domingo, 26 de abril de 2009

Plagi-Ana.

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.

Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.

E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.

Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.

Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.

...mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.

(Perdoando Deus, Clarice Lispector)

Sentimental.

Planta no vaso
Peixe no aquário
A madeira do móvel
O asfalto do chão

Quando encontro você
Não encontro razão
Eu quero correr
O pé no sapato
O asfalto do chão

Vem morar comigo
Neste apastamento
Estamos uns sobre os outros
E temos satisfação

Pavão Macaco
Lacônico
Macaco Pavão

Morfeu
Morfina menina
Menina quem irá nos minar?

(Pavão Macaco, Wado)

sexta-feira, 24 de abril de 2009

24 de Abril.

Dia internacional do mousse de maracujá.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Os Discos da Década - Primeiro Lugar.

1) Grandes Infiéis, Violins (2005)

Mais do que nunca a pergunta que cabe nesse momento é simples e direta: o que um disco precisa para ser considerado o mais importante de toda uma década? Coloco na roda este questionamento porque Grandes Infiéis não tem absolutamente nada de revolucionário em termos de estrutura melódica (olá Animal Collective!), não tem nenhuma dose de experimentalismo vanguardista (olá Radiohead!), nem interpretações ‘pseudo-intensas’ (olá Arcade Fire!), não foi nenhum furor nas pistas de dança (olá Franz Ferdinand!) muito menos foi capaz de causar qualquer tipo de rebuliço no comportamento juvenil (olá Strokes!) – embora talvez como nenhum outro disco lançado na década falasse tão diretamente aos jovens. Evidentemente disso depreende-se que não foi um disco aclamado nem junto ao público, muito menos junto a crítica – o que em nenhum dos dois casos faz lá grande diferença. Oras, talvez vocês se perguntem 'o que há então de tão impressionante nesse álbum que justifique tal colocação'? Eu diria que o elementar: grandes canções. Simples assim, afinal, quando se tem o elementar não é preciso se utilizar de efeitos especiais para cobrir as inconsistências de roteiro. Grandes Infiéis nada mais é do que um disco de ROCK e este é exatamente o seu maior trunfo. Quem me conhece provavelmente não é capaz de entender a surpresa que é para mim mesmo chegar a conclusão de que o segundo cd dos goianos do Violins é nada mais nada menos do que o disco mais importante dessa década. Uma surpresa em todos os sentidos a começar pelo fato de que em meio a uma gama insondável de títulos estrangeiros os dois melhores trabalhos são nacionais. Para vocês terem uma noção, a minha idéia inicial era de fazer duas listas separadas contendo de um lado apenas bandas que cantam em inglês – porque eu realmente não tenho lá grande simpatia com outros idiomas ou murmúrios alienígenas (Olá Sigur Rós e Björk!) – e de outro aquelas que têm como língua de origem o português. No entanto, quando eu fiz uma pré-seleção eu percebi um fato inusitado: seria injusto fazer duas listas porque elas não dariam a dimensão mais correta do que esta década tinha significado. Em outras palavras me chamava atenção que embora houvesse uma safra de música nacional bastante produtiva nesta década, Ventura e Grandes Infiéis tinham uma qualidade muito acima dos demais dos discos. Ou seja, entre o segundo lugar e o terceiro havia um enorme abismo. Por outro lado estes discos eram tão, mas tão espetaculares que eram melhores, inclusive, do que os discos em entoados em inglês - fato realmente espantoso (para não dizer um verdadeiro sacrilégio) se considerarmos que no início da década eu sequer gostava de música nacional! Continuando com algumas curiosidades relativas a minha surpresa, lembro-me perfeitamente bem de quando tive acesso as primeiras músicas do Grandes Infiéis, disponibilizadas pelo site da banda em meados de 2005. Eram Hans e Atriz. Foi uma decepção total: ‘nossa, erraram a mão’! Simplesmente não havia nenhuma ligação com o trabalho anterior da banda, o rebuscado mas não menos excepcional Aurora Prima - cuja beleza eu finalmente havia assimilado naquela época e por isso mesmo aguardava o segundo petardo do Violins com alguma expectativa. O tempo passou e foi apenas no final do ano que eu finalmente consegui encontrar o disco para baixar no Soulseek. Àquela altura eu acreditava que ninguém mais seria capaz de tirar das mãos de 4, disco dos meus queridos Hermanos, o título de melhor disco nacional de 2005. E de fato ninguém tirou mesmo: eu simplesmente não conseguia aceitar que Grandes Infiéis era superior mesmo contra todas as evidências! Só que chega uma hora que a gente não consegue mais se enganar: o número de audições não mente jamais. O problema é que com o tempo eu fui percebendo que Grandes Infiéis não era apenas melhor do que ‘4’: tratava-se de um disco do nível do Ventura – até então nada mais nada menos do disco da minha vida. E foi nesse lugar que o disco figurou por um bom tempo dentro do meu catalogo afetivo até que finalmente eu pudesse aceitar: ‘Tá bom eu desisto, o Grandes Infiéis é verdadeiramente o disco da minha vida! Por pouquinha coisa, questão de milímetros mesmo, mas ele passou o Ventura’. Que Marcelo Buarque Camelo e Rodrigo Pessoa Amarante são geniais isso não há dúvida, no entanto o grande problema é que Beto Cupertino é ‘apenas’ a voz de toda uma geração. Trata-se do melhor letrista que eu já ouvi em toda a minha vida e isso não é nenhum exagero. Melhor, inclusive, do que o próprio Renato Russo - o único que se pode comparar a Beto Cupertino por uma simples questão: são letristas completos, pois não se limitam apenas às liras afetivas – embora as façam tão bem. Cada qual a sua maneira oferece panoramas mais amplos de uma época sendo acima de tudo grandes cronistas do cotidiano. Vale apenas fazer uma pequena observação que distingue Renato Russo e Beto Cupertino: se o primeiro diluía temáticas diversas nos discos da Legião Urbana, o segundo por sua vez tem uma predileção por discos conceituais. Sim, como sugere o nome, Grandes Infiéis tem como temática central a exploração da idéia de infidelidade. É interessante porque embora este disco não represente o auge de Beto Cupertino enquanto letrista, há em seus versos uma certa espontaneidade juvenil, diria até mesmo uma ingenuidade, que confere a este registro um frescor ainda maior.

Hora de deixar de papo mole e ir direto ao que interessa: as grandes canções. No entanto vou comentá-las desta vez não pela ordem que elas se encontram no disco, mas, de maneira diversa, criarei um mapa de exploração do Grandes Infiéis. Sendo assim, existem duas músicas no cd que servem para arrombar a porta, por assim dizer: Vendedor de Rins e Glória. A primeira se trata de uma deliciosa e emocionante balada roqueira que conta o dilema de um... Vendedor de Rins! Sim, o Beto Cupertino adora explorar fatos pouco comuns – para não dizer bizarros dentro da temática usual roqueira – como, também o fez, por exemplo, no ótimo lado-B-que-inexplicavelmente-nunca-ganhará-registro-oficial-dentre-tantas-outras-canções-simplesmente-geniais (nem um pouco tiete, não é mesmo?) Células Tronco. Mas voltando ao Vendedor de Rins, cabe, a título de curiosidade, um depoimento do Beto no show de estréia da turnê dos Grandes Infiéis quando dos preâmbulos da execução da música: ‘Essa música também está no disco novo. Todo mundo fala que não entendeu a letra da música e... nem eu’. Tudo Bem, Beto, tudo bem, mas não há como segurar as lágrimas ao ouvir quando eu quis me consertar alguém chegou pra me elogiar. Tá vendo? Foi só colocar a música por aqui que eu me emocionei. Oquei. Mudemos de canção antes do dilúvio: Glória - como se isso fosse suficiente para conter a emoção. Glória é um rock encorpado que faz apologia ao fracasso em versos como eu sei que o mundo não comporta mais deuses e sei que o amor não me suporta mais vezes. Em certa altura da letra Beto já nos deixa a par do seu cinismo marcante e da sua predileção pela temática explicita do ódio, das emoções vis que não são exatamente negativas, mas que na verdade nos constituem e reforçam toda a nossa complexidade interior: o eu-lírico fala a seu interlocutor sobre a vontade de dar um murro nos olhos e das rugas que este o proporcionou. Como não ficar perplexo diante de uma sinceridade tão explícita?

Uma vez arrombada a porta não há mais como se perder – na verdade, não há mais como se encontrar. Ok Ok, canção que fecha o disco, é bonita de doer: simples, circular, com violões, arranjo de metais e uma letra de dar inveja a qualquer compositor! Oras, como alguém pode dizer tanto com tão pouco?

Sobrou pra mim
A felicidade sempre ofende
Mas tristeza demais cansa

(Que se fodam os ofendidos)

Então respira mais
Que eu respiro mais
Ok, ok

Então respira mais que eu respiro mais. Eu fico atordoado quando leio esse verso. E pensar que no meio de tanta infidelidade uma frase como essas é a tradução exata de um amor perfeito. Ok, ok: mais um ponto pra você, Beto. Realmente você sabe como ninguém a maneira mais correta de me deixar esfacelado. Enquanto eu junto o que restou de mim, Il Maledito não é apenas um rock daqueles, mas o grito de uma geração. De fato: a melhor música nacional da década - mesmo não sendo exatamente a minha preferida deste cd. Beto a lá Cioran rompe com a vida enquanto busca por um estado de paz e anuncia ironicamente que é pra viver mais quando você vê que você padece do que te satisfaz/ quando você vê que ninguém merece o peso dessa paz. O refrão, me desculpem, é - literalmente - urgente e antológico: Então um viva à insensatez que suja a sua tez/ Num bar ou num sexo a três espera a sua vez/ Sim, espera você a sua vez que eu não sei esperar. En-fim... Pena que não é o fim: Ensaio Sobre Poligamia tem guitarras preciosas que emulam U2 – pena que o U2 jamais fez alguma coisa realmente classuda. Em uma letra que questiona os clichês que insistem em nos falar que precisamos de alguém que nos torne mais feliz, o momento mais alto marcante é pura ingenuidade: conta que eu amo as putas, conta o quanto eu te quis quando você me quebrou o nariz. Difícil encontrar alguém mais sincero. Nada Sério por sua vez é a minha canção predileta no disco: o início com pianos entremeado por guitarras doídas e vocalizações – uhhhh não há de ser nada sério - faz um contraponto perfeito para a verocidade das distorções que entram na parte final da música. Sobre Atriz e Hans, músicas que eu reneguei de início, pra variar um pouco eu estava errado. O cinismo da primeira - vir você me ameaçar depois de tudo o que eu te fiz é só enxergar o seu nariz – e a amargura irônica da segunda - aqui é tudo impressão, tudo em preto e branco enfim. É tudo impresso todo relatório te diz que você pode rir agora – são retratos fiés extraidos da realidade de relacionamentos cotidianos onde é preferível sustentar o rancor a promover um diálogo. S.O.S e Matusalém tem imenso potencial radiofônico. Angelus com seus pianos e vocalizações fala da solidão, revelando o drama de um homem que não consegue lidar bem com a existência de um Deus. Convênio com sua letra ge-ni-al (nesse tom ridiculamente pausado, mesmo) é a grande pérola pop a ser descoberta no cd.

