go down
See the paddle go up and the paddle go down
Oh oh oh oh oh oh Oh oh oh oh Oh

(The Mending Of The Gown, Sunset 'Spencer Krug' Rubdown)

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Tentativas vãs.

I am an American aquarium drinker
I assassin down the avenue
I'm hiding out in the big city blinking
What was I thinking when I let go of you?

Let's forget about the tongue-tied lightning
Let's undress just like cross-eyed strangers
This is not a joke, so please stop smiling
What was I thinking when I said it didn't hurt?

I want to glide through those brown eyes dreaming
Take it from the inside, baby hold on tight
You were so right when you said that I've been drinking
What was I thinking when I said good night?

I want to hold you in the Bible-black predawn
You're quite a quiet domino, bury me now
Take off your Band-Aid because I don't believe in touchdowns
What was I thinking when I said hello?

I'd always thought that if I held you tightly
You'd always love me like you did back then
Then I fell asleep and the city kept blinking
What was I thinking when I let you back in?

I am trying to break your heart
I am trying to break your heart
But still I'd be lying if I said it wasn't easy
I am trying to break your heart

Disposable Dixie-cup drinking
I assassin down the avenue
I'm hiding out in the big city blinking
What was I thinking when I let go of you?

Loves you
I'm the man who loves you

(I Am Trying To Break Your Heart, Wilco)

terça-feira, 20 de maio de 2008

Monólogo (3).

Projeto em mim vários homens que confundem o absurdo pra tentar construir um todo sem contradição, mas o conflito se instaura quando entra um personagem que se tranca no ar:

- Lancei mão do improviso, fiz da sua lágrima o meu quintal. Mas, à parte do mundo, sou um monólogo de um par.

- Não faça do seu quintal o mundo todo é um grande sertão. O sol da aridez começa e termina dentro de um mesmo porão, a razão.

- Por favor, o silêncio também algo a falar. Pois as minhas palavras não conseguem silenciar.

- Se você acha que se fechar em si é a melhor solução, você se esquece que é apenas fruto de um intervalo assim, sem razão.

Eu vou sair de casa para me despir, deixar de lado o céu, interromper, voltar, criar, desconstruir. E vou radiografar tudo que eu sentir, cada pedaço seu que anestesia os meus sentidos, esquecer...

Vou devolver ao calendário as estações que faltam
Vestir de novo a vida que eu coloquei de molho
Mas, e se um dia o seu sol não raiar?
Pra onde é que eu vou fugir? Me diz...
E se o meu sonho acabar quando você me procurar lá fora?

Monólogo (2).

Para onde vão minhas palavras,
se já não me escutas?
Para onde iriam, quando me escutavas?
E quando me escutaste? - Nunca.

Perdido, perdido. Ai, tudo foi perdido!
Eu e tu perdemos tudo.
Suplicávamos o infinito.
Só nos deram o mundo.

De um lado das águas, de um lado da morte,
tua sede brilhou nas águas escuras.
E hoje, que barca te socorre?
Que deus te abraça? Com que deus lutas?

Eu, nas sombras. Eu, pelas sombras,
com as minhas perguntas.
Para quê? Para quê? Rodas tontas,
em campos de areias longas
e de nuvens muitas.

(Cecília Meireles)

Monólogo.

Orfeu:

Ai, que agonia que você me deu
Meu amor! que impressão, que pesadelo!
Como se eu te estivesse vendo morta
Longe como uma morta...

Eurídice:

Morta eu estou.
Morta de amor, eu estou; morta e enterrada
Com cruz por cima e tudo!

Orfeu (sorrindo):

Namorada!
Vai bem depressa. Deus te leve. Aqui
Ficam os meus restos a esperar por ti
Que dás vida!

(Eurídice atira-lhe um beijo e sai).

Mulher mais adorada!
Agora que não estás, deixa que rompa
O meu peito em soluços! Te enrustiste
Em minha vida; e cada hora que passa
E' mais porque te amar, a hora derrama
O seu óleo de amor, em mim, amada...
E sabes de uma coisa? cada vez
Que o sofrimento vem, essa saudade
De estar perto, se longe, ou estar mais perto
Se perto, - que é que eu sei! essa agonia
De viver fraco, o peito extravasado
O mel correndo; essa incapacidade
De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso
Que é bem capaz de confundir o espírito
De um homem - nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga
Esse contentamento, essa harmonia
Esse corpo! e me dizes essas coisas
Que me dão essa fôrça, essa coragem
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim! sem ti sou nada
Sou coisa sem razão, jogada, sou
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice...
Coisa incompreensível! A existência
Sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos. Tu
És a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo, minha amiga
Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! criatura! quem
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu
Cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres - que êle, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho que eu vou te seguindo
No pensamento e aqui me deixo rente
Quando voltares, pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo!
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que eu estarei contigo!

(Orfeu da Conceição, Vinícius de Moraes)

domingo, 18 de maio de 2008

Inversões.

É da natureza do jogo. Eu entendi a inversão, mas dissimulei e preferi dizer que não. Tanto eu quanto você sabíamos o que eu estava querendo esconder. O passado sempre bate à porta querendo acertar as contas. E sim, a minha insatisfação, na verdade a minha raiva, tinha a sua razão de ser. Eu estava inflamado. E se o assunto é tão recorrente é porque alguma coisa de relevante realmente existe. Do contrário ele não surgiria sempre.

