segunda-feira, 30 de junho de 2008

All Fires.

If when you call she comes for you: give your all, boy...

(Petersburg, Liberty Theater, 1914, Swan Lake)

Com raspas de limão...

Segui em frente, decidido. Não tenho certeza, mas acho que estava no calçadão de uma praia qualquer. Encontrei o que procurava. Fiz que não vi, mas você entendeu perfeitamente o meu ar. Largou tudo o que estava fazendo na hora e veio em minha direção. Correndo. Passos comedidamente largos, como quando a gente está muito eufórico e teima em não quer demonstrar – o que de nada adianta, pois mesmo assim a euforia nos vence. Esse intervalo que separa a constatação e o encontro tem o tempo de uma eternidade. Eu, por minha vez, embora fizesse certa pose tanto blasé (para quem não me conhece), fiquei desarmado. Escondido. Totalmente desarmado. Porque existe algo por trás, por dentro, pela frente, ao redor, a que poucos têm acesso irrestrito. Aquela chave das portas invisíveis, mas que existem, separam, segregam, guardam, escondem, confortam. No mais são sempre aparências que quase nunca correspondem ao que realmente se processa em meu interior.

Voltemos à eternidade. Você. Eu. Aliás, essa eternidade tem o doce gosto amargo de um afogamento. Eu estava me afogando naquele instante, no vazio, beirando a morte. E você como de costume insiste em chegar exatamente no limite. Apenas na 'hora h' você desarma a bomba, me puxa no último segundo de vida. As minhas forças já estão totalmente entregues. Não há mais o que se fazer. Ou melhor: será que um dia houve? Porque de alguma forma todo começo desenha um fim dentro de cada um de nós, mesmo que este fim último não seja alcançado. Foi essa a sensação que tive quando te conheci. Não, não acredito em nada que soe sobrenatural, embora escute algumas das minhas intuições e elas invariavelmente me remetam a invenção mais sobrenatural que o homem foi capaz de criar. Exatamente essa tal invenção que me fez querer você, que me fez perder o ar e me afogar dentro de mim.

Só me recordo de você dizer algo como: eu vou ter que dar um jeito de sair de lá e ficar aqui com você. Algo como um eu te amo disfarçado, bem à sua maneira. E você estacionou corpo, alma, vida e o tempo ali naquele espaço, perto de uma praia qualquer, escondidos nós dois e tudo que existia entre a gente numa cápsula protetora invisível, trancada, selada, lacrada com uma daquelas tais chaves invisiveis que você usou para me abrir. Nenhuma palavra. Nada. Não me lembro de nada, mas poderia ter sido assim. Com aquele azedinho das raspas de limão que você costumava colocar no mousse.

sábado, 28 de junho de 2008

It's the easiest way.

I got a hand
So I got a fist
So I got a plan
It's the best that I can do
Now we'll say it's in God's hands
But God doesn't always have the best goddamn plans, does he?

(Dear Sons And Daughters Of Hungry Ghosts, Spencer Krug)

Cá, Fancy Claps, Lá...

Foi ao som da Fancy Claps que tudo começou. Sim: lá e cá. Lá, no hoje longínquo que foi resgatado quando cá seus primeiros acordes ecoaram em meus ouvidos. O fluxo começou assim mesmo:

- Até que essa música não é tão ruim...

Não falei nada na hora. Naquela hora de mágica de lá, que fique bem claro. Mas se fosse hoje, agora, cá eu não hesitaria em dizer:

- Não é tão ruim? Onde você está com a cabeça? Essa música é excelente, oras!

E cá, quando penso em lá onde não mais posso tocar, onde no fim das contas hoje percebo que nunca pude realmente tocar, um monstro vertiginoso cresce. E nesse ônibus, de onde falo, de onde abrem-se os caminhos, dentro dele, dentro de mim, dentro do mundo, uma cratera me engole totalmente. Não se trata de nada próximo da tal dor do parto, esse sentimento que agora cá, Fancy Claps novamente, fisgou meu ventre. De modo algum, porque se assim fosse não seria uma sensação tão ambígua quanto esta que tento descrever. Se fosse algo como a dor do parto certamente na hora eu teria feito questão de falar, quer dizer, de gritar o que não disse a respeito daquele comentário. Mas não. Isso (sim, ‘isso’ a que não sei exatamente chamar) que aconteceu agora, que no meio dessa viagem resolveu se entranhar em meu ventre tem aquele gostinho agridoce de nostalgia. Isso, a que não ouso precisar, embora tateie, foi exatamente o que naquela hora me fez ficar mudo ao ouvir você cometer tamanha insanidade contra a Fancy Claps. Na verdade foi isso, exatamente isso que lá, naquele momento, me fez concordar com você. É... Quanta atrocidade... Foi isso que sem mais nem menos no intervalo de uma canção veio, me consumiu, e me deixou exatamente como ocorreu entre dois momentos de mim mesmo atravessados por um entrave que até hoje eu não consegui entender. Nem lá, nem cá.

