domingo, 31 de agosto de 2008

Um anjo mau?

É de imaginar bobagem
Quando a gente liga na televisão
Toda dor repousa na vontade
Todo amor encontra sempre a solidão

Todos os encontros todos os poemas
Manda me avisar

Todos os embates todos os dilemas
Manda me avisar
Manda me avisar eu sei
Todo ser humano
Pode ser um anjo

(Téo e a Gaivota, Marcelo Camelo)

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Sobre como dizer do que não se diz...

Suas palavras não correspondem às suas ações. Isso mesmo: ‘as suas palavras não correspondem as suas ações’. Sim, isso também soa TO-TAL-MEN-TE incoerente a mim. Você fala uma coisa e simplesmente teima em fazer outra. Quanta teimosia a sua! Não me entenda mal, eu sei que em outros tempos, em outras pessoas... Sabe, eu durante esse tempo eu vi essa história se repetindo again and again and again... Assim mesmo indefinidamente, com o cor de rosa se transformando em negro da noite para o dia como num passe de mágica. Eu de fato não queria acreditar no que meus sentidos testemunhavam... Por favor, se ponha no meu lugar! É tão difícil lidar com isso, com aquela sensação do ‘já-sei-como-esta-história-termina’, do ‘de-onde-foi-que-eu-já-ouvi-isso-antes?’ – pergunta totalmente dissimulada essa em questão, porque eu poderia dizer o personagem, o lugar e a hora exata em que tudo foi dito, ou pelo menos fingido. Você não é ingênua, sabe do que eu falo. Perfeitamente bem, bem que se diga. Aí vem você, e eu volto à sinuca ‘as suas palavras não correspondem às suas ações’... Você faz idéia do quanto isso martela a minha mente? Porque martela. Porque me deixa sem chão, sem ar. Você fala e eu vejo com esses olhinhos que ‘Deus’ me deu, e eu ouço com meus ouvidinhos e constato: mas não é nada disso! Nada, nadinha, nadica de nada. Talvez um grito resolva: NADA. É TUDO. Aí que está. Não, eu não conheço esse filme, e embora você se pareça com tantas outras pessoas, com tantos outros tempos, no fundo o que me deixa PERPLEXO, é que você realmente não se parece com ninguém. Lembra aquele lance do parâmetro? Eu até poderia dizer que tenho alguns parâmetros. Só que eles são tão frouxos... Não se adequam às suas transgressões. Quando eu acreditava que sabia com quem eu estava lidando, pouco depois eu descobria que não fazia a mínima idéia. E quando eu descobria que não fazia idéia alguma eu finalmente encontrava as pecinhas do quebra cabeça. Aí vem você, isso mesmo, e muda o sentido das equações, mostra um sentido oculto sem se ocultar. Porque sim, a melhor maneira de cair em descrédito é falando a verdade. No seu caso, talvez o mais apropriado seja dizer ‘fazendo’ a verdade, afinal, as suas palavras não batem lá muito bem com... Só que isso não quer dizer que não exista, que não sinta, que não haja, que não seja verdadeiro, sincero, carinhoso, enfim: é que você diz por outros meios. E depois me pergunta, em tom de desespero: onde foi que eu errei? Oras, se é a melhor maneira de não ser levado a sério, então digamos a verdade: N-A-D-A. Tava tão na cara que você não quis acreditar, confessa... Pois acredite, porque eu não consigo deixar de acreditar em mais nada que você me diz. Aprendi com você, viva! Viva a subversão! E olha que meu passado teria todos os motivos do mundo para me fazer temer, tremer, para dizer que eu estou errado e me bater, mas basta um, apenas um para bater e fazer desmoronar assim, de uma só vez, todo o meu passado: o meu presente. É isso aí, my baby... É isso aí... Maldade, maldade como apenas a senhorita sabe fazer... Não se faça de desentendida e nem me entenda errado dessa vez... Oras, você sabe que eu amo o mal.

sábado, 23 de agosto de 2008

O fundo do poço sem fundo.

Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê.

(Nos Poços, Caio Fernando Abreu)

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

A Culpa é de Quem?