Tempo vai, tempo vem. O mundo mudo muda mas nada muda em mim. A insatisfação se mistura com a nostalgia do que não aconteceu e que jamais acontecerá. Não se trata de arrependimento, até porque fiz o que estava ao meu alcance à época. E principalmente depois. Nesse meio tempo até ganhei um presente. Um presente de grego, mas um presente. Um presente que me reportava ao passado, embora quisesse apontar para algo além, para um futuro. Presente, passado, futuro: formas de olhar para algo que na verdade não existe. Aliás, se alguém souber, por favor, me falem de alguma que existe para além da camada que a gente usa para recobrir o mundo? Tudo não passa de um efeito de concreto. E é nesse efeito que o jogo se desenrola, nessa fábrica de memórias.

Eu sou um reflexo do meu passado. De novo o clichê que você, que não é você, evoca. Será mesmo? Será tão simples assim? É sutil, mas a resposta é a oposta: o meu passado é produto do meu presente. Justo porque o passado não é um dado concreto. O passado, como já disse, é simplesmente massa da modelar; é intangível. A todo momento você pega nele com as mãos do presente e rearticula os sentidos de acordo com o instante já. Mas não adianta dizer isso. Aliás: não adianta gritar quando se fala com alguém surdo. E basicamente é isso que acontece entre a gente: dois monólogos. E dois monólogos não significam a existência de um diálogo. Não existe um acordo mínimo, um consenso.

Ainda há pouco estava me lembrando de você ter me dito que estava com saudades de mim. E me pus a pensar sobre isso. Saudades de mim? Não. Você tem saudades de você mesma. Porque na sua vida eu nunca fui nada além de uma projeção física de você mesma. Eu nunca fui eu mesmo, com carne, sangue e desejo. Eu fui o que você quis enxergar sobre você, um espelho um pouco mais contestador e sincero. Mas nunca fui nada exterior a você. E nessa condição, da mesma maneira que eu aderia com minhas patas em seu universo cerebral, estúpido, mágico e patético, eu permanecia à margem. Não havia reciprocidade. Aliás, acho que em nenhum momento da minha vida com qualquer pessoa que fosse tenha havido essa reciprocidade de fato. Justo porque por não ser um outro eu era meio, jamais fim. Só que nesse jogo eu entrava em imersão e não compreendia a lógica perversa na qual estava encerrado. Quando entendi não havia mais o que ser feito: perdi o prazo de validade. E nisso eu fui percebendo a fragilidade das suas inversões, das inversões que são feitas de maneira geral. E você sabe que eu nunca tive vocação para ator, super-herói ou qualquer coisa do gênero. Eu nunca consegui ser nada além do que eu sou.

E até hoje isso jamais foi algo suficiente para me libertar do estigma de ser eu mesmo – mesmo que diferente. A imagem que você tem de mim é incoerente justo porque na verdade você nunca soube quem eu sou, ou quem eu estou sendo. Pega todo o senso comum da vida e joga na minha cara sem perceber o absurdo do que diz. Dissimula. Esconde todo o medo que tem do que eu digo. E quando vem me bater, sem saber, não percebe que a força retorna contra a sua própria mão; contra o seu coração e a seus pensamentos, para ser mais claro. Mas mesmo assim isso de nada adianta. Assim como não adianta eu dizer que não. Porque sim, porque se não fizesse sentido eu não ficaria perturbado.

É tão difícil acreditar no que se sente. É tão difícil acreditar em outrem.

Enquanto a gente pensar que se eu te dou a minha chave você vai querer me trancar, realmente não há como sair dessa lógica viciada. Se eu te dou a minha mão não é porque eu quero te bater. Se eu te olho, se eu te enxergo, não há assepsia em mim – mas talvez haja em você mesma. Demorei muito tempo para entender isso. O diferente intimida. E aí temos mais uma inversão – transforma-se o muito em pouco simplesmente porque é mais fácil de lidar com isso. Fragmenta-se o processo: reduz o todo à parte que convém para se convencer (ou tentar se convencer) de algo.

Mas cansa. Tudo na vida um dia cansa. Os jogos cansam. As dores cansam. Os amores e as fases – principalmente essa maldita fase 2 - também. O cansaço toma conta do corpo.

Poderia ser mais doce.

It's just the nature of the game.

Time after time
You will forgive me
Like an animal in your care
But give it time
You will outlive me
And take the bow back you put in my hair

Made a parade of myself in the street outside your house
For the New York photographer there
I fell for crime and I fell for beauty
I fell for you because you're the only one that cared

And when I die
You can put on costumes
In the style of the clothes I wore
And sing the songs your lover taught you
When you were too young to know that this was what they were for.

La la la la. La la la la. Lalala

Like some dead relative
You will remember me most by my funeral
And all the beautiful toasts you made
Take back the spade
We've both been filling up our days like we were filling in a grave

You let me hang, hang, hang around
You put your ribbons in my hair
It's in this language that I found
I am an animal in your care

An animal in your care
An animal in your care
An animal in your care

It's in this language that I've found
I am an animal in your care

(An Animal In Your Care, Wolf Parade)

sábado, 17 de maio de 2008

Trechinho qualquer.

Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina - ela repetiu olhando-se bem nos olhos em frente ao espelho. Ou quando começa: certos sustos na boca do estômago. Como carrinho de montanha-russa, naquele momento lá no alto, justo antes de despencar em direção. Em direção a quê? Depois de subidas e descidas, em direção àquele insuportável ponto seco de agora.