Outro tiro certeiro.

Como você sabe, dirás feito um cego tateando, e dizer assim, supondo um conhecimento, faria quem sabe o coração do outro adoçar um pouco até prosseguires, mas sem planejar, embora planejes há tanto tempo, farás coisas como acender o abajur do canto depois apagar a luz mais forte, criando um clima assim mais íntimo, mais acolhedor, que não haja tensão alguma no ar, mesmo que previamente saibas do inevitável das palmas molhadas de tuas mãos, do excesso de cigarros e qualquer coisa como um leve tremor que, esperas, não transparecerá em tua voz. Mas dirás assim, por exemplo, como você sabe, sim como você sabe, a gente, as pessoas, infelizmente têm, temos, essa coisa, emoções, mas te deténs, infelizmente? o outro talvez perguntaria por que infelizmente? então dirás rápido, para não desviar-te demasiado do que estabeleceste, qualquer coisa como seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente, insistirás, infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções. Meditarias: as pessoas falam coisas, e por trás do que falam há o que sentem, e por trás do que sentem há o que são e nem sempre se mostra. Há os níveis-não-formulados, camadas imperceptíveis, fantasias que nem sempre controlamos, expectativas que quase nunca se cumprem, e sobretudo emoções. Que nem se mostra. Por tudo isso, infelizmente, repetirás, insistirás, completamente desesperado, e teu único apoio seria a mão estendida que, passo a passo, raciocinas com penosa lucidez, através de cada palavra estarás quem sabe afastando para sempre. Mas já não sou capaz de me calar, talvez dirás então, descontrolado, e um pouco mais dramático, porque meu silêncio já não é uma omissão, mas uma mentira. O outro te olhará com seus olhos vazios, não entendendo que teu ritmo acompanharia o desenrolar de uma paisagem interna, absolutamente não-verbalizável, desenhada traço a traço em cada minuto dos vários dias e tantas noites de todos aqueles meses anteriores, recuando até a data, maldita ou bendita, ainda não ousaste definir, em que pela primeira vez o círculo magnético da existência de um, por acaso banal ou pura magia, interceptou o círculo do outro.

No silêncio que se faria, pensas, precisarás fazer alguma coisa, como colocar um disco ou ensaiar um gesto, mas talvez não faças nada, porque ele continuará te olhando com seus olhos vazios, no fundo dos quais procuras, mergulhador submarino, o indício mínimo de um tesouro escondido para que possas voltar à tona com um sorriso nos lábios e as mãos repletas de pedras preciosas. Mas nesse silêncio que certamente se fará, talvez acendas mais um cigarro, e com a seca boca cerrada, sem nenhum sorriso, evitarias o mergulho para não correres o risco de encontrar uma fera adormecida. Teu coração baterá fortemente, sem que ninguém escute, e por um momento talvez imaginas que poderias soltar os membros e simplesmente tocá-lo, como se assim conseguisses produzir uma espécie qualquer de encantamento que de repente iluminaria esta sala com aquela luz que tentas, em vão, descobrir também nele, enquanto dentro de ti ela se faz quase tangível de tão clara.

Nítida luz que ele não vê, esse outro sentado a teu lado na sala levemente escurecida, onde os sons externos mal penetram, como se estivessem os dois presos dentro de uma bolha de ar, de tempo, de espaço, e novamente encherás o cálice com um pouco mais de vinho para que o líquido descendo por tua garganta trêmula vá de encontro a essa claridade que tentas, precário, transformar em palavras luminosas para ofender a ele. Que nada, diz, e nada dirás, e sem saber por quê pensas um extenso corredor escuro onde tateias, feito cego, as mãos estendidas para o vazio, pressentindo o nada, que tu mesmo prepararias agora, suicida meticuloso, através de silêncios mal tecidos e palavras inábeis, pobre coisa sedenta, te feres, exigindo o poço alheio para matar tua sede indivisível.

Anjos e demônios esvoaçariam coloridos pela sala, mas o caçador de borboletas permanece parado, olhando para a frente, um cigarro aceso na mão direita, um cálice cheio de vinho na mão esquerda. A presença do outro latejaria a teu lado, quase sangrando, como se o tivesses apunhalado com tua emoção não dita. Tuas mãos apoiadas em bengalas mentirosas não conseguiriam desvencilhar o gesto para romper essa espessa e invisível camada que te separa dele. Por um momento desejarás então acender a luz, dar uma gargalhada ridícula, acabar de vez com tudo isso, fácil fingir que tudo estaria bem, que nunca houve emoções, que não desejas tocá-lo nem conhecê-lo, que o aceitas assim latejando amigo velo remoto, completamente independente de tua vontade, te todos esses teus informulados sentimentos. No momento seguinte, tão imediato que nascerá, gêmeo tardio, quase ao mesmo tempo que o anterior, desejerás depositar o cálice, apagar o cigarro e estender duas mãos limpas em direção a esse rosto que sequer te olha, absorvido na contemplação de sua própria paisagem interna.