Quero me encontrar, mas não sei onde estou
Vem comigo procurar algum lugar mais calmo
Longe dessa confusão e dessa gente que não se respeita
Tenho quase certeza que eu não sou daqui

Acho que gosto de São Paulo
Gosto de São João
Gosto de São Francisco e São Sebastião
E eu gosto de meninos e meninas

Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre
Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente
Estou cansado de bater e ninguém abrir
Você me deixou sentindo tanto frio
Não sei mais o que dizer

Te fiz comida, velei teu sono
Fui teu amigo, te levei comigo
E me diz: pra mim o que é que ficou?

Me deixa ver como viver é bom
Não é a vida como está, e sim as coisas como são
Você não quis tentar me ajudar
Então, a culpa é de quem? A culpa é de quem?

Eu canto em português errado
Acho que o imperfeito não participa do passado
Troco as pessoas
Troco os pronomes

Preciso de oxigênio, preciso ter amigos
Preciso ter dinheiro, preciso de carinho
Acho que te amava, agora acho que te odeio
São tudo pequenas coisas e tudo deve passar

Acho que gosto de São Paulo
E gosto de São João
Gosto de São Francisco e São Sebastião
E eu gosto de meninos e meninas

(Meninos e Meninas, Legião Urbana)

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Oh coisas...

O que eu espero de você? Simples: seja você mesma. É isso. Faça o que fizer, fale o que falar, aja como agir não importa: simplesmente ponha o quanto és no mínimo que fazes. Acabei de inventar isso! Parece poético, não é mesmo? Ui. Salve o Ricardo Reis e suas odes. Nem sou tão fã dele, mas esse poeminha é matador. Porque o fato é que quando se gosta, se gosta até do que não se gosta. E depois de tanto gosta pra lá, gosta pra cá, eu vou usar um para dizer que eu gosto de você! E mais do que isso, que esse gostar foi conquistado e calcado na identificação com o que eu espero e desejo encontrar na postura de uma pessoa. Mais alguns ‘gostos’: gosto do jeito que você escreve, da maneira como fala, do jeito que ri, que dá cortada, que provoca, que brinca, que canta, que manda e-mail achando que foi mal interpretada mesmo quando não foi, da forma como você deixa transparecer a insegurança que você diz que não deixa transparecer quase nunca; gosto do seu jeito, do seu rosto, do seu corpo, do seu cabelo, das suas manias malucas – ok, você é louca e disso também eu gosto e bastante – como cortar seu prórpio cabelo quando você está impaciente; gosto da maneira como você se mostra sem medo, do espírito criança inconformada rebelde que te habita, de quando chora, de quando se recolhe e volta logo em seguida e me fala sobre todos os motivos da sua fuga; gosto de como você canta - mesmo não gostando muito de vocais femininos -, da sua voz rouca ou normal, dos seus acessos de raiva quando eu tento aprontar alguma para cima de você, da sua história maluca de vida e dos riscos que você insiste em correr por não deixar de acreditar mesmo quando tudo parece que vai dar errado de novo - e em um momento sempre dá, até mesmo por dar certo demais; gosto da sua força fraca, da sua fraqueza forte, de você gostar do seu guru e para cada linha citar sempre uma frase precisa e dilacerante dele, dos bilhetinhos no celular que volta e meia aparecem por aqui, do seu mundo desabando e você