(Os Sapatinhos Vermelhos, Caio Fernando Abreu).

***

Velhas lembranças e paralelos...

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Final Feliz? ou Plano C.

Hoje era o dia D. D de deadline, é claro. Não havia como fugir. Na verdade, não havia o que fazer. Não tinha plano B. Nem plano A.

Às 8 horas da manhã o despertador tocou. Em tese eu deveria cumprir com meu bom e velho ritual de levantar, tomar meu banho, fazer a minha higiene pessoal, pegar o ônibus e zarpar para a faculdade a fim de assistir mais uma aulinha do meu curso. Eu disse em tese. Essa não era uma quinta-feira qualquer. Se fosse, a preguiça não teria me vencido. Será?

Saí da cama por volta do meio-dia. Vocês sabem como é o jornalismo: cada hora a mais é uma hora a menos. Considerando que em condições normais o horário comercial termina às 18 horas, as quatro horas que ganhei de sono foram quatro horas que perdi para conseguir que alguma fonte me fornecesse uma entrevista. Logo, a essa altura eu tinha apenas seis horinhas de sobrevida antes da forca. E como eu já lhes disse, não tinha plano B. Meu plano A, tão bonito e cuidadoso já tinha ido para o espaço. Ou não?

Não, não tinha.

Segundo-tempo. Na prorrogação, já nos segundos finais do jogo foi que eu consegui a minha tão sonhada entrevista sobre a implementação do Segundo-Tempo no Centro Pedagógico (CP) da UFMG. Com um nome de projeto desses a minha entrevista só podia sair mesmo em condições bem emocionantes. Mas como não disse o maquiavélico Maquiavel, o que importam são os fins, não os meios. Um e-mail inesperado e milagroso chegou bem cedinho, precisamente ás 7:24h à minha caixa de entrada retornando um pedido de entrevista que eu havia feito dias antes. Na hora eu pensei: hoje é o meu dia! Pensem comigo: quando eu relatei minha rotina pré-faculdade em nenhum momento eu mencionei que uma das atividades que a compunham era a de ‘olhar o meu e-mail’. Ou seja: se eu tivesse ido para a faculdade pela manhã, teria freqüentado a minha aula, almoçado, resolvido um compromisso eventual e voltado para minha casa – enforcado sem a minha matéria, provavelmente. E provavelmente eu mesmo me enforcaria quando aqui chegasse e lesse na minha caixa de entrada que, enquanto eu estava lá na faculdade, meu entrevistado estaria potencialmente à minha espera a poucos metros de mim. Mas não. Eu lembro de ter dito que esta quinta-feira não era uma quinta-feira qualquer! Era o meu dia, oras! Era mesmo?

Sim! Ou pelo menos tudo indicava que sim! Logo que saí de casa, por volta das 13:20h, o meu ônibus apareceu no ponto. Se a gente pensar na ‘murphologia’ se lembrará que a velocidade com a qual aparecem os nossos ônibus quando a gente deseja é inversamente proporcional à nossa pressa. Mas hoje o mundo estava a meu favor. Parecia até que todo mundo estava abrindo espaço para que eu passasse livremente! Não à toa o ônibus voou baixo e eu, flutuando ao som do meu radinho, cheguei rapidamente e radiante à faculdade. Meu entrevistado estaria no CP a partir das 14 horas, horário este em que pisei na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da UFMG onde antes eu teria que conseguir uma autorização do Colegiado do meu curso para a realização de outra matéria jornalística. Coisa boba, coisa rápida. Só durou... uma hora de espera! Tudo bem: era o meu dia! Certo?

Bem, apesar da minha dor de cabeça, que havia começado há pouco, tudo ainda indicava que sim! No caminho entre os prédios, inclusive, surgiram algumas interessantes sugestões de perguntas a serem feitas para o Ricardo, meu entrevistado, coordenador do projeto Segundo-Tempo no CP. Assim que cheguei ao local, corri até uma mesinha para anotar minhas perguntas antes que eu as esquecesse e fui até a secretaria saber onde eu poderia encontrá-lo.

- Olá boa tarde! Você sabe onde eu posso encontrar o professor Ricardo?
- Ricardo Augusto?
- O Ricardo que coordena o projeto Segundo-Tempo.
- Ele mesmo! O gabinete dele fica no piso térreo. É a última sala do bloco de lá.
- Obrigado!

Era o dia do caçador!

Segui as instruções da moça da secretaria e com facilidade cheguei até o lugar indicado. Um cartaz do projeto afixado na porta não me deixou nenhuma dúvida. Foi quando eu bati na porta e não ouvi retorno. Tentei abrir e ela estava trancada. Não: era dia da caça! Nãããããããããooooooooooo. Pedi informações em uma sala ao lado para me certificar se era realmente ali que o professor Ricardo costumava se encontrar. O rapaz foi solicito, saiu da sua sala e disse:

- Ta vendo aquele bebedouro ali? Você entra à direita e encontra a sala dele.

Por um momento cheguei até a acreditar que havia um corredor que desembocava em outra sala, pela descrição que eu havia escutado há pouco. Mas não. O lugar era exatamente o mesmo onde eu havia estado anteriormente. Nãããããããããooooooooooo(2).