Mas indiferente à distância dele, quase violento, de repente queres violar com tua boca ardida de álcool e fumo essa outra boca a teu lado. Desejarás desvendar palmo a palmo esse corpo que tá tento tempo supões, até que as palma famintas de tuas mãos tenham percorrido todos os caminhos, até que tua língua tenha rompido todas as barreiras do medo e do nojo, tua boca voraz tenha bebido todos os líquidos, tuas narinas sugado todos os cheiros e, alquímico, os tenha transmutado num só, o teu e o dele, juntos - luz apagada, peças brancas de roupa cintilando, jogadas ao chão. Desejá-lo assim, a esse outro tão íntimo que às vezes julgas desnecessário dizer alguma coisa, porque enganado supões que tu e ele, vezenquando, sejam um só, te encherá o corpo de uma força nova, como se uma poderosa energia brotasse de algum centro longínquo, há muito adormecido, quem sabe dessa luz oculta, é então que sentes claramente que ele não é tu e que tu não serás ele, essa coisa, o outro, que mágico ou demoníaco, deliberado ou casual, te inflama assim, alucinando tua alma. Queres pedir a ele que, simplesmente sendo, te mantenha nesse atormentado estado brilhante para que possas iluminá-lo também com teu toque, com tua língua terna, com a vara de condão de teu desejo. Mas ele nada sabe, nem saberá se permaneceres assim, temeroso de que uma palavra ou gesto desastrados seriam capazes de rasgar em pedaços essa trama onde te enleias cada vez mais sem remédio, emaranhado em ti, em tua viva emoção, emaranhado no desconhecido de dentro dele, o outro - que no lado oposto do sofá cruza as mãos sobre os joelhos, quase inocente, esperando atento, educado, que de alguma forma termines o que começaste.

Muito mais que com amor ou qualquer outra forma tortuosa de paixão, será surpreso que o olharás agora, porque ele nada sabe de tu próprio poder sobre ti, e neste exato momento poderias escolher entre torná-lo ciente de que dependes dele para que te ilumines ou escureças assim, intensamente, ou quem sabe orgulhoso negar-lhe o conhecimento desse estranho poder, para que não te estraçalhe impiedoso entre as unhas agora calmamente postas em sossego, cruzadas nas pontas dos dedos sobre os joelhos.

Ah: fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro o cheiro preciso dele.

Que não suspeitará de tua perdição, mergulhado como agora, a teu lado, na contemplação dessa paisagem interna onde não sabes sequer que lugar ocupas, e nem mesmo estás. Na frente do espelho, nessas manhãs maldormidas, acompanharás com a ponta dos dedos o nascimento de novos fios brancos nas tuas têmporas, o percurso áspero e cada vez mais fundo dos negros vales lavrados sob teus olhos profundamente desencantados. Sabes de tudo sobre esse possível amargo futuro. Sabes também que já não poderias voltar atrás, que estás inteiramente subjugado e as tuas palavras, sejam quais forem, não serão jamais sábias o suficiente para determinar que essa porta a ser aberta agora, logo após teres dito tudo, te conduza ao céu ou ao inferno. Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa.

Só não saberás nunca que neste exato momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva. Como um trapezista que só repara na ausência da rede após o salto lançado, acendes o abajur do canto da sala depois de apagar a luz mais forte. E começas a falar.

(Natureza Viva, Caio Fernando Abreu)

quarta-feira, 25 de junho de 2008

No intervalo.

Se em teu coração cultivaste a rosa do amor,
quer tenhas procurado ouvir a voz de Deus,
ou esgotado a taça do prazer,
a tua vida não foi em vão.

O amor que não consome, não é amor;
a brasa tem o mesmo calor de uma fogueira?
Aquele que ama, pelas noites e dias,
vai se consumindo no prazer e na dor.

Que pobre o coração que não sabe amar
e não conhece o delírio da paixão.
Se não amas, que sol pode te aquecer,
ou que lua te consolar?

(Omar Khayyam)

domingo, 22 de junho de 2008

Mais do mesmo de novo...

E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?

(Friedrich Nietzsche em Gaia Ciência)

Como uma luva...

É engraçado. A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo.

(Holden Caulfield, em O Apanhador no Campo de Centeio)

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Pequena homenagem (com pequeno atraso).

Depois da imensa correria de ontem, eu gostaria apenas de deixar registrado nesse espaço minha imensa felicidade com a entrada de uma certa pessoa na faculdade. Hoje em dia isso pode até parecer um pequeno passo, uma coisa boba, mas com certeza para mim é muito, me deixou bastante orgulhoso e por conta disso eu faço questão de dar meus parabéns e desejar sorte para nossa futura 'psicoxinha'. O caminho é árduo, mas recompensante minha querida 'debutante'! Então trate de aproveite! Mais uma vez parabéns!