carente, e gosto ainda mais dos momentos que de repente você, como num estalo, vislumbra um pedaço do eterno, do infinito, e alcança uma paz interior maluca – que só pode ser resultado desse seu sincretismo religioso com deus jungiano, visão religiosa que eu não apenas gosto como adoro e assino embaixo; gosto da sua consciência e da sua inconseqüência, dos seus passos em falso que se mostram totalmente concretos e coerentes e ao qual damos o nome pequeno e singelo de coragem, de quando você quer me deixar tímido – e por muitas vezes atinge seu objetivo com sucesso -, da sua raiva que você disse que não existia e que se aflora aos poucos; gosto de quando você fala que não gosta de aceitar nada de ninguém quando na verdade você gosta desde que isso seja verdadeiro, desde que haja uma simbologia que revista o objeto concreto; gosto da sua coerência e da sua incoerência, da sua honestidade, do seu caráter, da sua profissão e da forma como você conduz a sua vida; em suma, fazendo um plágio de uma frase que uma amiga do meu amigo fez para ele, ‘eu gosto do gostinho gostoso de gostar de você’, sacou? Não tem como listar tudo, entende? Listar é restringir e restringir é limitar o que é maior, o que às vezes é simplesmente inexplicável. Até porque se eu conseguisse me lembrar de tudo que me faz gostar de você eu nunca iria ter mais tempo para te mandar um e-mail ou para começar a escrever uma monografia: iria ficar listando o resto da minha vida. E eu não falo isso apenas e tão somente por falar, mas porque falar é o único meio que eu tenho disponível naquele velho e batido esquema ‘ou isso ou nada, baby’. Na verdade o explicar o gostar é inútil, eu sei menina louca, porque o Drummond disse ‘eu te amo porque te amo’ (ooooops! alguém falou em amor? Ui), simples assim, sem motivo e ao mesmo tempo por todos os motivos do mundo, mas isso é culpa – e sempre temos que eleger os culpados, oras – dessa minha mania de querer entender e explicar tudo ao meu redor e o que se passar dentro de mim. Aí eu vou rodeando, rodeando, tateando, falando como quem não quer nada, como quem aparentemente – e apenas aparentemente – não tem essa bombinha já quase estirada, praticamente parada mas insistente no lado esquerdo do peito, sim falando através de metáforas, indícios, lacunas, não ditos e toda essa porcariada de subterfúgios que a gente pega emprestado desse labirinto cabuloso chamado linguagem que só serve para ligar nada a lugar algum, mentir, dissimular, enganar – ou seja essa terra de ninguém que é ao mesmo tempo de todo mundo - para usar e ficar em cima do muro pelo simples motivo que é muito difícil dizer o que nem se sabe muito bem o que é, mas que é alguma coisa e alguma coisa que cresce mais e mais e mais e mais até explodir por dentro. Que coisa doida é essa de se sentir mal, de ficar preocupado quando as palavrinhas daí chegam cá e parece que as coisas não estão indo lá tão bem como deveriam ou mereciam... Coisa doida essa coisa indizível. Tão doida como essa coisa de sentir saudade do que nem sequer se viveu, do que nem sequer se sentiu, do que não se viu com os próprios olhos para finalmente acreditar, ‘oh é real’, não é uma farsa da minha cabeça, meu deus – que eu nem acredito... Coisa, coisa, coisa... Oh, coisas...