Não me lembro porque motivo, resolvi voltar e fiquei nas proximidades da entrada do CP. Foi quando eu percebi um rapaz com uma camisa da seleção brasileira se deslocando na direção do tal gabinete. Vocês sabem bem como são os filmes: precisam de criar aquela tensão antes de desembocar no happy-ending. O protagonista tem que tomar um sustinho antes de conseguir o que deseja. E, convenhamos, eu parecia ser o grande protagonista! Tive até uma daquelas cenas clássicas de intuição! Ou vocês já se esqueceram que eu disse: Não me lembro porque motivo, resolvi voltar e fiquei nas proximidades da entrada do CP! Intuição, oras! U-hu! Ai, no meu momento ‘Indiana Jones’, fui correndo até a minha última cruzada: o rapaz havia aberto a sala! Um slow motion com certeza iria deixar a cena emocionante! E quando finalmente retorno ao cenário, na última cena, aquela que vai explicar tudo, vejo o rapaz de costas. Ele vira e eu pergunto:

- Você é o Ricardo, não é?

Põe a trilha de suspense ai!

Um, dois, três segundos de silêncio infernal...

Claro que não teve isso, afinal, a vida real não é um filme. Eu acho.

- Não.

(Nãããããããããooooooooooo(3)).

E ele continuou.

- Ele acabou de ir embora.

Eu retruquei:

- E não volta hoje?

O rapaz disse:

- Não.

E como um punhal, sentenciou a ironia da situação:

- Tá vendo aquele carro saindo ali? É o dele.

Só me restou olhar o carro, já na rua, se deslocando lentamente – talvez não tão lentamente assim, mas um slow motion com certeza enfatizaria todo o drama da situação.

Não havia mais o que fazer a não ser dizer um bye bye, para dentro. Mais um filme da vida real sem final feliz. Diga-se de passagem, um anti-filme: vai dando tudo certo até chegar no final e dar tudo errado. Mas será que seria tão errado assim?

Plano A, melou.
Plano B eu não tinha.

Foi quando percebi o plano C, o presente da situação: fazer do drama final a própria comédia.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

A - B

Foi ali que tudo começou – mesmo sem começar. Não se faça de desentendida. Você sabe muito bem disso. Foi ali mesmo, quando eu estava compenetrado escolhendo uma música para ouvir em meu radinho. Ok, não era uma música qualquer. Pelo menos No Need To Cry, do British Sea Power, não é aquele tipo de música que costuma passar despercebida aos meus ouvidos. De volta à superfície, no intervalo entre abrir a mochila e voltar a respirar você surgiu. Assim mesmo, de repente, sem mais nem menos. Precisava fazer isso dessa maneira? Parecia até que você já me conhecia de longa data... Até agora me pego olhando para os lados com a esperança de que você ressurja...

Não, não sou chegado na moda embora eu deva admitir que goste dela. Realmente o vestir é uma arte, vencida na maioria das vezes pela simplicidade. Sei que alguém que estava vestido como um menino criado pela vovó, com uma camisa de gola não é a pessoa mais adequada para falar no assunto. Mas foi exatamente o seu estilo pessoal que me fisgou quando você apareceu no meu quadro de visão: aquele tênis pequeno, vermelho, com uma calça xadrez, blusa de frio preta e um pequeno agasalho vermelho aberto. Tudo em perfeita harmonia com seu cabelo cacheado, curto, desgrenhado; tudo ali, no lugar, combinando com o seu rosto que eu sequer sabia bem como definir, cujo estranhamento me vencia. Pronto: você me venceu. Isso mesmo: nocaute. Parabéns! Por trás da minha barba eu não parava de te encarar e você, como que brincando, como que se divertindo com aquela sua bolsa de arquiteta hipponga, entrava no jogo e sustentava o olhar.

Quando meu ônibus chegou senti medo: seria este também o seu? Sim, felizmente (será?) era. Tive certeza quando te vi dando sinal. E pensar que quase nunca eu pego esse ônibus mas hoje, logo hoje resolvi fazer diferente. E ai você entrou na minha frente. E ai você brotou em mim. O hoje é o que importa. Sem pensar, naquele instante que me levantei do banco do ponto de ônibus percebi um desejo, uma excitação com a qual não estou habituado. Simplesmente aconteceu, veio. Quando eu tentei entrar no ônibus logo atrás de você, entre nossos corpos se interpôs uma senhora de idade. O meu pseudo-cavalheirismo falou mais alto e ela nos separou. Só que como ela se sentou rapidamente na parte anterior do ônibus eu consegui te alcançar ainda antes de você cruzar a roleta. Aqueles cabelos castanhos, desgrenhados... Não sei exatamente o que havia no seu corpo... Mas havia algo... Disso eu não tenho dúvida. Mas insisto que não sei dizer o que era. Logo eu que tenho a mania de querer saber tanto...