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Um diálogo.

Tenho toda certeza do mundo que se fosse uma fotografia o Barthes diria certamente que ali estaria o punctum. E de certa forma meu olhar não deixa de ser uma fotografia. E por isso mesmo seus sapatinhos azuis – ou mais precisamente o que eles envolvem - não deixam de ser o famigerado punctum. Eu não conseguia desgrudar deles por um segundo sequer. O em torno não passava de em torno. Parecia até que todo o momento transcorria única e exclusivamente por conta daquele movimento. Pintura viva, às vezes bossa nova, às vezes samba, às vezes o tal do bom e velho (?!) rock’n’roll, bem nervoso. E claro que se o punctum estava ali em baixo isto tinha uma razão: o que ele apontava, para cima. Tudo é uma simples questão de foco. E se eu foquei seus sapatinhos azuis, se eu foquei seus pés é porque eu queria focar você. Foi apenas um jeito sem jeito de dizer – porque olhar é dizer - que você de alguma maneira me deixava desconcertado. E que para mim não importava o que estava acontecendo para além de você. Mas esqueça isso que eu acabei de escrever. Esqueça o sapatinho, que em algumas horas foi posto de lado. Esqueça também a nudez provocante dos seus pés. Para ser bem franco, esqueça um pouco até de você mesma. Porque quando eu vi seus pés – portanto, enquanto eu te vi -, esqueci de mim. Esqueci do mundo. Não sabia se fazia calor ou frio, se aquela aula estava tão chata como de costume. Verdade seja dita, foi você quem me deu um motivo mais do que justo não apenas para freqüentar aquela aula entediante mas para, principalmente, esperar avidamente por cada uma das terças-feiras desse semestre. E quando eu digo você, eu digo tudo, tudo mesmo: dos pés à cabeça, passando pelas entranhas e pela massinha cinzenta que fica dentro da sua caixa craniana. Tudinho. Tudinho que minha câmera fotográfica móvel podia captar e, sobretudo, aquilo que ela não conseguia.

E o que dizer do incômodo? Antes: o que dizer daquela gostosa ansiedade? Porque a verdade é que te ter ao meu lado, mesmo que naquele intervalo curto de uma viagem, me deixava extremamente incomodado. Não me entenda mal: o incômodo é tudo que alguém procura para se sentir vivo. E você me incomodava demais quando rasgava o ar. Aqueles gestos tão incisivos, cortantes para, no momento segundo, retornar ao repouso. Silêncio absoluto. Um sinal? Não sei. Não sou bom com sinais. Na verdade sou péssimo. E então outro corte e aquele jeito encabulado de falar. Suas espinhas em erupção. Que cena bonita de se ver. Todo o gestual pungente, abrupto, robótico. E a risada. Onde já se viu um filme para crianças se chamar os ‘Porra-louquinhas’? Poxa, isso não me sai da cabeça. Isso não: tudo. Tudo não: você. Mas acho que você não faz idéia disso. Aliás, você não faz idéia de tudo. Poxa, você não faz idéia de você! Ou faz? Ou faz idéia de como é bom aquele momento em que nossas pernas se encontram e ficam lá, em contato, apoiando-se, conversando em total reciprocidade? Não sei. Me diz! Assim mesmo, começando a frase com um pronome obliquo átono, contrariando todas essas regras tão quadradas que embalam o chamado português padrão, formal! Não me diga, simplesmente me diz: você faz idéia do quanto me custa os momentos em que estou ao seu lado – mesmo que as vezes distante? Não é dinheiro. Não se trata disso, obviamente. Mas que tem um custo tem. E não sei se você tem idéia do quanto você me custa, do quanto você pesa. E a verdade é que eu mesmo não sei mensurar nada disso, apesar de sentir e isso por si só comprova tudo e me basta. Isso tudo você! Mas agora me diz.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

No confessionário.

- Você me falou isso, eu lembro perfeitamente.
- Sim, eu falei. Mas...
- ‘Mas...’ o que?
- Nada...
- Lá vem você de novo com esse ar reticente.
- Não é nada, já te disse.
- Sei.
- (...)
- Aliás entendi perfeitamente bem o que você me disse, mesmo sem me dizer.
- Ahn?
- Foi isso mesmo que você acabou de escutar. Convenhamos que essa cara de desentendida não lhe cai muito bem...
- Tá bom, você venceu: admito que se te falei aquilo tudo e com tanta convicção era porque eu mesma também queria muito acreditar no que eu estava te falando.

Os Dragões Não Conhecem o Paraíso...

...o conto, não o livro!

***

Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia em mim. Para manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo:

- Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.

Não, isso também não é verdade.

(Caio Fernando Abreu)

'(2004-2008)' ou 'A volta dos que não foram'...

Um jogo.
Não um jogo qualquer: Brasil e Argentina.

Um mês.
Não um mês qualquer: Junho, mês da festa junina.