Não bastassem essas 12 relíquias, há mais em Grandes Infiéis: sua capa é sem sombra de dúvidas a mais bonita desta década. E consegue isso mais uma vez optando pela força da simplicidade através da metáfora de uma gaiola aberta em meio a um fundo branco.

Como se pode observar, com tantos predicados não é um mero detalhe que Grandes Infiéis tenha sido um dos discos que eu mais recomendei, gravei e eventualmente fiz questão de presentear com o próprio original. Simplesmente porque - para aproveitar a fala do eu lírico de Matusalém - há toda uma estrada a ser descoberta, esmiuçada, neste registro que eu tanto quis dividir com as pessoas mais queridas. Uma gama de sentimentos complexos, bonitos, exagerados, imperfeitos envolta por um instrumental contagiante é o que oferece uma incomparável beleza a esta bolachinha. Pena que pouca gente tenha conseguido ultrapassar a barreira imposta pela voz do Beto Cupertino. Mas para meu orgulho, quem conseguiu superar este obstáculo não se arrependeu! E eu não poderia deixar de citar o grande Daniel! De tanto torrar a paciência dele para dar uma chance, de cantar todas as bolas possíveis para ele, um belo dia a ficha caiu. E o Daniel ainda veio pegar no meu pé:

- Como é que você nunca tinha me falado da Ensaio Sobre Poligamia?
- Claro que eu já tinha falado, Daniel, mas você não me escutou, pô!

Vale ressaltar aqui o fato de que a exemplo de Spencer Krug o Beto Cupertino é um dos poucos compositores que consegue manter um ritmo de produção verdadeiramente industrial sem que isso seja capaz de comprometer a qualidade de suas criações. Por conta disso, Grandes Infiéis também serve como cartão de visitas da irretocável discografia do Violins – incluindo aí além dos discos oficiais - Aurora Prisma, Tribunal Surdo e A Redenção dos Corpos - também todas as canções que, como eu já bem frisei, inexplicavelmente ficaram de fora das gravações de estúdio e que para o bem ou para o mal não são poucas.

A nota triste é que assim como a vida o que é bom invariavelmente dura muito pouco: a banda encerrou suas atividades no ano passado. Mas exatamante como a mesma vida o pouco é sempre o suficiente para deixar marcas profundas.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

terça-feira, 21 de abril de 2009

Aquecimento.

Aqui estou eu parado no cruzamento da Brigadeiro Luiz Antônio com a Av. Paulista pensando, simplesmente pensando. Comprei um refrigerante, tomei um gole e continuei a pensar. Neste tempo que eu parei aqui tantas pessoas passaram por mim. Empresários, boys e até mesmo um Zé Doidim que eu mesmo reconheci. Pessoas com mundos totalmente diferentes mas que naquele momento se cruzaram.

Interessante, né? Todos os dias em vários lugares milhares de pessoas se cruzam mas não se falam, pois não se conhecem e nem ao menos se importam com isso.

Eu vejo ali na frente um mendigo barbado. Ele simplesmente para... e grita! Um grito de liberdade para a multidão, pois ele não agüenta mais viver sozinho na escuridão.

Eu vejo as pessoas que passam por mim, que falam, que ralam, que gritam em harmonia e solidão. Dói no coração ver meu povo silencioso!

Penso naquele momento e naquele cruzamento: tanta solidão em movimento. Olho para o mendigo e seu lamento e ainda ouço o eco do seu grito. Ando, paro e respiro e fico comigo confabulando: será que serão apenas corpos vazios ou será um engano? Não, engano não. Eu sinto no ar o silêncio da multidão!

(Silêncio na Multidão, Cidadão Instigado)

***

Sim meninos o pinto de peitos tem o bico preto e seu pio é escuro.

Certas coisas acontecem na vida não para assustar, mas sim para mudar o entendimento sobre as coisas absolutas. Quem pode explicar a razão do pinto de peitos ter nascido com o bico preto?

Talvez Deus tivesse um motivo ao perpetuar esse ato. Por mais que pensem ser um defeito, um defeito de Deus é sempre perfeito.

Então desaba o conceito da censura que diz que todo bico é amarelo queimado.

(O Pinto de Peitos, Cidadão Instigado)

***

Eu não sei o que falar sobre as estrelas que povoam este meu céu. Que brilham, que brilham, que brilham, mas não dizem nada. A noite mal começou e eu me sinto tão louco. Me dá um tempo. Eu vou ali no balcão e volto logo.

Voltei!

Decidi olhar de novo para as estrelas. Quem sabe dessa vez, depois de uma dose, eu possa conseguir enxerga-las melhor? Mas no fundo tudo não passa de uma fuga.

Blá, blá, blá...

É... É complicado procurar alguma coisa onde não existe nada. E se você prestar bem atenção vai concordar comigo. Hoje eu estou opaco e seres opacos precisam de qualquer coisa para se iludir.

Lá vêm três amigos meus.

Massa!

Vou dividir um pouco da minha loucura com alguém.

Falei, falei, falei e eles também falaram. Descobri: eu não precisava ouvir nada das estrelas. Eu só queria conversar com alguém.

Blá, blá, blá...

Pois é isto... Esta foi mais uma noite daquelas que a gente passa de bobeira tentando aliviar a dor do coração e grita por um socorro, mas ninguém consegue lhe ouvir.

Tem um cara estatelado ali no chão. Deve estar pior do que eu.

Falou galega. Vou pra casa!

(Noite Daquelas, Cidadão Instigado)

Os Discos da Década - Terceiro Lugar.

3) Shut Up I Am Dreaming, Sunset Rubdown (2006)

Como eu gosto de brincar, cada solução necessariamente acaba gerando um novo problema. Sendo assim, se a internet, com seu amplo terreno, possibilitou uma ‘democratização’ (entre aspas mesmo) das possibilidades de acesso a conteúdos culturais, por outro lado, com tanta quantidade de conteúdo disponível para ser acessado, cria-se o problema de uma filtragem de materiais que sejam realmente relevantes. E é justamente essa a grande função da crítica musical: servir como um guia interessante que nos ajude a separar o hype, quero dizer, joio do trigo. Não que o crítico tenha necessariamente um gosto superior, mas antes disso, compatível com o seu. E por um bom tempo coube ao blog Indienation suprir a lacuna deixada pelo meu querido – e já mencionado – Fábio Galão. Foi em uma das deliciosas e coerentes resenhas do César M. - autor do blog – que eu me deparei totalmente-meio-que-sem-querer com Shut Up I Am Dreaming, disco de estréia dos canadenses do Sunset Rubdown. Não me recordo quando fiz o download nem em que circunstâncias tal fato se deu. Lembro-me apenas de colocar o disco para tocar despreocupadamente no Winamp por volta de janeiro, fevereiro de 2007. Um daqueles chutes lá da retaguarda. E o CD ficava em looping enquanto eu me distraia mexendo na internet – um dos meus principais métodos de audição, bem que se diga. Sem que eu me desse conta eis que uma hora eu já estava totalmente absorvido por aquela atmosfera. Aquela voz angustiante e por vezes chorosa, a constante tensão das músicas, cujas estruturas a-lineares me matavam, não conseguiam sair da minha cabeça. Mas não era só isso. Não: foi ouvindo Shut Up I Am Dreaming – um álbum genial até no nome, como vocês podem notar – que eu percebi o quanto um instrumento aparentemente tão irrelevante quanto um xilofone usado de maneira apropriada pode te levar ao limite. Só de pensar nisso as lágrimas já vem ao encontro do meu rosto. A música responsável por isso? Us Ones In Between.

Um dia:

- Alan, olha só que música foda!
- Manda.
- Ah, estranha.
- Esse xilofone no final é simplesmente de matar.

O dia seguinte a um dia:

- É Guilherme... A Us Ones In Between realmente é matadora.
- E o ‘pior’, Alan, que não é só ela. O disco todo é fenomenal.

Us Ones In Between foi a música mais dilacerante que eu escutei na década. Dilacerante mesmo, passional, que vai fundo, retalha a ‘alma’ em um zilhão de pedacinhos. Ela é tão violenta, é tão minha, que, ao conversar com o Tio Beto, eu a elegi como a música tema do meu velório – por mais mórbido que isso possa parecer, escolhas são precisas! Tudo começa com um pianinho simples e cortado por uma voz que tenta a todo custo conter o choro na garganta. Pouco tempo depois entra uma distorção leve e constante, num crescente, e uma bateria seca. Na ponte, assovios e os xilofones em duelo para, finalmente, dar origem a uma espécie de berro contido. Suspendendo o crescente, surge então um primeiro momento mágico da canção com alguns dos versos mais doídos e comoventes da história da música: And I am a creature/ And I am survivin’/ And I want to be alone/ But I want your body/ So when you eat me/ Mother and baby/ Oh baby, mother me/ Before you eat me. O andamento original é retomado desta vez com um belíssimo dueto com uma voz feminina até que a distorção é provisoriamente desligada para dar origem ao segundo momento mágico da canção, uma paradinha em que o eu lírico profere os seguintes versos: You are a waterfall/ Waiting inside a well/ You are a wrecking Ball /Before the building fell. O dueto surge ainda mais forte e pungente até a distorção ser novamente suspensa, desta vez em definitivo, quando a voz do cantor é abafada e os xilofones literamente falam, mostram toda a sua importância dentro da história do rock, em um dos finais mais desconcertantes da música contemporânea. Se você não desabou ainda, então agora já pode deixar de se fazer de forte e cair com o terceiro momento mágico da canção. Não foram poucas as vezes em que eu adiantava a canção toda até chegar nos ‘benditos’ xilofones do final. Ainda falando do disco e da Us Ones In Between em particular, vem a minha mente um caso interessante. Certa vez decidi gravar o cd para o Gabriel, um amigo da faculdade. E enfatizei que se tratava de um disco diferente, mas que se a barreira do estranhamento fosse superada, ele provavelmente soaria nada menos do que sublime, definitivo. Na semana seguinte, Gabriel me procurou e disse: mas o que que é aquele Sunset Rubdown? E eu não sabia definir se ele tinha achado o disco bom ou ruim. Na verdade, nem ele: estava exatamente em cima da corda bamba, com aquela sensação gostosa de estranhamento, que podia cair tanto para um lado, quanto para o outro. Mas a primeira pista positiva foi ele ter gostado demais da última faixa do disco Shut Up I Am Dreaming With Places Where Lovers Have Wings, a mais acessível do cd – mas nem por isso menos impressionante. Durante essa nossa segunda conversa eu cantei o caminho das pedras: presta atenção na Us Ones In Between. Não falamos mais sobre o disco até um dia em que o Gabriel teve de vir a minha casa para fazer um trabalho da matéria que fazíamos juntos. Depois da reunião viemos ao computador juntamente com o Fred, meu amigo, para ouvir algumas músicas. E o assunto Sunset Rubdown foi retomado. Como o Gabriel nunca havia visto uma performance da banda ao vivo resolvi colocar um vídeo do Youtube contendo a Us Ones in Between. Tal foi a minha surpresa quando vi aquele cara grandalhão cantando a música de cabo a rabo e ao final proferir as seguintes palavras: essa música é linda demais; dá até vontade de chorar – enquanto lutava para não ceder à tentação das lágrimas. Palavras que eu jamais esperaria ouvir com tanta franqueza do Gabriel. Até o Alan ficou pasmo quando relatei o episódio. Ou seja: àquela altura o Gabriel também já estava totalmente consumido pelo disco, conforme ele mesmo me confidenciou.