Você cruzou a catraca e se sentou exatamente onde eu previ: na primeira janela livre disponível. Agora não me recordo ao certo se havia outras. Apenas me parece que aquele lugar estava iluminado. Não entendi novamente o que você quis com isso: um convite ou isolamento? Vou ou não vou? Sento ou não sento? Sentei. Não, não ao seu lado, afinal, ia dar demais na cara – mas não era isso que eu, que você queria? Sentei exatamente na poltrona ao lado, apenas para te olhar. Você bem sabe que foi por isso, que eu fiz de caso pensado. E eu bem sei que você tirou a blusinha de frio e fez de travesseiro, que você fez todo aquele teatro do sono apenas para que eu te contemplasse sem muito constrangimento. Eu não sou bobo e se caí na sua armadilha foi com aquela velha inocência dos que há muito a perderam. E eu fico me perguntando daqui: pra que isso tudo? Pra que toda essa ma-fé, esse coxismo, cinismo, toda essa mediocridade? Pra que essa salada de desculpas? Entre nós havia um vão; não: em cada um de nós havia um vão. Mas nós não fomos. Quer dizer, nós ficamos. E enquanto ficávamos, íamos para lugar algum. Ficar ou ir, ir ou ficar... Íamos, ficávamos... E naquele teatro perdi meus olhos. Oras, eu simplesmente não tinha mais controle sobre a minha visão! Mal sabia eu o que em mim era meu e o que em mim já era seu. Fui perdendo tudo aos poucos enquanto você se limitava apenas a alguns poucos movimentos quase imperceptíveis, no ritmo do ônibus – embora você insistisse em mexer os pés maquinalmente. Suas mãos estavam presas no encosto do banco da frente. Na verdade uma de suas mãos, apenas. E quando eu te olhava sem meus olhos eu não sentia nenhum vestígio do passado. Nem uma pequena marquinha... Puxa vida... A essa altura, Things I Don’t Know ecoava em meus ouvidos. E tudo o que eu queria era berrar e gemer dentro daquele ônibus no compasso esquizofrênico empreendido pela voz do Krugão, meu eterno queridão. How does it feel? Para de fazer essa voz suplicante, Krug. Para. Por favor, não é hora nem lugar. How does it feel? Mas você gosta de me torturar mesmo. Quem? Vocês dois, seus dissimulados.

Foi quando numa dessas paradas entre A e B, num ponto x qualquer outro qualquer resolve dar o ar de sua graça. Desgraça! Poxa vida, como então te contemplar? Agora sim havia mais do que a (falta de) distância entre a gente. E mesmo sem fazer idéia você sabe bem que eu não sou contorcionista. Mas por você admito: vale o esforço. Pareci um avestruz ora tentando sem sucesso te olhar da forma como vinha fazendo, ora esticando o máximo possível para que você aparecesse no reflexo do espelho improvisado próximo à porta dianteira do ônibus. Mas eu sei que você também estava incomodada com isso. Tanto que tão rápido quanto possível tratou de arrumar uma posição mais confortável para você – e para mim. E nisso eu não conseguia parar de reparar na inquietação das suas penas, dos seus pés. Tênis vermelho, pequenino. Logo, pés pequenos, acho – será que seria possível o contrário? A essa altura o ar se encarregou de levar até minhas narinas um cheiro imperceptível. Como não podia deixar de ser, comecei a salivar. Jatos seguidos, como quem se prepara para última refeição de sua vida. Apetite. Não, era apenas desejo. Ai meu deus – em quem nem sequer acredito... Desejo. E você lá toda prosa, quieta, olhos fechados enquanto eu olhava cuidadosamente cada marca do seu rosto, as pequenas imperfeições, seu nariz, os seus traços. Não era cuidadosamente nem deseleixadamente. Era com-pul-si-va-men-te! Isso mesmo: com um desejo obsessivamente compulsivo, embora aparentemente asséptico. Não é possível tanto controle no olhar, tanta frieza. Mas como eu vou saber o que se passava em minha face se eu não consigo olhar para mim? Acho que queria estar asséptico para disfarçar o que eu não conseguia mais esconder. E você lá... De repente o banco atrás do meu fica vago. Trata-se da poltrona mais alta, visão privilegiada de um rei plebeu, praticamente um camarote. Sei que se você pudesse iria berrar u-huuuuuuuuuuuuuuuu!!! bem alto quando pulei para o banco detrás. O rapaz do meu lado, do seu lado, já estava achando aquilo tudo muito estranho. Ele não entendeu que aquele circo todo nada tinha a ver com ele. Tadinho...

Tadinho de mim, oras! Você lá com aquele teatro e eu, bem, e eu? Você me consumindo e eu, porra? Eu, eu, eu... Eu nem tava ali para ser bem franco. Queria tanta coisa... Quase nada... E o ônibus? Pois que eu me lembre ninguém havia parado o tempo e pouco a pouco B se aproximava. Imaginem toda tensão que me atravessava nesse momento. Ô-o-ooooooo-ô-ô-ô-ohhhhhhhhhhh! Para de berrar os sinos da catedral, Krug! Não, não, não... Bate ônibus. Não tinha dois andares mas ainda assim morrer ao seu lado (mesmo que não efetivamente – mas o que é a distância que nos separa se comparada àquela entre meu coração e a minha vida?) seria um enorme privilégio. Grand-finale. Mas era impossível haver ali qualquer acidente diferente daquele que já se desenhava desde que você apareceu em minha frente.

(Uma freada brusca)

Teria eu conseguido o impossível? Acabou? Poxa, bater aqui nesse jardim de infância seria um erro tão primário para um motorista de ônibus. Será que ele conseguiu? Será que eu consegui? Abri os olhos. Você saiu do ônibus. Lentamente. Fiquei imóvel enquanto meu espírito me abandonava em seu favor. O ônibus partiu. Não sobrou sequer um vestígio de futuro: nunca mais encontrei você, nem meu espírito, nem a mim.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Diagnóstico.

(Depois do examinar tacitamente os sintomas)

- E ai, o que eu tenho?
- Fase 2.
- E isso dói?
- É tão desagradável que eu não queria que você passasse por ela.


O problema é que ele realmente sabe o que diz.

domingo, 11 de maio de 2008

Um tiro na alma.

- Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualquer atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? Por isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que eu dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente e nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas as coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai ......... ............ ............. ............ .......... ........... ............. ............ ............ ............ ......... ........... ............ ............ sim, eu sei, eu vou escrever, não eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as botas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.

(Para uma avenca partindo, Caio Fernando Abreu)

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Um texto bonito.

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

(Dois ou três almoços, uns silêncios - Fragmentos disso que chamamos de "minha vida", Caio Fernando Abreu)

terça-feira, 6 de maio de 2008

Alter-Ego ou Quebra-Cabeça (3)

Jane Burnham – Beleza Americana

Jane...
Jane...
Jane...

O retorno desta seção não poderia ter um pretexto melhor. Olhar para a Jane é um verdadeiro convite a se enxergar a Thais. Já faz um bom tempo que penso em traçar um paralelo entre as duas mas não por conta do óbvio ululante: a semelhança estética entre ambas, que salta aos olhos. Há, nas entrelinhas, uma relação muito particular entre essas duas figuras, a meu ver expressa em alguns momentos por relações e posturas tanto diferentes que possuem um significado mais geral bastante próximo. Sendo assim, vamos começar pelo que é mais evidente: a insegurança.

Insegurança é uma faca de dois gumes, a meu ver: ela pode tanto guardar um determinado charme, quando dá as mãos a volubilidade, quanto pode seguir no sentido diametralmente oposto, tendo um efeito completamente negativo. Felizmente tanto as duas personagens de quem tenho o privilégio de comentar sabem filtrar bem essa característica de modo a usá-la como um fator propulsor, ou melhor, sedutor. A insegurança que por vezes as duas tentam mascarar acaba por ser envolta por um ideal de mistério que as faz com que quem está de fora as queiram decifrar. E quando se tem a oportunidade de conhecer mais afundo a intimidade desse tipo de personagem, percebe-se a sua complexidade. É nesse ponto que Jane e a Thais novamente se entrelaçam: há em ambas a dicotomia fragilidade x maturidade. Por trás dessa insegurança há exatamente um paradoxo um maior o que torna essas pessoas tão interessantes. Particularmente se existe algo que eu gosto na Thais, que se aplicaria também a Jane caso ela extravasasse o limite da tela, seria uma total adequação em sua conduta para cada tipo de situação que se coloca a sua frente: tem humor quando se precisa; sabe ser séria; sabe ser profunda; sabe fazer pirraça; mas faz tudo isso de acordo com o que o momento pede o que a faz uma companhia extremamente agradável, fugindo do lugar comum da pessoa rasa e da pessoa cult. Tudo se liga nesse ponto de insegurança. Uma cena bonita quanto a isso, dentro do Beleza Americana diz do momento em que Ricky, em sua casa, consegue fazer com que Jane consiga se sentir bonita a ponto de mostrar para ele seus seios, parte de seu corpo que até então ela não gostava. De alguma forma essa insegurança quanto a aparência, ainda que diluída, está presente na Thais também, afinal, o parâmetro de beleza acaba sendo atravessado pelo olhar de aprovação ou reprovação de outra pessoa. Sobre esse ponto a beleza, muito mais do que um dado puramente concreto, diz de um sentimento sobre si mesmo com base em suposições dos que o cercam. Apenas para constar, reiterando a semelhança física entre a Thais e a Jane, as duas possuem um padrão de beleza que até então foge de um padrão dominante de uma busca pelo corpo perfeito, cheio de medidas precisas e sacrifícios. No entanto aquela beleza que verdadeiramente seduz e tortura está presente nas duas, porque, conforme eu já disse, elas são corpos que contém em sim mais do que corpos propriamente ditos. Há vida. Sim, há uma vida que dilacera e faz delas seres completos.

Dando prosseguimento, agora com ligações tanto quanto menos nítidas, há no filme uma tensão existente entre a personagem Jane e seus pais. Esse fato ao que me consta não pode ser transposto para a Thais, pelo menos de uma forma tão forte e direta quanto mostrada pelo filme. Só que por trás disso, sobretudo na vontade de Jane assassinar seu pai, há o que a liga à Thais: certa carência. Ok, é muito fácil fazer uma ligação dessas pois no fundo no fundo todos nós seres humanos somos seres de falta, como na concepção freudiana, e, portanto carentes. Só que, a meu ver, existem certos graus de carências, mais ou menos visíveis, explícitos. E nesse ponto há uma equivalência na carência entre a Jane e a Thais, que acaba sendo forte mas discreta, velada, até por conta de preocupação que ambas tem em tentar invisibilizar suas inseguranças. O que as duas querem, não apenas de seus respectivos pais, mas das pessoas que a cercam é um pouco de atenção e confiança. Isso me lembra um verso de Auto-Paparazzi, música do Violins: mas sei que você precisa de mais, só um pouco mais de atenção. Por outro lado, as duas também possuem um gênio forte e são desconfiadas o que pode dificultar uma aproximação de alguém de fora. Isso pode ficar claro pelo fato de que tanto a Jane quanto a Thais, em condições, digamos, rotineiras, costumam falar menos e escutar mais. Um desafio interessante é tentar fazer com que elas tomem a palavra, expressem o que estão sentindo, o que demanda justamente confiança e a já citada atenção, afinal, são pessoas que se revelam tímidas. Continuando essas considerações, vale a pena perceber também um esforço de ambas em se construir uma identidade própria, autônoma, independente de modismos ou de convenções já consolidadas, cada qual à sua maneira. Exemplo disso é a maquiagem forte que costumam utilizar. Há nelas uma imperfeição assumida, de certa maneira, o que também contribui para a questão da insegurança.