Um lugar.
Não um lugar qualquer: Belo Horizonte.

Duas vidas.
Não duas vidas quaisquer: um encontro, uma despedida, duas direções.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Déjà vu.

- Bem, não sou maluco pelo Romeu e pela Julieta. Quer dizer, gosto deles, mas... sei lá. Às vezes os dois conseguem ser meio irritantes. Quer dizer, tive muito mais pena quando mataram o tal de Mercúrio do que quando Romeu e Julieta morreram. O negócio é que nunca simpatizei muito com o Romeu, depois que aquele outro homem, o primo de Julieta - como é mesmo o nome dele? - apunhalou o Mercúrio.
- Tebaldo.
- Isso mesmo. Tebaldo - repeti. Eu sempre esqueço o nome desse cara. - Foi culpa do Romeu. Quer dizer, o tal do Mercúrio era de quem, eu mais gostava na peça. Não sei. Eles eram bons, todos aqueles Montecchios e Capuletos - principalmente a Julieta - mas o Mercúrio era... É difícil explicar. Ele era esperto e divertido e tudo. O negócio é que fico danado quando alguém morre - principalmente alguém esperto e divertido e tudo - e por culpa de outro sujeito, ainda por cima. Pelo menos, com o Romeu e a Julieta foi culpa deles mesmos.

(Holden Caulfield, em O Apanhador no Campo de Centeio)

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Sobre dizer, cabos e a magia da energia...

Às vezes não sei o que dizer. Sei apenas que algo deve ser dito e pronto. Nada além dessa necessidade tão premente que encobre um pântano qualquer. Na verdade, e sempre existem verdades presentes dentro de lugares como pântanos, eu queria algo capaz de explicar, ou quem sabe ao menos justificar de alguma forma mesmo que enganosa o motivo pelo qual os cabos de eletricidade que estavam presos a mim de repente se soltaram – embora esta mesma eletricidade ainda assim percorra cada parte dos meus mais simples impulsos. É difícil sempre apontar pontos de partida porque muitas vezes o que está no pântano quase nunca tem a ver como lodo, mas ao contrário disso, guarda um que de familiar. Tão familiar a ponto de querermos fazer com que isso nos passe despercebido. Mas uma hora o processo começa, assim mesmo, de maneira bem despretensiosa. A gente começar a drenar um pouco daquela lama e quando se dá conta percebe que nunca houve lama. Assim que eu me dei conta da eletricidade. Assim que eu senti os cabos. E foi exatamente dessa mesma forma, assim mesmo que eu senti o momento em que eles se soltaram de mim. Mas infelizmente não houve choque. E isso me intrigou: não houve nada como uma explosão ou faíscas. Uma dor indolor? Talvez. Se isso existir, pode ser que seja isso. Mas acho que não, a menos que a dor tenha me anestesiado, o que vive acontecendo por mais paradoxal que seja. De qualquer modo, ainda há energia circulando, como eu disse há pouco. E os fios ainda estão a meu alcance, embora hoje eu não tenha vontade de reconecta-los. Acho que já fizeram a sua parte. Porque quando se está preso a fios é sempre mais difícil de se locomover. E no fim das contas os fios são apenas uma maneira de se aprender a viver sem fios, a se preparar para o que vem depois, assim como aquelas rodinhas da bicicleta, ou as mãos dos nossos pais. Mesmo assim, viver sem fios, saber que se está apto a viver sem fios sempre nos deixa um pouco inseguros: será que agora é o momento certo de abdicar deles? É sempre a pergunta que vem à tona, porque nunca se sabe o que é certo, ou quando é o momento certo – e por isso a gente deixa passar a nossa frente os momentos certos. A gente percebe naquele instante de repente que a energia está além dos fios, que ela sempre esteve presente, e essa consciência por vezes nos deixa um pouco desconfortáveis. Enganados? Não, porque acostumar com a força da energia que nos envolve exige tempo e normalmente tendemos a querer queimar etapas. E quando queimamos etapas somos nós mesmos quem geralmente saímos queimados, por mais que demoremos a perceber isso. É difícil descrever isso tudo, assim como é difícil domar a energia, que começa na ilusão, cria a magia e termina na pele. Mas tem horas que dizer, mesmo que não se saiba o que dizer, ou que não se saiba onde isso tudo vai terminar, tem horas que dizer é tudo o que deve ser feito.

Quando?