Mas diferentemente de Funeral o não super mas hiper-estimado disco do Arcade Fire que se resume a Rebellion (Lies), Shut Up I Am Dreaming de modo algum pode ser resumido a Us Ones In Between. Stadiums and Shrines II, faixa que abre o disco, é prova incontestável disso: une a grandiosidade de um épico a uma estrutura totalmente tensa, claustrofóbica, em que os momentos de suspensão servem apenas para acentuar mais a angústia. Angústia essa que atinge o ápice por volta da metade da canção quando em uma instrumentação mínima e repetitiva o eu lírico dispara de maneira cínica contra o peso que seu interlocutor lhe confere: I’m sorry that your mother died/ But that one wasn't my fault/ I’m sorry anybody dies at all these days. Já They Took a Vote and Said No tem andamento totalmente quebrado que sugere uma polka (?!) marcada por xilofones (sempre eles) e uma sanfona. Não bastasse a melodia inovadora, sensacional, a letra é nada mais nada menos do que... Eu nem sei o que dizer: Well there are things/ That have to die / So other things/ Can stay alive / The fire burns/ It burns to give/ It has to burn, alive/ To live. Os pianinhos, as guitarradas e os berros da pop Snakes Got a Leg III são perfeitos. O Alan que o diga! Já The Empty Threaty Of Little Lord com seu clima gospel é parente de Where Is My Mind dos Pixies e apenas atesta a sensibilidade e a sinceridade presentes nas letras de todo o disco: If I ever hurt you/ It will be in self-defense. Simplesmente não há como segurar as lágrimas com o coral da parte final da canção: I wish you the best, you snake/ You are self-professed, you snake/ My heart’s in my chest you snake/ You can have the rest, you snake. Mais uma vez os velhos problemas de comunicação, para onde o Yankee Hotel Foxtrot já havia apontado. The Men Are Called Horsemen There com suas notas distorcidas tem tom suplicante e decadente. O disco termina com o épico de precisos 7:23min intitulado Shut Up I Am Dreaming With Places Where Lovers Have Wings. O violão cru e contido – assim como o vocal - acompanhado por xilofones marca a primeira parte da canção, que fecha com o emblemático verso oceans never listen to us, anyway antes de desembocar num caótico solo de guitarra, para retomar novamente a cadência do violão com o tilintar dos xilofones permeado por declarações timidamente tocantes como: I’m afraid of the water/ I’m afraid of the sky/ I’m tired of waiting. No último ato do movimento o eu lírico implora ‘para que não façam barulho’ e como que propositalmente para provocá-lo programações eletrônicas dão o ar da sua graça até desembocarem nos nossos queridos e amados xilofones que simulam uma canção de ninar. Não há como ser a mesma pessoa depois de ouvir Shut Up I Am Dreaming, o disco.

Ah sim: provavelmente a uma altura dessas vocês devam estar se perguntando, afinal de contas, quem é a cabeça alucinada por trás dessa banda. Obviamente que a omissão não foi acidental. O nome por trás do Sunset Rubdown é Spencer Krug. Sim, a inquieta metade do Wolf Parade responsável, dentre outras coisas, por I’ll Believe In Anything, música da década na opinião deste blogueiro – agora posso finalmente dizer então que se eu regressei ao Wolf Parade tempos mais tarde isso se deveu única e exclusivamente a descoberta de Shut Up I Am Dreaming. Inquieta metade porque Spencer Krug parece trabalhar em ritmo industrial – inexplicavelmente sem perder o seu padrão de qualidade, pois além das duas bandas mencionadas ainda compõe para o Swan Lake e ocasionalmente presta serviços para seus conterrâneos canadenses do Destroyer e do Frog Eyes. Não bastasse isso tudo, ainda por cima o pinta me deu um tremendo nó na cabeça por não conseguir admitir que o melhor compositor do mundo em minha opinião tem como instrumento de origem não uma das fabulosas guitarras, mas um simples teclado. Vale ainda dizer que em 2007 – ou seja, apenas um ano depois de Shut Up I Am Dreaming – o Sunset Rubdown lançou Random Spirit Lover, um disco tão excepcional quanto seu antecessor contendo faixas simplesmente históricas como The Mending Of The Gown, a ensandecida Up On Your Leopard, Upon The End Of Your Feral Days, a avassaladora Winged/Wicked Things, a danoninho For The Pier, a quase disco The Taming Of The Hands That Came Back To Life e a doce Child-Heart Losers, um desfecho surpreendente indo de encontro a tudo que a banda havia feito fez até então. Isso sem falar nas faixas já exibidas de Dragonslayer, próximo petardo da banda marcado para chegar ao mercado no dia 23 de junho, mas que já tem clássicos incontestáveis como Idiot Heart, Paper Lace, You Go On Ahead e a foderosíssima Dragon’s Lair, canção que fecha o disco. Ufa! Só me resta apenas uma coisa a dizer diante disso tudo: vida longa, Krugão!

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Os Discos da Década - Quarto Lugar.

4) Yankee Hotel Foxtrot, Wilco (2001)

Ainda me lembro perfeitamente de como tudo aconteceu. Estava eu no primeiro período da faculdade de Comunicação Social, em 2005, quando conheci o Alan. Aquelas grandes coincidências da vida: nós dois havíamos escolhido usar no mesmo dia camisetas do Los Hermanos. Daí para encontrar algumas afinidades, coincidências – fazemos aniversário no mesmo dia! – e algumas picuinhas, foi um passo. Mas toda amizade num estado nascente começa necessariamente tímida, cuidadosa, em busca da idéia existnte por trás daquela palavrinha pequenininha e danadinha chamada confiança. Por isso, era melhor não arriscar ser franco demais: trocamos alguns CDs. Enquanto eu gravei A Farsa do Samba Nublado, do Wado, e o Hot Fuss, disco de estréia do Killers, o Alan havia me emprestado o Sonic Nurse, dos seus eternos queridões do Sonic Youth, e pouco tempo depois resolveu me presentear com a gravação de uma bolachinha chamada Yankee Hotel Foxtrot, dos americanos do Wilco. ‘Eu acho esse disco muito bonito!’. Fiquei com um pé atrás, pois durante o lançamento do disco eu havia lido críticas positivas, mas o disco em si mesmo a mim não havia provocado a menor comoção. De qualquer maneira, não custava escutar. Escutei e não gostei. Mas como dizer isso ao Alan? Optei por considerações vagas sobre o cd, assim como ele também o fez em relação ao Hot Fuss, na época. Já no segundo período, com a amizade mais bem delineada, pudemos dizer as verdades que temíamos fazer passar por ofensa naquela primeira ocasião: ‘o Killers é chato demais’; ‘não vejo absolutamente nada no YHF’; ‘a I Am Trying To Break Your Heart é um absurdo’; ‘Alan, a I Am Trying To Break Your Heart é a mais cansativa do disco, com toda aquela linearidade’. Mesmo assim, no segundo período, numa matéria chamada Oficina de Mídia Impressa, em um dos exercícios resolvemos produzir uma capa de disco do... Wilco?! O Alan me deu um dos foninhos de ouvido para usar justamente a I Am Trying To Break Your Heart como inspiração. E enquanto ele falava mil maravilhas sobre a música eu simplesmente não conseguia entender onde estava toda aquela grandiosidade. E a música tocou uma, duas, três vezes. Nada. Ok.

No ano seguinte, estava eu voltando da faculdade de ônibus, no mítico 5102 quando, de repente me deu um estalo: tem aquele disco que o Alan gravou para mim do Wilco. Cheguei em casa, peguei a caixinha azul com a lista de músicas cuidadosamente escrita a mão e coloquei o disco para tocar. Desabei. Foi tiro e queda. Uma a uma o disco foi mostrando aquela beleza escondida – exceto a I Am Trying To Break Your Heart, naturalmente. E eu continuava a provocar o Alan: ‘o disco é foda, mas aquela primeira faixa é muito sem sal’! Como ela podia ser a música símbolo do disco quando havia ao lado dela faixas tão superiores quanto Radio Cure, War on War, Jesus, Etc, I’m The Man Who Loves You e Pot Kettle Black, essa última sim a grande obra prima do cd? Naquele momento de descoberta eu não conseguia ouvir outra coisa que não o YHF. (Quase) Tudo naquele disco era sensacional em termos de melodia. Os barulhinhos que outrora eu achava um porre, de repente pareciam nada mais nada menos do que mágicos. Isso sem falar de versos inesquecíveis como every song is a comeback/ every moment is a little bit later, de Pot Kettle Black; you have to learn how to die if you want to be alive, de War On War; ou mesmo everyone is a burning sun, de Jesus, Etc.

Foi então que a ficha caiu. Depois de sucessivas tentativas, numa daquelas mais improváveis conjunções cósmicas do universo, coloquei a I Am Trying To Break Your Heart para tocar e o efeito foi devastador. Lona. Sim, Alan, é absurda a música e a toda a sinceridade que permeia aquela letra, sobretudo seu ápice suplicante – com aquela voz calejada inigualável do Jeff Tweedy - quando o eu-lírico da canção diz but still I’d be lying if I said it wasn’t easy, I am trying to break your heart. O Yankee Hotel Foxtrot só faz pleno sentido a partir do momento que esta canção revela toda a beleza que há em sua simplicidade rebuscada.

Embora Yankee Hotel Foxtrot não seja superior ao disco seguinte da banda, o sensacional A Ghost Is Born, há no primeiro algo que o distingue e, portanto, o coloca na quarta posição dessa lista: unidade. De maneira isolada, as faixas de A Ghost Is Born têm mais vigor que as de YHF. Haja visto At Least That’s What You Said, música definitiva do Wilco, Hummingbird, Hell Is Chrome, Theologians e o empolgante rockinho I’m Wheel, apenas para ficar em alguns exemplos. Mas a soma dessas pérolas não resultou na explosão que caracteriza a descoberta de Yankee Hotel Foxtrot, sobretudo por saber explorar tão bem a dificuldade que as pessoas encontram ao jamais saber se comunicarem nos relacionamentos cotidianos de maneira satisfatória com seus semelhantes. Daí, como Marcelo Costa bem observou, a insistênte presença de distorções e barulhos entre as faixas metaforizando com precisão a questão dos ruídos que existem entre os corações. Como disse ao Alan na época, ‘nunca foi tão bom poder reconhecer a tempo que eu estava totalmente errado’. Neste caso, a derrota foi, na verdade, uma grande vitória.