Outro ponto que me chama atenção é uma tendência das duas a, por vezes, negar o que se sente. Isso fica claro quando Jane, no início do filme, tenta esconder de Ângela e de si mesma uma atração que ela teve por Ricky, temendo ser censurada pela amiga. A Thais, de certa maneira, também as vezes acaba incorrendo nesse mesmo caso até que, em um dado momento, acaba aceitando o que se está sentindo, ainda que talvez não o faça de maneira explicita.

Por fim, reservo a cena mais bonita do Beleza Americana, qual seja, o encontro de Jane com Ricky no qual eles vêem a cena do saquinho plástico, para tocar em duas questões centrais presentes na supracitada Jane, bem como na Thais: a sensibilidade em relação à força. É incrível como essas duas personagens são extremamente sensíveis e fortes ao mesmo tempo. A maneira como a Jane suporta o Ricky enquanto este está compenetrado com a cena do filme diz muito da forma como a Thais leva a sua vida. É uma pessoa que embora não se dê conta possui uma força tremenda, uma capacidade simplesmente infindável. Ao mesmo tempo, sua força não é bruta – embora possa ser – mas tem toques de pincel, bastante pontuais, precisos, delicados e, por que não, singelos. Na corda bamba, a Thais se equilibra, ora envergando para um lado, ora par o outro, mas sempre guardando dentro de si uma força sincera que coexiste ao lado de sua fraqueza. Só que, ao contrário de algumas pessoas, ela entende o momento em que precisa ser forte e aquelas em que não é possível – embora nesses últimos precise saber que não há motivo para ter vergonha, ou algum medo. Por mais que a estrada invariavelmente seja tortuosa, há sempre beleza no percurso, que longe de ser um ‘anti-climax’ torturante, ao contrário disso se revela como sendo o verdadeiro clímax. E disso eu tenho certeza que a Thais sabe.

Bem me quer, mal me quer.

Quando termino de ler um texto que acabei de escrever, ele sempre me parece insuficiente, incompleto, vazio ou simplesmente bobo. Foi exatamente essa a impressão quando recentemente topei continuar com uma brincadeira um tanto quanto séria. Para ser franco adoro diálogos imaginários, até porque estou completamente envolvido por vários deles em meu cotidiano. No entanto, ontem quando reli um desses diálogos fiquei extremamente intrigado com um certo caráter ‘premonitório’ do mesmo. Claro que isso não passa de uma coincidência, mas ainda assim uma coincidência interessante. Sem querer a conversa fictícia acabou ganhando contornos reais em uma noite que se desenhou, de início, de uma forma atípica. Muito a ser dito, mas pouca coragem para se dizer. Foi quando não agüentei e atravessei a linha. Disse o que havia apenas falado pouco antes. E de repente, ao atravessar a linha consegui ouvir o que você tinha a me dizer e entendi o que até então você tinha apenas me falado. Um movimento tanto quanto simétrico, bem que se diga.

Notinha de rodapé.

Eu falei.
Você falou.
Eu não disse.
Nem você.

Silêncio - havia algo no ar.

Eu queria dizer
Mas não sabia como.
Você queria dizer
Mas não sabia como.

Não agüentei: eu disse.
Você não agüentou: também disse.

Fui dormir levando comigo, como de costume, suas palavras. É incrível como eu não consigo deixar de pensar no que você me diz. Acho que esse efeito mede a sua importância em minha vida: saber que tudo o que você me comunica é precioso, tem alguma urgência, por mais que em muitos casos eu tente cavoucar algum sentido escondido, implícito – que às vezes existe, mas às vezes não passa de mera suposição. Fiquei matutando um pouco e acabei por me lembrar de um texto que eu havia escrito há um tempinho que, de alguma maneira, tem muito a ver com a minha idéia de amor. Porque amor não é apenas amor, como algumas pessoas costumam supor: está bem além disso. O amor verdadeiro não é apenas doce, suave, com gostinho de chocolate. Talvez seja agridoce mas, muitas vezes é amargo. E machuca. E fere. E dói. E dilacera. Parece até que o amor veste a roupinha de não-amor só para provocar. Não a toa existe aquele clichê da rima amor e dor. Ok, é uma idéia completamente pobre para qualquer poeta. Só que na verdade o amor é uma dualidade por definição. Ele atravessa fronteiras, vai e volta, expande e retrai, engana e fala a verdade, brinca e bate. E as vezes essa dualidade soa incompreensível aos que teimam a acreditar no amor: ‘podia ser mais fácil’, dizem muitos dos idealistas. Não, meus filhos, não poderia ser mais fácil porque se não fosse assim, simplesmente não seria amor. E a dor nem sempre é voluntária: muitas vezes a gente machuca quem ama sem saber, achando que está protegendo, querendo o melhor. E mesmo assim machuca, fere e corta. Às vezes destrói justo porque quer tanto. Vai enteder... Mas não é para entender, porque amor quer o bem e quer o mal – ao mesmo tempo. Eu quero entender a mecânica de uma coisa que simplesmente não foi feita para ser entendida, justo porque, apesar de criada não tem o menor sentido: a vida – e, por extensão, o amor. Penso, penso, penso, suponho e não chego a lugar nenhum. Tautologia, andar em círculos. O mais irônico é que a dor que a gente provoca nos outros que a gente ama, mesmo que sem querer, acaba se voltando contra nós mesmos. Mais uma das traquinagens do amor. A flecha vai, acerta, e volta; quase um bumerangue. Só que essa dor que nos machuca, que nos angustia paradoxalmente é aquilo que a gente acaba procurando para se sentir vivo. Masoquismo? Isso mesmo. A gente reclama, mas não consegue viver sem a dor, sem a busca pelo vazio. Parece ilógico e a verdade é que tudo na vida de fato é ilógico. Pense numa vida livre de toda dor possível; melhor ainda: pense em quantas vezes você foge da dor apenas para sentir uma dor a que você já está acostumado – e para, ainda por cima, poder reclamar que está doendo. Sim, é loucura, mas acontece. E foi dentro desse contexto que você me disse que eu te machuquei. E maior do que a dor física é a dor simbólica. E foi justamente usando as palavras como porrete que acabei por te ferir – sem me dar conta. Advogado do diabo. E no fim das contas, apesar de tentar ser neutro, eu sei que acabo julgando, ainda que de maneira discreta, afinal, toda seleção aponta para um lugar. Acabo amando de uma forma tão intransigente quanto eu achava que não era. O amor é sempre parcial – mesmo quando se propõe altruísta. Não, não existe altruísmo – por mais que exista. Vai entender o que não foi feito para ser entendido...