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém
Pedro pedreiro fica assim pensando

Assim pensando o tempo passa e a gente vai ficando prá trás
Esperando, esperando, esperando, esperando o sol esperando o trem, esperando aumento desde o ano passado para o mês que vem

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém
Pedro pedreiro espera o carnaval

E a sorte grande do bilhete pela federal todo mês
Esperando, esperando, esperando, esperando o sol
Esperando o trem, esperando aumento para o mês que vem
Esperando a festa, esperando a sorte
E a mulher de Pedro está esperando um filho prá esperar também

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém

Pedro pedreiro tá esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro Norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo espere alguma coisa mais linda que o mundo
Maior do que o mar, mas prá que sonhar se dá o desespero de esperar demais
Pedro pedreiro quer voltar atrás, quer ser pedreiro pobre e nada mais, sem ficar
Esperando, esperando, esperando, esperando o sol
Esperando o trem, esperando aumento para o mês que vem
Esperando um filho prá esperar também
Esperando a festa, esperando a sorte, esperando a morte, esperando o Norte
Esperando o dia de esperar ninguém, esperando enfim, nada mais além
Que a esperança aflita, bendita, infinita do apito de um trem
Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando
Pedro pedreiro pedreiro esperando o trem
Que já vem...
Que já vem
Que já vem
Que já vem
Que já vem
Que já vem

(Pedro Pedreiro, Chico Buarque)

domingo, 15 de junho de 2008

Uma parábola insana.

Sempre o medo do limite me perseguiu. Encontrar o fim do mundo era ser dragado para o não-espaço. Não, não sou o homem medieval com aquele medo (hoje) ridículo dos monstros aquáticos. Longe disso, tenho dramas modernos, oras! Mas nos dramas modernos, talvez apenas os objetos de receio tenham mudado. Portanto, ao contrário do que até agora pouco eu pensava, talvez eu não seja assim tão diferente daquele homem medieval. Maldita arrogância dos modernos...

Eu ando. Sigo em frente. Às vezes corro, volto, penso, prossigo, respiro. E ando novamente. E chego sempre ao mesmo lugar. Foi assim que sempre aconteceu. Até que um dia, um dia diante dos meus olhos encontrei nada mais nada menos do que uma linha branca. Seria o fim da linha? O mistério se misturou ao medo. E o medo me despertou a curiosidade, como era de se esperar. Mas a minha curiosidade se revertia novamente em medo. Que belo ciclo! Afinal de contas, o que haveria do outro lado da linha? A verdade é que não parecia haver nada além de um árido deserto. Mas não, eu não me atreveria a atravessar aquela linha. Aprender a viver tem a ver com conhecer limites, não é mesmo? Ou os limites seriam apenas maneiras de nos privar do contato com aquilo que nos é mais íntimo? Não sei. Mas é melhor não pensar sobre isso.

De qualquer forma, toda vez que eu retornava para minha casa, aquela linha entrava em minha cabeça e começava a enrolar meus pensamentos. Uma linha tão extensa que parecia não separar absolutamente nada. Não havia nada para além. Poxa vida, não havia nada! É tão difícil se convencer disso? Eu olhava e não havia nada. É isso: não tem absolutamente nada ali, depois da linha! Para de pensar nisso! Vou ver televisão. E quando eu ligo a televisão, parece que tudo o que se apresenta aos meus olhos não passam de linhas. De diversas cores que se interceptam e se limitam. Linhas, linhas, linhas. O mundo não passava de linhas. E eu estava preso dentro de linhas. O que haveria para além daquela linha branca? Não acredito em monstros...

E toda vez que eu voltava até aquele local, chegava mais e mais perto da linha. E me deparava com a mesma paisagem árida, vazia. Eu me esforçava, mas não conseguia cruza-la: meus pés, no máximo, estacionavam sobre ela. Sobre a linha. Entre. Eu andava em cima da linha como quem se equilibrava sobre uma corda bamba e temia cair para o lado errado – mesmo que não soubesse qual era o lado errado, ou se de fato havia um lado errado. Mas ultrapassá-la, jamais. E quando eu estava completamente angustiado, voltava para a casa e me enrolava nas linhas do meu caminho.

Até que um dia - e sempre esse dia chega, porque se não chegasse não haveria porque se contar uma história, por mais que ela de fato sequer exista mesmo existindo -, bem, um dia aconteceu algo inacreditável: eu enxerguei uma menina do outro lado da linha. Beeeeeeeeeeem distante, mas que aos poucos, lentamente, parecia vir em minha direção. Fiquei parado, do lado de cá, apenas observando. E ela foi crescendo em meu campo de visão. Acho que não era uma miragem. As miragens são um tipo de recurso muito clichê. Mas em todo caso, eu não tinha certeza do que ela realmente era. Pelo corte de cabelo, parecia se tratar de uma menina. Além do mais, acho que miragens são algo estático, e ela, ainda que muito vagarosamente, se movimentava – ou talvez, aos meus olhos, se apresentava numa velocidade baixa, quanto na verdade, pela distância, estivesse vindo de maneira mais acelerada, o que de fato pouco importa. Ou não: porque quando se está esperando por um estalo a velocidade sempre importa.

A nitidez aumentava e eu realmente não estava ficando louco. Ok, talvez só um pouquinho, mas nada que fosse motivo para preocupação. Às vezes, apenas para tentar disfarçar minha ansiedade eu olhava para trás e enxergava as primeiras (ou as últimas, dependendo do referencial) construções da minha cidade. E assim me sentia seguro perto daquele abismo plano que se desenhava para além daquela linha.