Os Discos da Década - Quinto Lugar.

5) Apologies to Queen Mary, Wolf Parade (2005)

Quanta saudade do Fábio Galão, meu eterno guia musical. Não tinha papas na língua e não errava jamais até... Apologies To Queen Mary, do Wolf Parade. Pela descrição na sua coluna o disco parecia realmente violento. A começar, obviamente, pela postura realmente crítica e, por vezes, polêmica do Galão – postura esta que eu tanto amo - e que vale, até como uma homenagem, reproduzir de maneira fiel por aqui:

A máquina do hype avisou, é melhor você acatar: o Canadá é o que há. Arcade Fire, The Dears, Broken Social Scene – elogie mesmo sem nunca ter ouvido nenhuma dessas bandas. Vai pegar muito bem, principalmente nas rodinhas de jornalistas. Mas, se você quiser realmente ouvir a melhor banda novata do Canadá, vai ter que se aprofundar um pouquinho. Porque a melhor banda novata do Canadá (ainda) não caiu nas conversas dos metidos a antenados. E ela se chama Wolf Parade.

Beleza. Baixei o disco e... nada. Nada. Que o Arcade Fire nunca me enganou era um fato concreto assim como 2 + 2 são 4 (será?), mas você, Galão, fazendo essa presepada, aí era demais para mim! Fiz um backup do álbum em um DVD - daqueles backups que são apenas para desencargo de consciência, pois eu jamais voltaria no álbum. Só que um belo dia eu fui obrigado a voltar. Este papo fica para outro momento. O que interessa mesmo aqui e agora é que eu voltei. E que o Galão não estava apenas certo: ele estava errado! O disco é muito mais do que isso! Muito mais. Uma coleção de 12 pérolas em que o pique não cai em um momento sequer. As composições são divididas entre o tecladista Spencer Krug e o guitarrista Dan Boeckner, o que garante uma riqueza e um encanto a mais para a sonoridade da banda por conta dos estilos próprios de cantar de cada um.

Dan Boeckner é o autor de Modern World, a melhor faixa do Arcade Fire que o Arcade Fire nunca irá compor - pois os estes desconhecem a importância da palavra simplicidade em suas composições pseudo-intensas. It’s a Curse e We Built Another World mostram um Boeckner preparado para as pistas de dança. Vale aqui um pequeno comentário - ou um gesto de indignação, como queiram: é no mínimo irônico o Wolf Parade jamais ter caído nas graças dos DJ’s das festas indies de Belo Horizonte. Bem, mas é com This Heart’s On Fire e Same Ghost Every Night que o guitarrista crava seus momentos mais perfeitos do cd. Na primeira, o teclado tosco e repetitivo de Krug faz cama para um vocal ainda mais apaixonado que o de Julian Casablancas destile toda a sua violência. A tonalidade aparentemente controlada do início de This Heart Is On Fire só serve mesmo para camuflar todo o sentimento que a faixa não consegue conter em seu final explosivo, mostrando que a última música de um cd não precisa necessariamente ser uma balada melancólica. Nesse caso não precisa porque ‘a’ balada de Boeckner está no meio do disco, mais precisamente na sexta posição. Uma música que reúne ao mesmo tempo a grandiosidade do Radiohead Ok Computer e a tensão do Interpol, mas que mesmo assim só poderia ser parida por uma banda como o Wolf Parade. A paradinha da bateria, o refrão acompanhada pelos gritos de Dan e o movimento crescente da canção são simplesmente dilacerantes. Isso sem falar no final devastador com os efeitos robóticos e o desespero no vociferar do guitarrista.

No entanto, por mais que isso pareça impossível, Apologies To Queen Mary é um disco de Spencer Krug. É curioso dizer isso porque se as composições de Boeckner são sensacionais, que nome eu devo dar a algo que está além disso? Da maneira como coloco pode parecer um tanto exagerado, mas eu os garanto, caros leitores, não é! Basta ouvir Fancy Claps, com seu começo errático e o ritmo explosivo dos teclados entremeado estrategicamente por palminhas. Ou então as lamúrias apaixonadas da mortal e decadente Dinner Bells e sua paradinha providencial aos 3:10 min e que dá um clima surreal a canção para, no momento seguinte, trazer o ouvinte abruptamente de volta a realidade cruel da vida.

O problema é que este disco é responsável pelo momento mais bonito de toda a década 00. E quando eu digo momento é porque não se trata de apenas uma faixa, mas de duas, cuidadosamente interligadas. A primeira é a cínica Dear Sons And Daughter of Hungry Ghosts que começa com os deliciosos versos: I got a hand/So I got a fist/ So I got a plan/ It's the best that I can do/ Now we'll say it's in God's hands/ But God doesn't always have the best goddamn plans, does he?. A voz desengonçada de Krug é atravessada por precisos fraseados da guitarra de Boeckner, ganha as tradicionais paradinhas da bateria e desemboca no momento mágico da canção: La La La La La La. Juro, eu choro. Não consigo me conter! Tudo isso para desembocar na canção definitiva da década. Eu realmente tenho noção que é responsabilidade demais colocar todo o peso de uma década nas costas de uma única música, mas I’ll Believe In Anything realmente consegue traduzir todas as nuances dos primeiros dez anos do novo milênio, ou seja: trata-se de uma canção paradoxal. Ao mesmo tempo em que é extremamente simples em sua estrutura linear, possui arranjos elaborados, grandiosos; é limpa, porém tosca; contida e ainda assim explosiva, visceral; arrastada com aquele gostinho de que a faixa não poderia acabar nunca; totalmente impregnada com aquela angústia juvenil e por isso mesmo adulta, profunda; melancólica, porém revestida de uma esperança inexplicável. Mas acima de qualquer contradição, I’ll Believe In Anything é uma faixa sincera, a começar pela falsa ingenuidade presente no início de sua letra: Give me your eyes I need sunshine your blood, your bones your voice, and your ghost. Versos tão bonitos e diretos para falar que se deseja o outro por inteiro – o que fica ainda mais marcante quando o eu lírico da canção diz querer, inclusive, o(s) fantasma(s) da pessoa amada! Foda! O vocal de Krug é algo certamente de outro mundo. Certa vez o Daniel fez um comentário que há um bom tempo eu já havia assimilado e que é completamente coerente: parece que ele canta as músicas como se fosse a última coisa que estivesse fazendo em vida tamanha a visceralidade de sua performance. Em outras palavras, a voz de Spencer Krug está impregnada de vida. Enquanto isso, o riff de guitarra prossegue calmamente até o momento pré-apocalíptico da canção quando o eu lírico dispara: And I could take another hit for you/ And I could take away your trips from you /And I could take away the salt from your eyes/ And take away the spitting salt in you/ And I could give you my apologies/ By handing over my neologies/ And I could take away the shaking knees/ And I could give you all the olive trees/ Oh look at the trees and look at my face/ And look at a place far away from here. Pronto, as portas do céu - ou do inferno, como preferirem – foram abertas: bem vindo! Uma canção tão impactante – não há como fugir de adjetivações ao falar do Wolf Parade, embora todas, paradoxalmente, sejam inúteis – que é capaz de nos fazer realmente acreditar em tudo, de querer compartilhar a vida, de levar nossa pessoa amada para um lugar distante onde ninguém a conheça e, portanto, não dêem a mínima para quem ela é.

Um disco que tem dois compositores de mão cheia em momentos inspiradíssimos, o momento mais bonito ‘E’ a música da década jamais poderia ficar desta lista. Sim, Galão, você estava certo, quero dizer, errado! Enfim: que bom!

sábado, 18 de abril de 2009

Os Discos da Década - Sexto Lugar.

6) Antics, Interpol (2004)

Invariavelmente um resenhista que se preze - pfffff... - em algum dos seus escritos certamente vai evocar o famoso teste do segundo disco. Trata-se de um tema tão batido quanto lembrar que as correntes musicais dominantes de uma década possuem uma relação direta com suas duas antecessoras: negando a mais próxima e afirmando a mais distante. Uma simples questão de saturação, evidentemente, assim como é também evidente que o teste do segundo disco tem relevância por ser o chamado álbum de afirmação. Explica-se: geralmente quando se vai gravar um primeiro cd, as músicas escolhidas tiveram um tempo de maturação muito maior ao serem executadas diversas vezes em shows, cuja recepção pelo público acaba sendo um interessante termômetro. Já no segundo cd, mesmo recuperando uma ou outra faixa mais garantida que ficou de fora do debut, tende-se a ser registrada uma nova gama de composições que surgiram em um contexto bem diferente das primeiras e tiveram menos tempo para testes e arranjos. Ou seja: o resultado é sempre uma incógnita. Ainda mais quando a banda em questão era o Interpol, que havia lançado um dos discos mais comentados e elogiados de 2002, o belíssimo Turn On The Bright Lights. Em tempos de internet, um erro poderia ser fatal: significaria o ostracismo. E foi – mas não merecia.

A primeira vez que ouvi Antics foi aquela decepção tremenda. Não parecia o Interpol puro sangue do primeiro disco – e no início é sempre tentador querermos nos apoiar no jogo que já está ganho. Não tinha nenhuma faixa do nível de uma Obstacle 1 e 2, de uma Stella Was A Diver And She Always Down ou de uma Say Hello To The Angels – não falo de Leif Erikson ou The New porque na época eu achava essa duas músicas os grandes erros do disco; errado estava eu. Pra não dizer que nada se salvava em Antics aquela audição apressada mostrava apenas duas boas faixas: a segunda, chamada Evil e Take You On A Cruise, a de número 4. O resto era resto. Nada que fosse realmente sensacional, vale dizer. Boas faixas apenas, como já disse. Tinha alguma coisa realmente estranha naquele novo do Interpol.