domingo, 4 de maio de 2008

Última hora.

Grita que ama, que quer, que deseja. Grita, porra!
Ousa dizer o indizível que tanto te angustia.
Mostra, sem medo, que tem algo dentro desse corpo.
Não fale apenas, diga. E diga que seu coração arde, que o tempo está parado.
Poxa vida, apenas diga qualquer coisa que diga o que você sente.
Diga o trivial, que não se deixa esquecer, que se faz questão de lembrar.
Diga que o silêncio também incomoda, que a distância tortura e que o choro maltrata.
Por favor, apenas diga.
Tira as caixas do lugar, cria movimento.
A verdade se esconde dentro do cimento. Quebra o cimento, admita. Isso mesmo: admita.
Diz do sonho, diz de tudo, diga, diga, apenas diga.
Coloca o peito na frente da bala. Não importa o estrago. Aliás, estrago é colocar o colete. Estraga o coração que precisa da bala para bater.

Se nada vale a pena, ao menos diga.

sábado, 3 de maio de 2008

Indito.

Como dizer o que é indizível? Isso mesmo: como dizer o que é indizível? De certa forma essa é a grande pergunta que tem tomado conta de mim nessa última semana. Até que ponto realmente o indizível de fato é indizível? Ou será que não se trata pura e simplesmente do meu velho e conhecido medo? De fato ainda estou em dúvida quanto a essas possibilidades, embora numa análise franca eu tenda a acreditar que o indizível nada tem realmente de indizível. É medo mesmo, confesso. Talvez nem isso: pode ser a inutilidade de se dizer aquilo que a consciência não te faz esquecer e que você não gostaria de lembrar. Você tenta morder sua língua mas percebe que isso é inútil: pensar não requer língua. E mesmo que muitas vezes os pensamentos a princípio se revelem desconexos, o rastro fica registrado.

O bom da vida é pro cavalo que vê capim e come...
(João Guimarães Rosa)


Queria ser um cavalo. Ou um bicho qualquer. Lembro-me que, ao ter que escolher uma frase para estampar a ‘frase da semana’ do jornal mural, resolvi colocar exatamente esse pequeno excerto do Guimarães Rosa, aparentemente tão insignificante, mas que para mim possui um peso tão grande. De fato, fazia tempo que eu não evocava essa frase: às vezes a gente se surpreende. Foi assim que, sem mais nem menos, numa conversa fugidia – nos dois sentidos – meu primo tocou minha chaga mais profunda. Fiquei orgulhoso porque eu nunca pensei que esse tipo de questionamento se passasse dentro dele. Foi a segunda vez que ele me tocou profundamente o coração. Tem coisas que é difícil de se colocar em questão pois quem não faz idéia da existência do ‘eu’ que eu teimo em esconder poderia facilmente me condenar sem sequer me oferecer direito de defesa. É o preço de aceitar os dogmas – o que convenhamos, é sempre mais fácil. Só que às vezes eu tenho a chance de furar o bloqueio da máscara que eu coloco e, ainda que eu meça as minhas palavras, posso respirar um pouquinho. Infelizmente não posso dizer tudo porque tenho medo do efeito que minhas palavras possam causar na vida das pessoas com quem tenho a oportunidade de conversar. Mas o simples fato de poder dizer o mínimo é reconfortante, assim como saber que não se está só, por mais que a solidão lhe pareça ser sua verdadeira morada. O coração até parece bater nesses momentos; o coração consegue dizer o indizível nesses breves intervalos. Pena que quando eu estava começando a deixar o indizível fluir, coito interrompido – como sempre. As circunstâncias não se repetem do mesmo modo jamais. Parece um sonho sendo projetado na tela da vida e no meio da sessão simplesmente a energia acaba, como aconteceu ontem enquanto eu dormia pela tarde. Deu para ver o fotograma parando no melhor da cena. Acabou... Acabou! Acabou.

E é tão difícil dizer adeus...
Say hello to the angels…

- Não te dizer o que eu penso já é pensar em dizer.