Foi quando ela chegou. O encontro aconteceu: nossos olhares se estudavam calmamente. Havia certo estranhamento diferente de uma timidez. Pelo contrário: apesar do desconhecimento havia realmente algo entre a gente – afora a linha, obviamente – que fazia com que nos reconhecêssemos, que estivéssemos, dadas as devidas limitações, cada um também do outro lado da divisória. Nos olhos da menina, certa velhice, talvez algum tipo de desencantamento impronunciável, que eu não consegui deixar de reter em meus pensamentos. Eu, por minha vez, deixava escapar uma euforia que há muito de tão escondida, eu nem mais dava por existente. E meus olhos falavam. E os olhos dela respondiam. E por alguns instantes, estáticos, conversávamos em meio a um silêncio, trocando confidencias sobre nossos passados sem passado. Até que numa dessas palavras que não eram palavras, ela sorriu. Não um sorriso qualquer. Eu já disse que não era. Finalmente seus lábios sussurraram alguma coisa:

- Venha comigo.

Aquilo reverberou dentro de mim como um verdadeiro tiro, embora milagrosamente eu permanecesse imóvel. O que fazer? O que a linha significava? Era apenas uma linha, feita de medo, que não guardava distinção entre o aqui e ali? De que tipo de material era aquela linha intransponivelmente transponível? Afinal, do outro lado estava ela, uma velha desconhecida. Ao constatar minha indecisão, a menina simplesmente estendeu suas mãos. E a segurança do calor, da direção era justamente tudo o que eu precisava naquele momento. Acho que nem cheguei a completar a sinapse, foi como um ato-reflexo: peguei a mão dela com a fraqueza de quem há muito tem fome. Talvez mais do que fraqueza, uma verdadeira força. E assim que nossa carne se tocou ela me puxou para o outro lado. Num solavanco, apenas. Como era de se esperar, me assustei com o tranco e acabei soltando minha mão. Ainda de costas, dei um passo para trás, cuja distância era a mesma segundos antes avançada. Olhei para baixo e fiquei surpreso ao perceber que a linha que até então nos separava não existia mais. Não acreditei e olhei para trás: nada. Nenhum vestígio das construções. Apenas uma paisagem deserta, árida, vazia, assim como aquela que, estava a minha frente. Quando dei por mim e fui novamente tocar a mão daquela menina, descobri sem querer que tocava justamente a minha outra mão. Não havia mais nada além de mim naquela paisagem. Nada além de mim e de um caminho a se construir, repleto de apavorantes possibilidades incalculáveis. Nada além de mim, do caminho e da imagem daquela menina, que, não estando lá, ensinava a inventar a direção que por me ater unicamente à linha, tive medo de seguir.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Religando as Turbinas.

Deixa este lugar intocado
Já que aqui dentro já foi tudo revirado

Ao menos a poesia voltou
Só nasce nessa turbulência
Sem cor nem forma
E se ninguém vê é inexistente
Mas tem alguém que sente
Se ressente
E nem o som do violino aplaca
Antes, reacende
no fundo
essa dor que é sempre a mesma.

Não que estivesse morta
Apenas perdestes a visão
E agora, despido de tudo
Estas tristes notas resgatam

Não, não foi o violino.

Pensa que uns carinhos podem curar?
Permanece tudo lá
Somente turva a vista
É dinheiro, conforto?
Essa paz não existe
Se você já se acostumou a ver
Volta sempre,
E não se pode privrar do horror de sentir
Se você já se acostumou a ver.

Absorto,
Repete, repete
Repele
Aquilo. Você mesmo.
Inventa um sentido pra fugir de si.

E não, não adianta
Onde quer que vá carrega a si mesmo,
Esse fardo.
E é lá

O outro caminho é sempre o melhor.

(Incompleta, 'Ana Banana')

terça-feira, 10 de junho de 2008

(...)

O rapaz olha os próprios braços e diz: eu sou tão magro, vê? Quando abraço uma mina - ele fala assim mesmo, mina, e o homem pisca ligeiramente, discreto, para não sublinhar o abismo de quase vinte anos - fico olhando para os meus braços frágeis incapazes de abraçar com força uma mulher, e fico então imaginando músculos que não tenho, fico inventando forças, porque eu sou tão fraco, porque eu sou tão magro, porque eu sou tão novo. O rapaz olha em volta seco, nenhuma sombra de paixão em seu rosto muito branco, e diz ainda: eu quero me matar, eu não entendo estar vivo, eu não tenho pai, minha mãe me sacode todo dia e grita acorda, levanta, vadio, vai trabalhar. Eu quero ler poesia, eu nunca tive um amigo, eu nunca recebi uma carta. Fico caminhando à noite pelos bares, eu tenho medo de dormir, eu tenho medo de acordar, acabo jogando sinuca a madrugada toda e indo dormir quando o sol já está acordando e eu completamente bêbado. Eu nasci neste tempo em que tudo acabou, eu não tenho futuro, eu não acredito em nada - isso ele não diz, mas eu escuto, e o homem em frente dele também, e o bar inteiro também. Então o homem responde, com essa sabedoria meio composta que os homens de quase quarenta anos inevitavelmente conseguiram.