Pra variar, não havia absolutamente nada de errado com o disco em si, mas comigo: não estávamos equalizados na mesma freqüência, para citar a ‘grandessíssima’ Pitty. Obviamente entre aspas esse grandessíssima. E bota aspas nisso. Mas voltando ao que importa, só relembrei do Interpol em 2005 durante algumas conversas com o Alan. Ele, recordo-me bem, também havia manifestado similar desgosto pelo Antics ou ao menos certa indiferença diante de Turn On The Bright Lights. Foi quando então eu resolvi dar uma segunda chance para o CD. E percebi que além da Evil e da Take You On a Cruse havia também outra música muito boa – como vocês podem perceber, de boas as músicas já eram consideradas muito boas nesse momento e estavam já em vias de. – chamada NARC. Como eu não prestei atenção nisso? Oras, simples: da mesma maneira que não havia notado o vigor pop e apaixonado de C’mere e Slow Hands. Ok: a porta já estava arrombada. Da noite pro dia – na verdade, de algumas noites para alguns dias, Antics já era superior a Turn On The Bright Lights. Isso porque eles tinham dado um passo a mais em sua jornada: criaram singles sensacionais. Tirando a realmente equivocada Lenght Of Love – que para a minha imensa decepção eles escolheram para tocar justamente aqui em Belo Horizonte, sendo que tal música nunca havia feito parte de nenhum set list da turnê até então - qualquer das outras nove canções do CD poderia tranquilamente tocar na rádio e não faria feio. E isso inclui mesmo faixas mais arrastadas como a lindíssima Next Exit, que abre o CD – o Interpol ao contrário de 99% das bandas costuma iniciar seus petardos com canções lentas e minimalistas - ou a derradeira – e verdadeiramente joydivisioniana - A Time To Be Small.

A essa altura eu já sabia que o baixo da Evil era apenas e tão somente antológico, hiptnótico, sendo a mesma facilmente uma das músicas mais importantes da década. Eu sabia também que Take On a Cruise era uma das baladas definitivas do Interpol – assim como já sabia do estrago que canções como Leif Erikson e The New, do disco anterior, poderiam fazer. E já tinha descoberto também o grande segredo existente por trás das canções do Interpol: as paradinhas. Por mais que seja uma fórmula pronta, talvez nenhuma outra banda saiba usar desse artifício tão bem quanto os nova-iorquinos. Mas havia mais um trunfo, este não utilizado com a mesma freqüência do recurso anterior, mas que dá um imenso charme quando entra em ação: o vocal vociferado. Basta prestar atenção em faixas maravilhosas como na primeira parte de Not Even Jail, quando o eu-lírico diz em tom suplicante Oh, I'll say it now/ Cuz I want it now, antes do refrão explodir. Ou então na subestimada Public Pervert, quando o eu-lírico perde a voz ao falar de seu abandono. Em Public Pervert vale fazer uma menção para a virada de bateria abre seu refrão. Apenas ouça.

Se Antics não caiu nas graças da critica - que não soube reconhecer que nem toda música boa precisa necessariamente ser demasiadamente experimental e que o rock quando encontra o pop pode também resultar em uma mistura explosiva - pouco importa: errados estavam os críticos, não o Interpol.

Os Discos da Década - Sétimo Lugar.

7) In Rainbows, Radiohead (2007)

Quando o Radiohead vai lançar um disco a altura de toda a sua badalação? Foi uma pergunta que me fiz durante muito tempo e que achei que jamais encontraria resposta positiva. Não que os discos até então lançados pela banda fossem ruins, mas nunca encontrei nada de definitivo em sua discografia. A começar pela imensa decepção que eu tive ao comprar, num de meus acessos, Ok Computer, o célebre álbum que fez o Radiohead cair de vez nas graças da crítica musical mundial. O disco soava cansativo, forçado, demasiado arrastado - mesmo para uma pessoa como eu que tende a preferir a melancolia à alegria nas músicas. Não por acaso, a única música que eu consegui engolir naquela época foi Electioneering, a faixa mais agitadinha do petardo, tida pelos fãs mais fervorosos como ‘dispensável’, ‘a pior do cd’ - se bobear, tais entusiastas ainda terão a pachorra de dizer que ela é pior até que Fitter Happier, um trecho recitado chaaaato, quer dizer, cabeça e que nem música é. Em compensação, Paranoid Android, clássico inconteste dos anos 90 na opinião de toda a crítica musical, me soava nada menos do que modorrenta. E ainda hoje me soa uma música superestimada. Audições posteriores do cd ao menos me ajudaram a encontrar algumas pérolas como Airbag, Karma Police, The Tourist e Lucky, faixa mais tocante da bolacha em minha opinião. A questão, posta de outra maneira, foi que ouvindo um disco do Radiohead de ponta a ponta eu jamais conseguia encontrar um conjunto de canções realmente perfeito: ao lado de músicas ótimas sempre apareciam canções presunçosas, quando não, preguiçosas. Mas, vocês sabem, quando se há legitimidade a preguiça se torna sinal mais evidente de vanguardismo, de genialidade. Portanto, independentemente do que eu viesse a pensar, In Rainbows seria – como de fato foi – recebido como mais uma obra-prima de Thom Yorke e companhia limitada. No entanto tal foi a minha surpresa poder constatar que dessa vez realmente era para valer: o Radiohead havia parido um disco sensacional. Recordo-me da reação que tive quando baixei o disco – não da belíssima estratégia de marketing do Radiohead, mas de um servidor Rapidshare, apenas para manter a tradição – e os primeiros movimentos de 15 Step ecoaram em meus ouvidos: um acesso de lágrimas. Pouquíssimas vezes um disco me deixou tão abalado logo na primeira audição. O que fica mais forte se considerar que, como eu já disse, o Radiohead nunca me causou lá grandes danos. Neste dia o computador ainda estava no meu quarto – tempos depois ele voltaria para a sala – e eu falava com a Thais via MSN. E a coisa foi tão intensa que tive que me despedir dela as pressas para cair na cama. Eu só conseguia dizer coisas banais como, mas é tão bonito, sobretudo ao colocar House Of Cards num repeat ad infinitum. Aquela música com um clima etéreo, robótico, me consumia plenamente. Não deixava qualquer vestígio de força coexistir dentro de mim. Os vocais de Thom Yorke, sempre tão elogiados, pela primeira vez na minha vida faziam realmente a diferença. Bem que ele disse que a infra estrutura iria entrar em colapso. Dito e feito. Mas o bacana é que o disco era muito mais do que House Of Cards. Nude perdeu o Big Ideas que carregava no nome original de quando originalmente composta – época do Ok Computer – e parece ter sido gravada especialmente para a trilha sonora de um filme. A música transmite uma ausência de gravidade (?!) ao mesmo tempo que a sua letra ferina expressa com crueza incomum uma realidade tão verdadeira que nos machuca ao decretar que iremos para o inferno por conta do que nossa cabeça suja pensa. Por isso o eu-lírico, de maneira desesperançosa, aconselha: não tenham grandes idéias porque elas simplesmente não vão acontecer. Não tem como não se apaixonar por uma música dessas, certamente uma de minhas preferidas no álbum. Há ainda o rock visceral de Bodysnatchers e seu primo direto Jigsaw Falling Into Places, ambas com estruturas parecidas, cujos ápices certamente são as partes mais chorosas de cada canção. Eis que então surge o clima soturno de All I Need e seu trip-hop decadente permeado por delicados xilofones que novamente levam o ouvinte a lona com a auto-flagelação do eu-lírico dizendo ser todos os dias que seu ser amado escolheu ignorar. A explosão dos pianos no final da canção cria um clima perfeito para a desilusão do eu lírico ao mostrar o paradoxo existente entre a sua situação estar totalmente certa e totalmente errada ao mesmo tempo. E como se essas faixas não bastassem, ainda há Reckoner. Sim, ainda há Reckoner e seus pandeirinhos precisos. O choque da entrada da música e seus dedilhados pontuais, por vezes beirando um ar desafinadado, que penetra perfurando a alma. E a voz do Thom Yorke... E a voz do Thom Yorke... Because we separate like ripples on a blank shore. Enfim.

Nenhuma faixa equivocada. Nenhum errinho sequer. Nem um. Ok Radiohead.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Os Discos da Década - Oitavo Lugar.

8) Let’s Bottle Bohemia, The Thrills (2004)

Sem sombra de dúvidas o disco mais subestimado dentre os dez que compõem esta lista. Mais do que isso: inexplicavelmente subestimado. Em todos os sentidos possíveis e imagináveis. Primeiramente porque é quase uma unanimidade por parte da crítica – sempre a crítica! - eleger o segundo disco do Thrills como o PIOR dos três lançamentos da banda. Basta ver, por exemplo, as notas que sites ‘consagrados’ como o Allmusic e o Pitchfork dão para os CDs da banda:

Allmusic – Max: 5 Estrelas

So Much For The City – 4 Estrelas
Let’s Bottle Bohemia – 3,5 Estrelas
Teenager – 4,5 Estrelas

Pitchfork – Max: Nota 10

So Much For The City – 6,9
Let’s Bottle Bohemia – 6,0
Teenager – 6,9

Não que os outros álbuns sejam ruins – muito pelo contrário! -, mas o ponto é que Let’s Bottle Bohemia é simplesmente im-pe-cá-vel. Em segundo lugar, porque não dá pra entender como este disco não foi capaz de alçar a banda rumo ao estrelato e SEQUER conseguiu angariar um número considerável de novos fãs da banda. Trocando em miúdos, ainda hoje pouquíssimas pessoas sabem quem são esses irlandeses - o que é algo quase que imperdoável quando bandas como MGMT, Keane ou mesmo o Coldplay se tornam verdadeiros fenômenos mundiais. Mas, afinal de contas, qual o erro do Thrills? Por mais paradoxal que possa parecer, a resposta mais apropriada a esta questão é ter investido muito no pop perfeito. Não há outro rótulo que defina melhor a banda em geral e Let’s Bottle Bohemia em particular. Tirando a capinha que é medonha, o disco contém 11 músicas – sendo uma delas ‘escondida’, ou melhor dizendo, não declarada no encarte - irrepreensíveis. Sim, irrepreensíveis. Numa opção corajosa o Thrills – o que explica em grande parte o seu fracasso diante da crítica - abandonou a sua veia country/folk, gêneros que estavam na crista da onda quando So Much For The City aclamado em 2003, e investiu todas as suas fichas em um pop grandioso, repleto não raramente de orquestrações ousadas e arranjos mais elaborados. O que tinha tudo para dar certo jogou a banda para bem longe dos holofotes. Talvez porque em 2004 eles já não mais fizessem o tipo de música do momento – como se o critério musicalidade do momento fosse um termômetro suficientemente seguro para se julgar a qualidade de um disco. En-fim. Ao que parece o fracasso inexplicável de Let’s Bottle Bohemia deve ter incomodado tanto os integrantes do Thrills que Teenager em vez de ser um próximo passo na grandiosa trajetória da banda, acabou sendo um encontro com as origens – belo pleonasmo para retrocesso. Se em termos de popularização - pelo menos aqui no Brasil - a estratégia não funcionou, como vocês puderam notar pelo menos a crítica voltou a ser mais condescendente. Teenager remete tanto a So Much For The City, que, que até a estrutura da capa é similar: nome das faixas na parte da frente e uma fotografia – tudo bem: no caso de Teenager uma senhora fotografia que já coloca esta capa dentre as mais bonitas da década. Ou seja: até ousadia para fazer uma bela cagada eles perderam!

Sem mais delongas, vamos ao que interessa então. Conheci o Thrills assim que eles apareceram nos idos de 2003 através de duas músicas: Santa Cruz (You’re Not That Far) e Big Sur. Já ali estavam integrados todos os elementos do country-pop perfeito tão caros a banda. Mas algo me incomodava: uma aproximação muito grande com aqueles rapazes chatos – chatíssimos, para ser mais sincero - de Liverpool. Não dei muita bola – só depois da redescoberta do Thrills eu iria dar o devido valor à primeira bolacha da banda. Um belo dia – porque às vezes a vida também tem seus belos dias – eu estava zapeando e acabei parando em frente a MTV. Era uma madrugada qualquer em um programa que eu nunca tinha assistido, mas que se não estou muito enganado era feito a partir da escolha de clipes prediletos de cada DJ da casa. O que importa é que nesse programa cujo nome não me recordo nem a pau tava tocando um hino do pop. Para minha surpresa esse hino se chamava The Irish Keep Gate-Crashing do... Thrills?! Paixão à primeira audição – esse é o grande poder devastador que a música da banda causa e que quase nenhuma banda ao longo de uma sólida carreira consegue. Ok, Alan: você não se enquadra aqui, mesmo que em algum momento The Irish Keep Gate-Crashing tenha também te conquistado – mas não seus pais-criadores. Uma verdadeira pena. De qualquer modo eu ainda sou totalmente a favor da teoria de que não existe a menor possibilidade de não se encantar pela voz de marshmallow – como bem definiu a grande Mariana - do Conor Deasy, vocalista da banda. Detalhe: eu detesto vocais femininos em quase toda a sua totalidade, sendo que o do Conor talvez seja o único deles de que eu realmente gosto! Sim, Conor Deasy é um homem! Bem bonitão, bem que se diga! Mas à parte das considerações estéticas, voltemos ao que interessa de fato: a música. E Let’s Bottle Bohemia como eu já disse e reafirmo tem e de sobra! Depois da mãozinha da MTV – que às vezes tem lá o seu lado bonzinho também: foi num desses acasos que ouvi, a título de curiosidade, Beetlebum dos superestimados ingleses do Blur - baixei o álbum e não acreditei: como pode existir um disco desses? É delicioso! Dá vontade de morder. Muita! Comecemos pelo começo com a energia roqueirinha de Tell Me Something I Don’t Know, que abre o disco cheio de vocalizações maravilhosas e seu contagiante on and on and on... Sem falar no preciosismo dos pianinhos, pontualmente colocados para deixar o ouvinte maluco! Whatever Happened To Corey Haim?, música seguinte é um teste de fogo: será que você consegue não gemer os uhhhhhhhhhs que vem antes e depois do girl i said? Eu não consigo! Definitivamente. Isso sem falar dos violinos que conferem um ar grandioso à canção. Dá até pra voltar a acreditar no amor ao ouvir os anything for love da sensacional Faded Beauty Queens. Saturday Night, faixa 4, foi a última que me empolgou, mas quando fez sentido, me invadiu plenamente com sua melodia que mistura cinismo e nostalgia de maneira tão bacana. Eis que então surge ‘A’ balada do disco: Not For All The Love In The World. Redondinha, com açúcar na medida certa para comover e não enjoar. Imagina que perigo seria se algum produtor de novela da Globo ouvisse uma faixa como essa! Ok: eu acho que iria adorar de ouvir uma banda tão violenta quanto o Thrills aumentando o nível de qualidade musical das trilhas sonoras de novelas. De mais a mais, quem sabe assim eles não viriam finalmente ao Brasil? Prossigamos. Our Wasted Lives e o tom confessional de You Can't Fool Old Friends with Limousines com direito ao egoísmo assumido em I don’t love you, I just love myself de seu refrão, fazem bela passagem para a minha música predileta do petardo: Found My Rosebud. Ainda hoje depois de sucessivas audições a harpa que abre a canção me deixa perdidinho da Silva. Não só a harpa, mas os primeiros versos também: Now I don't mind if I hurt you/ And leave the guilt behind/ So here I go burning bridges/ Did i play my hand too soon? Como se essa franqueza libertadora já não bastasse, há ainda na canção um momento mágico expresso pela declaração há tanto escondida, agora jogada na cara – que coincide com uma fabulosa paradinha: It’s not like/ I said that I love you. The Curse of Comfort tem interpretação repleta de ternura, embora seja desesperançosa. Fica a cargo de The Irish Keep Gate-Crashing, talvez a obra prima da banda, ‘fechar’ o disco. E que ‘fecho’, viu? Não tem como não ficar sensibilizado com a ingenuidade do eu-lírico quando diz ao ser amado: se eu pudesse aprender a te amar, você também poderia aprender a me amar. E assim como na faixa que abre o cd, não há como resistir ao it goes on and on and on... derradeiro. City of Long Nights, faixa escondida que realmente fecha o disco em conjunto com uma versão instrumental de Irish Keep Gate-Crashing não acrescenta nem compromete o resultado final da bolachinha.

Embora esta lista seja de alguma maneira um convite implícito para audição destes maravilhosos discos, dessa vez faço questão de deixar um convite explicito para que vocês, meus leitores, procurem pelas músicas do Let’s Bottle Bohemia. E o falo tão diretamente assim pela razão única de que este talvez seja o único disco dentre todos desta seleção que vocês verdadeiramente irão gostar sem nenhuma restrição. Baixando o CD vocês estarão ajudando a desfazer essa enorme injustiça que é deixar o Thrills no terceiro escalão da música mundial!

Idiot Heart.

Depois do caos de “Randon Spirit Lover” (quase um apocalispe prog estranhamente palatável) e das canções de amor sombrias que ele reservou para os últimos álbuns do Wolf Parade e do Swan Lake, ninguém esperava (eu pelo menos não) que Spencer Krug fosse escolher sua música mais direta em muito tempo para puxar o novo disco do Sunset Rubdown.

O que não quer dizer que “Idiot Heart” seja parecida com a nova música do Jet, por exemplo. É épica (tem 6 minutos), porque ele é um cara que gosta de coisas épicas. Mas tem guitarras de hard-rock, apelo sentimental bastante direto (é uma outra canção de amor obsessivo), ponte ganchuda, levada de bateria post-punk (refrão de “Transmission”, de novo) e vários quase-refrões cantaroláveis/gritáveis (“Look at you now! Look at you now!” e outros). Com Krug nada é exatamente fácil, embora seja quase sempre brilhante.

(Livio Vilela, Bloody Pop)

***

Stay away from open windows and put the telephone down.
Can you run as fast as this house will fall when the alarm bell sounds?
No, I was never much of a dancer but I know enough to know you gotta move, your idiot body around.

And you can’t, can't settle down until the idiot in your blood settles down.

So move around, oh move around, oh move around, oh move around, oh move around, oh move around. Wa-oh!

And if I found you in this city, and called it Paradise
I say, I love you but I hate this city, and I’m no prize.
You want to walk around like you own the joint
The way that Icarus thought he might own the sky.

I said you can’t, can’t settle down,
Until the Icarus in your blood,
In your blood drowns
No you can’t, can’t settle down,
Until the Icarus in your blood,
In your blood drowns

I said, If I was a horse I would throw up the reins if I was you.
Wa-a-a-a-a-a-a-oh!

So, look at you go!
(You were a sorcerer)
Oh, look at you go!
(You were a meteor)
Oh, look at you go!

Oh, look at you go!
(You were a sorcerer)
Oh, look at you go!
(You were a meteor)
Oh, look at you go!

Oh, look at you go!
(You were a sorcerer)
Oh, look at you go!
(You were a meteor)
Oh, look at you go-o-o-o!

Oh, look at you go!
(You were a sorcerer
you were a meteor)
and, look at you go!

And you know a heart, and you know a heart, and you know a heart,
And you know a heart, and you know a heart, and you know a heart,
And you know a heart, and you know a heart, and you know a heart
And you know a heart, and you know a heart, and you know a heart
But it’s an idiot heart.

And you know a heart, and you know a heart, and you know a heart
And you know a heart, and you know a heart, and you know a heart
And you know a heart.

But you can’t, can’t settle down, down, down Ba-da-da-da-da-ba-da-da-ba-ba
But you can’t, can’t settle down, down, down Ba-da-da-da-da-da-da-da-da-da

So just move around, move around, move around, move around.
Move around. Move around. Move around. Move around.

I hope that you die in a decent pair of shoes
You got a lot more walking to do where you’re going to.

I hope that you die in a decent pair of shoes
You got a lot more walking to do where you’re going to.

(Idiot Heart, Sunset Rubdown)

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Os Discos da Década - Nono Lugar.

9) Rubies, Destroyer (2006)

Cena 1

- Guilherme, mas que música chata! Tira isso daí!

Cena 2

- Ba rá rá rá rá, ba rá rá rá...
- Ué mãe, mas não foi você quem disse que achava essa música um porre?

Este pequeno mosaico sintetiza de maneira precisa o efeito que Rubies, sétimo disco de estúdio do Destroyer – projeto autoral de Dan Bejar, do New Pornographers – causa no ouvinte. E não foi apenas com minha mãe que isso aconteceu: eu também fui submetido exatamente a mesma sensação. Bem que o alerta já havia sido dado pelo César M., do blog Indienation: tente não ficar com os "larilás" na cabeça: é impossível. Realmente, é impossível, da mesma maneira que é igualmente impossível não ter certo estranhamento com o tipo de musicalidade presente neste disco. Primeiro porque em plena década 00, em vez de emular a verve oitentista tal como 11 em cada 10 bandas fizeram neste século, Dan Bejar em Rubies revela a sua predileção pelos anos 70 – leia-se David Bowie fase Ziggy Stardust, para ser o mais específico possível. Essa tara atinge o ápice de evidência com Looters’ Foolies, a primeira música que me chamou atenção no disco. E me chamou atenção simplesmente porque eu não conseguia conceber que aquela música não estava no célebre álbum de David Bowie. Tudo ali exala a essência de Ziggy Stardust: o jeito declamado de cantar, o ar épico, as vocalizações mais do que precisas, o final emocionante e descendente. Mas... inexplicavelmente parece ainda melhor do que Ziggy Stardust! Sim, e a culpa é justamente dos ‘larilás’ que não existem em Bowie e servem para enfatizar a carga dramática da canção. E embora Dan Bejar use e abuse desse recurso ao longo das dez canções que compõem o disco é incrível perceber que em cada circunstância melódica tal efeito assume contornos diferentes, específicos. European Oils, por exemplo, tal qual Looters’ Foolies, começa com um pianinho delicioso, mas nega o estatuto épico ao privilegiar um direcionamento mais pop. A escolha não poderia ser mais agradável: no final da canção após uma ‘pseudo-paradinha’ em que sobressaem os violões entremeados pelas vocalizações típicas de Bejar, surge a avalanche: não há como não deixar escapar um sorriso e um pouco esperança ao ‘larirar’. Painter In Your Pocket tem aquela ambigüidade típica das grandes faixas de Rock’n’Roll, não sabendo se cai para a melancolia ou para a esperança, além de possuir uma bateria marcante e um refrão contagiante, sendo a minha faixa predileta da bolachinha. Watercolours Into The Ocean mantém o delicioso clima nublado e atinge seu ápice num momento aparentemente banal quando o eu-lírico da canção diz oh life... is bigger. Se no fim de Painter In Your Pocket o sol se abre, Bejar faz o contraponto correto no desfecho de Watercolours Into The Ocean ao deixar cair aquela chuvinha fininha, leve, gostosa. A Dangerous Woman Up To A Point com seu belo arranjo de metais é outra homenagem explicita de Bejar a Bowie e tem resultado igualmente impecável. Rubies, faixa que abre e dá nome ao cd, com seus precisos 9:25 min é talvez a canção mais discrepante do disco, embora não menos charmosa. Sim, os larirás também estão presentes, mas há uma aparente crueza – talvez por ser uma das poucas faixas totalmente conduzidas ao violão – que a distancia do grande rebuscamento das demais músicas do CD. Se em sua primeira metade os violões concorrem com baterias esporádicas e guitarras, na segunda a simplicidade do voz e violão deixa tudo mais emocionante – inclusive para quem, como eu, não costuma gostar tanto deste formato. A pureza é tão grande que se pode ouvir tanto a singularidade das cordas quanto a imprecisão nas batidas de Bejar, o que oferece uma maior autenticidade e beleza ao registro. Cabe a Sick Priest Learns To Last Forever a tarefa de dar números finais ao petardo com sua empolgante pegada blueseira. Nesse emaranhado de canções excelentes apenas 3000 Flowers, sexta faixa do disco, soa dispensável por conta de sua excessiva presunção ao misturar várias camadas de instrumentos de maneira tanto desorganizada.