Ele, o homem, passa a palma da mão pelos cabelos ralos, como se acariciasse o tempo passado, e diz, o homem diz: não tenha medo, vai passar. Não tenha medo, menino. Você vai encontrar um jeito certo, embora não exista o jeito certo. Mas você vai encontrar o seu jeito, e é ele que importa. Se você souber segurar, pode até ser bonito. O homem tira a carteira do bolso, pede outra cerveja e um maço de cigarros novinhos, depois olha com olhos molhados para o rapaz e diz assim. Não, ele não diz nada. Ele olha com olhos molhados para o rapaz. Durante muito tempo, um homem de quase quarenta anos olha com olhos molhados para um rapaz de quase vinte anos, que ele nunca tinha visto antes, no meio de um bar no meio desta cidade que já não é mais a dele. Enquanto esse olhar acontece, e é demorado, o homem descobre o que eu também descubro, no mesmo momento.

Aquele rapaz de casaco preto, algumas espinhas, barba irregular e pele branca demais - este é o rapaz mais triste do mundo.

(...)

(O Rapaz Mais Triste do Mundo, Caio Fernando Abreu)

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Para Renata.

Uma miragem.

Em pouco tempo tudo estará fadado a acabar até a próxima vez que tudo estiver prestes a começar. O que fazer entre o fim e o começo? O que fazer durante o hiato que se coloca entre o começo e o fim? Toda espera acaba por se converter em um momento que simplesmente acaba, foge, escapa rumo a uma nova espera. Entre duas esperas um sonho. Entre duas esperas é quase o mesmo que nada. Mas o quase é exatamente a pedra que sustenta, o que faz a fagulha insistir. Não se trata de nada em absoluto, pelo menos para mim. O quase é o nada que é tudo, o momento em que o mistério se justifica de alguma maneira, mesmo que tão sutilmente a ponto de parecer imperceptível. Mas não é. Apalpar o momento exige sempre uma paciência milenar que eu não trago dentro de mim. Sequer sei medir o que é certo, o que é errado. É, apenas. Não. Não é. Mas poderia ser. Poderia ser se talvez eu conseguisse fatiar a espera em esperas menores, que por sua vez eu fatiaria em esperas menores ainda até um ponto em que tudo não passasse exatamente de um ponto. Um ponto em que tudo se congelaria e o tempo ficasse em suspenso. Tempo de bailar em pleno ar ao som de um pouco de vermelho. Enquanto isso, enquanto entre entres, me contento com o seu azul até o começo do meu fim.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Pensamentos esparsos.

Frio. Calor. Frio. Calor. Por que vocês nunca se resolvem? Tira o agasalho, põe o agasalho, tira, põe. Antes fosse só a sensação térmica do meu corpo, mas a mente também é assim. Esfria, esquenta, esfria, esquenta.

Idéias fervilhando. Preguiça. Tanta coisa por fazer que não consegue sair do limite em que o abstrato se torna concreto. Ensaio, enceno, piso no freio, paro. Começo, ando até um certo ponto, canso. Apenas rastros de alguma coisa.

De repente pego uma fotografia e fico olhando... O confronto machuca. O sorriso do canto da boca é o mesmo que aponta para o ódio. Sete letras que marcaram a ferro e fogo no meu pensamento volta e meia resolvem cutucar.

Mais um livro lido. Mais um livro da vida. Mais passagens fabulosas. Mais um pouco de tortura que as palavras fazem em mim. Engraçado saber que, de alguma maneira eu andei exatamente pelos mesmos caminhos que você, Maurício. Engraçado e desolador.

Finalmente! Quinze faixas. Uma hora, dezoito minutos e cinco segundos de viagem pelas profundezas pantanosas de mim mesmo em forma de música terminando exatamente onde as coisas começam: no caos. Do caos ao caos. Acho que é exatamente isso o se que pode chamar de amor.

Nem bem. Nem mal. A solução também não está entre os pólos. ‘Mornidão’ não resolve. Cada passo é apenas um passo. Assim como cada palavra é apenas uma palavra. Nada além disso.

Cala a boca, eu estou sonhando! Pode não ficar tão bonito em português, mas com certeza essa frase, no idioma original, vale uma camiseta. Sim: eu estou sonhando com lugares onde os amantes tem asas!

domingo, 1 de junho de 2008

Valeria uma camiseta...

Posso gritar sem ninguém ouvir
Me agitar sem ninguém me ver
Posso te olhar e apenas lhe dizer:
Hoje a minha cidade é só.
É só você.

(Chave Mestra, Banzé)