Pensar que por muito pouco este discão passar-me-ia despercebido – só fui baixá-lo, por um golpe do acaso, em 2008, ou seja, dois anos depois de seu lançamento – me deixou com uma enorme dívida de gratidão com Bejar, muito bem paga hoje com este nono lugar entre os discos mais bacanas desta década. Viva as surpresas da vida!

Ilhado.

E você sai apressado com o envelope amarelo – e isso é importante frisar - na mão, cujo texto curto, seco, recém escrito está prontinho para ser colocado no correio e assim ligar duas cidades longínquas, embora próximas - ou seria o contrário? -, quando, de relance, você olha para frente e constata que a sua destinatária está sentada exatamente diante de seus olhos.

Perdendo Dentes.

Dentes guardados. Não acabam nunca se guardados.
Na boca apodrecem.

(Dentes Guardados, Hilda Hilst)

***

Ele tirou a minha virgindade. Transamos no meu quarto, noite suarenta de sábado em que meus pais estavam no sítio, uma penetração indolor, lenta e gostosa, e pelo resto da madrugada ele acariciou incansável o meu corpo, venerando tudo, meus peitos que eu temia serem pequenos demais, minha bunda que eu achava mole, meus pés com dedos tortos, eu tinha medo de como os homens julgariam meu corpo, era minha única ansiedade e ele desmentiu-a logo em nossa primeira noite de cama. Na primeira vez que fizemos sem camisinha, estranhei a sensação de ter aquela porra dentro de mim, sentei-me sobre os tornozelos pra que tudo escorresse de uma vez para fora, me sentindo ridícula, ele pôs um lenço de papel na palma da mão e colocou-a entre as minhas pernas, dizendo Ei assim tu vai manchar o teu edredon. Os gestos dele me surpreendiam, trazendo calma e conforto, sempre iam a favor das minhas expectativas. Dia desses num bar uma menina chegou vendendo rosas, e por um instante temi que ele fosse me oferecer uma rosa, atitude que eu teria considerado estúpida, odeio flores e odeio babaquices românticas, mas não, ele recusou a rosa e ainda me disse Eu espero que tu nunca espere que eu te dê rosas. Não concordamos em tudo, na verdade temos gostos muito antagônicos para várias coisas, filmes e marcas de cerveja, por exemplo, mas ele nunca mostrou-se preocupado em mudar minhas opiniões, aceitando minha personalidade, meus erros e meus estados de espírito com absoluta tolerância, anulando a vergonha que tive certa vez por chorar na frente dele com o gesto de lamber meu rosto e engolir minhas lágrimas, compartilhando meus momentos de angústia com abraços silenciosos, e numa noite em que saí sozinha e traí ele pela primeira vez, percebi que tinha uma chance de testar sua tolerância. Contei tudo, e para meu espanto ele apenas moveu as pálpebras macias e me disse que achava natural o desejo fora do relacionamento, que estava chateado mas que minha traição não influía no seu amor por mim. Insisti, descrevi detalhes do rapaz, dos beijos e carícias na pista de dança e isto, ao invés de abalá-lo, excitou-o. Acabamos transando, e eu gostei. Foi a partir daquele dia que a tolerância dele tornou-se irritante. Me convenci de que eu devia provocá-lo, eu necessitava de um pouco de ódio, tumulto, nosso amor era certo demais. Só que não funcionou: aturou meus porres escandalosos, meus arrotos em público, respondeu minhas agressões verbais à altura, acatou todos os meus comportamentos. Porque me amava. Me tratava tão bem, reagia tão perfeitamente às minhas expectativas, que o amor dele passou a me dar tédio, tornou-se irritante de tão pleno, de tão incorrigível. Daí resolvi terminar, mandei ele à merda. É claro que até nisso ele foi compreensivo. Eu estava prestes a acender o terceiro cigarro quando ele finalmente reagiu, e foi para me dar um abraço. Respeitou meus sentimentos, disse entender que seu amor incondicional me agredisse. Mas não era pra ele entender!, não era pra aceitar, porra!, era pra sentir ódio, pra me odiar, parti pra cima daquele filhodaputa, atirei telefone, copos, livros, cadeira, tudo pra cima dele, ele devolveu, me bateu com força, me xingou, e cada tentativa minha de machucá-lo ele respondeu, cuspi nele e ele me cuspiu, aranhei o rosto dele com ferocidade, ele me chutou pelo chão da sala, senti dor, berrei como uma porca e percebi horrorizada que até mesmo naquele momento, por deus, ele estava fazendo o que eu esperava dele, ele estava me dando o que eu queria.

(Amor Perfeito, Daniel Galera)

terça-feira, 14 de abril de 2009

Os Discos da Década - Décimo Lugar.

10) Saudades das Minhas Lembranças, Nervoso

Eu jamais seria capaz de escolher [para entrar na décima posição deste ranking] um disco que tenha faixas tão chatas quanto Moça Mimada e Pra Terminar.

Uma mudança realmente inesperada ocorreu. Justo quando estava tentando argumentar sobre a opção que até então eu havia feito para ocupar este espaço, eis que ao escrever a frase acima me veio à mente imediatamente o contraponto ou seria?

Não apenas seria como fui: Saudades das Minhas Lembranças, disco de estréia do compositor carioca André Paixão, o Nervoso, ex-baterista do conjunto Acabou La Tequila, é exatamente o nome que faltava para esta lista. Não apenas pela genialidade de seu título e pelo primor da arte gráfica mas, sobretudo, pelo que de fato interessa: suas músicas.

O ‘fato’ que eu havia me esquecido é que se Saudades das Minhas Lembranças tem em seu repertório Moça Mimada e Pra Terminar, verdadeiras brincadeiras de mal gosto cuja musicalidade muito se aproxima dos clichês forçosos de grande parte das bandas insosso rock gaúcho, por outro lado, a coleção de pérolas que o disco possui é infindavelmente superior a ponto de compensar plenamente qualquer presepada que Nervoso tenha cometido no meio do caminho.

A capa do debut fornece a chave para entender a musicalidade proposta por Nervoso: o belíssimo coração explodindo e jorrando sangue aponta para visceralidade presente nas canções, que de tão sinceras não raramente atingem aquela pieguice quase constrangedora que torna este registro tão tocante, algo que talvez só encontre equivalente em E o Método Tufo de Experiências, ótimo disco dos cearenses do Cidadão Instigado, de 2005. No entanto assim como no disco de Fernando Catatau, há uma barreira que por vezes acaba afastando Saudades das Minhas Lembranças de um público mais amplo, qual seja, o sotaque totalmente carregado e, por vezes, galhofeiro de Nervoso que também não faz questão nenhuma de negar suas origens. O bacana é que transposto este obstáculo - em ambos os casos - o que era desvantagem se torna justamente trunfo: o chiado de Nervoso faz toda a diferença não apenas em sua performance, mas também na de seu séquito de fãs! O hit mais imediato do disco, o rock ‘jovemguardiano’ Já Deshmanchei Minha Relação jamais seria tão intenso e delicioso se no lugar de seu charmoso sh estivesse o tradicional s, para ficar em um exemplo mais imediato.

Sotaques à parte, o grande trunfo do disco é justamente sua a pluralidade musical. Nervoso faz uma verdadeira salada que transita entre o samba, a Jovem Guarda – talvez daí a sua enorme sinceridade -, o rock dos anos cinqüenta, o rock tradicional e experimentações malucóides sempre com a mesma competência. É justamente nesta última categoria que se encaixa O Bom Veneno, que embora tenha um arranjo estranho tem uma letra de primeira: Pois o começo é sempre ligado ao fim de algo bom ou de algo ruim. E o meu fim será o seu suplício Pra eu poder voltar ao início. O tom provocativo também se mantem na poderosa trinca roqueira Maus Limites (não vou suprir essa seu maldito desejo de impor maus limites) – que abre o disco e ironicamente tem seu ponto alto no arremedo do refrão de Fingi Na Hora Rir, dos conterrâneos do Los Hermanos; O Percurso (Respeito meu desejo/ Ignoro as aparências/ Se for pra outro lado vou dever para verdade/ E seguirei, prosseguirei); e na raivosa Não Quero Dar Explicação (O que eu quero dizer - e vê se me entenda dessa vez - é que são tantas perguntas que atropelam minha vontade de raciocinar. Não quero dar explicação!). A malemolencia dos sambinhas A Visita e, sobretudo, a espetacular Que Martírio! com seu refrão grudento refrão (Que martírio é ter você como um álibi e me acomodar com medo de partir) e seus contagiantes ‘pararás’. Mas talvez sejam nas baladas que Nervoso atinja seus ápices: Mais Justo, que conta com participação do ‘Hermano’ Rodrigo Amarante nos vocais, tem tom suplicante e confessional, terminando com os imagéticos versos eu tenho um sonho eterno com você/ estou acordado; já Despedida Sem Fim é uma típica canção do The Platters, trilha sonora ideal para os momentos de fossa total (Veja que chato é estar entregue a quem se foi e emagrecer sem consistência. Não penso em encontrar alguém que não seja você) que tem seu momento maior com o eu-lírico tomando consciência de uma triste constatação: lembro que só você me dava valor. A essa hora as lágrimas já se espalharam pelo mundo. Clube da Luta, a melhor música do disco, é uma síntese perfeita de Saudades das Minhas Lembranças com seu refrão antológico eu luto para não ficar pior. Calma, Nervoso!

Nada melhor do que um disco nostalgico, transbordando emoção, para uma década nostalgica.

Os Discos da Década.

É chegada a hora de fazer um pequeno balanço com o que de melhor foi produzido na música durante esta década. Depois de revirar meus arquivos, acabei selencionando dez discos que na minha singela opinião oferecem um panorama significativo do que de melhor rolou no cenário musical durante este período. Para manter um clima de 'suspense' - que nem é exatamente tão necessário, mas não deixa de ter lá a sua graça - a cada dia será publicadauma resenha falando um pouco mais da importância de cada um dos discos selecionados.

No caminho.

As reticências
Também são pontos finais

(Paradoxo, Eva Pereira)

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Is It Really So Strange?

Eis que a censura baixa a guarda e você me aparece de uma maneira tão definida, tão nítida quanto jamais experimentada outrora em algum sonho. E como não podia deixar de ser, com direito a todos os efeitos mais especiais possíveis que só uma produtora com a relevância e perícia da Oniric Pictures pode nos oferecer: de repente a câmera, que estava enquadrada em um determinado plano, se desloca lentamente e aponta para o impensável: fecha em você. Eis que aí, num misto de empolgação e espanto eu pergunto: ‘é realmente você?’ – uma circunstância um tanto quanto inusitada e ao mesmo tempo deveras clichê que só poderia mesmo acontecer em um filme. Detalhe: estávamos dentro de um ônibus e eu já estava sentado, sem que a tivesse visto antes?! Não houve respostas. Talvez porque não se precisasse dela – até mesmo porque a pergunta em questão não passava de mera retórica de contexto, gênero surpresa. De qualquer modo foi de fato bonito rever pessoalmente aqueles traços tão familiares, tão conhecidos e, porque não tão desejados? Aquela mesma timidez velada vestida de confiança nervosa que lhe tornava verdadeiramente linda.

E pensar que o sonho foi desvelado quando eu estava a lavar a louça do jantar de ontem e, sem mais nem menos, você resolveu vir a tona – novamente – e aí...

Invasão.

Hoje eu sei: foi o jeito que você me olhou. Intrusivo. Ainda agora me pego lembrando da sua fisionomia num desses instantes derradeiros: havia aquela distância entre nós, evidentemente, mas o que me chamava a atenção, o que ficou foi a insistência. Não era apenas um olhar. Era uma invasão da minha alma, um verdadeiro acampamento montado com bandeira fincada e tudo. Sem saber muito bem o que fazer – pra variar – eu olhava para um lado, olhava para o outro e quando voltava você ainda sustentava. Gozado, porque sempre fiquei com certa impressão de lerdeza de sua parte, uma malemolência, uma preguiça. Mesmo a sua voz – e as vozes são sempre marcantes – tinha aquele que de desleixo. Arrastada. Prenuncio do arrastão talvez. Mas o que ainda hoje me intriga apesar de tudo é o olhar fixo, como se houvesse mais por ali do que apenas olhos. Havia. Você congelava integralmente enquanto eu me perdia, ficava vulnerável. Porque, convenhamos, é no mínimo desconfortável – isso para não dizer desesperador – quando alguém está vasculhando alguma coisa perdida dentro de você. Esse é o ponto: você com seus olhos me comia, literalmente, penetrava em meu interior mais profundo, vazio, obscuro. É perturbador, me deixou totalmente perturbado, desconcertado a tal ponto que eu simplesmente já não conseguia me perceber enquanto dono de mim mesmo. Ali eu já estava vencido, não havia mais nada o que ser feito. As terras trêmulas e o que mais estava oculto já estavam entregues. Não havia armas. Apenas os seus olhos. Esses que agora vejo. Esses que hoje moram em mim.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Direções.

São 5:15h. De repente me deu uma daquelas vontades súbitas de escrever sobre nem sei o que. Talvez como uma reação a ortodoxia ABNT do modo de pensar completamente estruturado da monografia que aos trancos e barrancos venho tentando conceber. Não foi fácil parir praticamente seis páginas ainda mais quando não se está com a menor cabeça para tentar tratar de um conceito tão inócuo como midiatização. Mais do que isso: ainda mais quando se está de saco cheio da própria ciência. Tão amada, igualmente tão odiada. Nesse meio tempo entre uma leitura e outra – leituras feitas de uma maneira que não é exatamente displicente mas sem entusiasmo, sem ardor – eis que um papo paralelo tem sido um alento. Mais uma daquelas peças que a vida adora nos pregar, evidentemente. Mais uma daquelas pessoas que de tão parecidas no modo de pensar, deveria, portanto, logo ser colocada obrigatoriamente sob suspeita! Mas não tem como quando a razão mais bonita é cair no velho truque do acreditar, do torcer, do querer, do conversar. Mais uma vez ouvir coisas do tipo ‘eu não pensei que existisse gente como você’ – e mais uma vez acreditar na sinceridade de uma frase dessas. Até porque a recíproca, de fato, também é verdadeira. A probabilidade de encontrar uma pessoa assim é realmente mínima, daí o apego. Daí os apegos, na verdade, a busca pelo contato. Assumir novamente o risco de ser mal interpretado, de parecer intransigente quando o que se quer é justamente o oposto. De repente, timidamente, aquela coisa de compartilhar os passados e fazer constatações do tipo ‘realmente você se parece muito comigo’. E também de repente entre uma palavra e outra se percebe o quanto o passado é um tempo em presença, o quanto ele define, o quanto ele aponta. As questões que ficaram em aberto começam a ser novamente revisitadas, ampliadas e algumas respostas entre uma ai daqui e um ai dali são cristalizadas. Ainda assim, é fato, o coração aperta. É tanta coisa, sabe, é tanta coisa... E ao mesmo tempo não é absolutamente nada. E ainda assim esse é o problema maior: saber transitar entre o tanto e o nada, saber criar uma terceira margem no rio, como bem metaforizou o grande Guimarães Rosa. É estranho. Sempre é estranho. E viver em um estado completo de estranhamento que paradoxalmente coexiste com o tédio, com o hábito, com as rotinas, com os cartões a serem batidos, com as velas a serem acesas não é uma questão simples. Ou é estranho ou é engraçado. E não tem graça. E... E... E... Bem, e aí você escreve. Na verdade antes você pensa, a frase vem pronta na sua cabeça. Mas não é uma frase, é simplesmente um erro. É como perceber que invariavelmente você está perdido em erros, que não importa qual seja a sua escolha ela está equivocada desde antes do problema realmente vir a tona. Algo como tentar andar em uma areia movediça. É como tentar andar, apenas. É como tentar viver. Às vezes eu dou uma risada. Algo vem a minha mente e me atropela e em vez de gritar eu limito a rir um riso discreto. Pouco importa. Pouca coisa, pouca gente pouca. Para o bem ou para o mal, tudo que é pequeno invariavelmente alguma hora se transforma em algo grande. E tudo que é grande, é tão grande que praticamente ninguém enxerga – passa por invisível, negligencia-se. Pequeno, grande, quanta bobagem. Quantos pensamentos desconexos – como estes próprios – em busca de (as mãos gesticulam quando faltam as idéias). Quisera eu pudesse escrever assim a minha monografia, quase que de um modo dadaísta-sem-sorteio à luz do acaso, do descaso, de alguma rima qualquer. E então eu diria que perto do coração a midiatização não é senão uma razão – ou falta. Que existem problemas mais importantes que o método e que na verdade todo método é falho. Nunca me adiantou ter método nem maneiras justamente porque são métodos e maneiras. Quando se pega na mão e se tenta encontrar o melhor método e a melhor maneira se descobre que não se está realmente pegando a mão. Tem uma luva invisível – método errado, maneira errada. Certo e errado – o certo vira o errado, o errado vira o certo e daí todas as demais confusões decorrentes. Mais, mais, mais, mais, mais... opa! Sai! Mas... Não! Era mas! Era mas? Não! Era o que? (...) Era o que? Tum, tum, tum, tum. Era uma vez uma linha... Sabe? Não sei. Eu nunca soube. Eu pareço um pouco mais ambíguo. Coça insistentemente o couro cabeludo, franze a testa, alisa as pernas, o rosto. Coça com força. Talvez tenha algo justamente ali. Algo. Algo que te faça. Talvez seja porque ainda hoje eu não saiba andar de bicicleta tão bem, apesar dos tombos. Pensando bem... Pensando bem já é pensar e pensar nunca faz bem. Pensando bem é necessariamente uma contradição em termos, embora a mim nunca tenha sido possível o oposto, o enorme privilégio de ser uma pedra! Oh cadeias de átomos de carbono! Oh óvulos e espermatozóides! Oh raios! Então eu penso mal, mesmo. Porque mal é sempre visto como errado – embora o errado seja sentido como certo porque embora não digam, parece que o bem nunca faz bem. Logo, estou em casa: um estranho estrangeiro que olha pela janela e vê algo piscando. Tenta localizar e já foi. E já foi. E o que era agorinha já não é mais agora – nem agora (...). E o que fica disso tudo? 6:20. O alarme do celular (?!) tocou, o download acabou. E agora? Acho que é hora de voltar...

terça-feira, 7 de abril de 2009

Laços.

A separação, na realidade, também inclui conexão. A atitude de um indivíduo em face a si mesmo separado de outro se baseia uma predisposição para reconhecer ao mesmo tempo os laços que o unem a esse outro. Independência supõe dependência. A emergência de um indivíduo ontologicamente seguro exige tanto distanciamento quanto proximidade em seus vínculos com os demais e requer que a segurança interior se complemente com a segurança exterior. Interior e superior, os mundos da realidade subjetiva e da realidade objetiva devem distinguir-se, mas também se relacionar entre si.

(Roger Silverstone, a partir das idéias de Donald Woods Winnicott)

Sopro.

No seu semblante há algo a mais que simples gratidão, um sopro
O mesmo sal de quando você quis me desarmar
A sede não sacia o amor
Acene se você trair o olhar que não soube ouvir

E se a corda te enforcar, quem vai morrer junto de ti?
E se você não se descuidar um pouco, se estilhaçar de novo, vai se partir

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Close pro fim.

...e sabia como poucos a localização precisa das Islândias mais desconhecidas que habitam o interior de cada mulher talvez porque...

domingo, 5 de abril de 2009

Comunicação.

Para cada palavra lúcida
Um silêncio bêbado
Para cada palavra bêbada
Um silêncio lúcido

Para cada silêncio lúcido
Uma palavra bêbada
Para cada silêncio bêbado
Uma palavra lúcida

(Outdoor, autor a ser conhecido)