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Um deserto de almas.

Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra — talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou.

(...)

Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las.

(...)

De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido.

(...)

Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.

(Aqueles Dois, Caio Fernando Abreu)

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Pegadinha.

Pregos na parede. Retratos dos desencontros - sem final: uma camada fresca de tinta em meu desmoronar. Vejo nas molduras formas em que não me encaixo, desigual. Pensei em me esconder no conforto e falei sem te falar as palavras que você já sabia. A ‘esperança-planária’ zomba dos meus encantos sem se preocupar com o caos ou o chão. Prega peças porque ela sabe que o morrer é entrar em outro poço, encontrar alguma fé vã. E as esperas se encontram sem espera, em perguntas sem resposta. O fim é o começo de...

Porque eu vim pra te buscar...

Eu quero te encontrar porque aqui é o meu lugar e eu já cansei de me explicar.

A última fala.

Para resumir o rumo dessa conversa não é fácil estar em um relacionamento e especialmente conhecer a outra pessoa verdadeiramente, aceitando seu passado e seus defeitos. Jack me confessou seu medo de ser rejeitado se eu o conhecesse de verdade, se ele se mostrasse totalmente para mim. Jack percebeu que depois de dois anos ele não me conhecia e nem eu a ele. E para nos amarmos verdadeiramente precisávamos saber toda a verdade sobre nós mesmo quando não for fácil aceita-la. Então eu lhe disse toda a verdade, que eu nunca o havia enganado e que eu tinha visto Mathieu naquela tarde. Não ficou bravo comigo porque, é claro, não aconteceu nada. Confessei a Jack o quanto era difícil para mim decidir ficar com uma pessoa só para sempre. A idéia de ficar com ele por toda a vida, de ter que me esforçar pra fazer tudo dar certo, de não sair correndo quando surgir um problema era muito difícil para mim. Disse-lhe que não poderia ficar com um só homem por toda a vida. Era mentira, mas eu disse assim mesmo. Ele me perguntou se eu pensava como um esquilo colecionando homens como eles colhem nozes e descartá-los a cada inverno. Eu achei aquilo engraçado. Então ele disse algo que me magoou. Seu tom mudou drasticamente e eu não entendi bem o que ele estava dizendo. Acho que ele quis dizer que não me amava mais e queria terminar tudo. Sempre me fascina como as pessoas passam do amor incondicional pro nada. Nada... Doeu muito... Quando percebo que alguém vai me deixar tenho um impulso de terminar tudo primeiro antes que eu tenha que ouvir tudo. Aí está ele: um a mais... Um a menos... Outra história de amor desperdiçada... Eu realmente gostei dessa história. Quando achei que tudo já havia acabado e que eu nunca o veria desse jeito novamente, sim, esbarraria nele com sua nova namorada e eu com meu namorado novo como se nunca tivéssemos ficado juntos, pensando um no outro cada vez menos até esquecermos completamente – ou quase. É sempre igual pra mim: terminar e eu me acabar, beber e sair por aí; conhecer um cara aqui e outro ali; transar para esquecer o único... Alguns meses de vazio completo... E procurar novamente um verdadeiro amor, procurar desesperadamente em todo o lugar e depois de dois anos de solidão encontrar um novo amor e jurar que esse é o certo até que esse amor novo se acabe também...

Há um momento na vida em que você não se recupera mais de uma separação. Mesmo se essa pessoa te aborrecer 60% do tempo ainda assim você não consegue viver sem ele. E mesmo se ele te acordar todos os dias espirrando no seu rosto você amará esses espirros mais do que os beijos de qualquer outro.

(Marion em 2 Dias em Paris)

sábado, 16 de agosto de 2008

Espólio.

Só pelo som
Eu notei que o tombo foi bem feio
E o sangue escorreu pelas mãos dos curiosos
Eu incluso
É o meu dom procurar corpos no asfalto
Pra me sentir
Um corpo com sorte por continuar vivo
E eu rogo aos céus pra me permitir
Morrer sem ter que sofrer!
Um infarto me cai bem

Mas eu só como o que é bom e saudável
É irritante que este coração bom bata sem parar
Como uma máquina
Sem pilha e sem combustível
Sem bateria
Ignorando intenções
O que faz com que ele bata?
Deve ser graça
Deve ser deus ou
Não deve ser nada

Só sei que enquanto estou vivo
É melhor te ver caindo
Pra que eu sinta orgulho em estar em pé
E meu corpo seja o meu troféu
Eu vou estar bem

Todos estão tão vivos
Andando sob um céu em chamas
Todos que brilham em volta de quem se ama
Como se a vida fosse uma façanha
E a morte transformasse tudo em problema
Eu vou continuar, vou continuar
Como se a vida fosse uma vergonha
E a morte respondesse tudo na esperança de continuar
Continuar

(Na Torcida Pra Morrer de Infarto, Violins)

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Mais um fio desencapado.

Por que me escolheu? Talvez porque no início pensasse que eu encontraria as respostas, e ele então saberia?
você vai achar, Hillé, seja o que for que você procura.
como é que você sabe?
porque nada nem ninguém agüenta ser assim perseguido
o que é Derrelição, Ehud?
vem, vamos procurar juntos, Derrelição Derrelição, está aqui: do latim derelictione, Abandono, é isso, Desamparo, Abandono. Por quê?
porque li essa palavra e fiquei triste
triste? Mesmo não sabendo o que queria dizer?
DERRELIÇÃO. não, não parece triste, talvez porque as duas primeiras sílabas lembram derrota, e lição é sempre muito chato. não, não é triste, é até bonita. Desamparo, Abandono, assim que nos deixaste. Porco-Menino, menino-porco, tu alhures algures acolá lá longe no alto aliors, no fundo cavucando, inventando sofisticando maquinarias de carne, gozando o teu lazer: que o homem tenha um cérebro sim, mas que nunca alcance, que sinta amor sim mas que nunca fique pleno, que intua sim meu existir mas que jamais conheça a raiz do meu mais ínfimo gesto, que sinta paroxismo de ódio e de pavor a tal ponto que se consuma e assim me liberte, que aos poucos deseje nunca mais procriar e coma o cu do outro, que rasteje faminto de todos os sentidos, que apodreça, homem, que apodreças, e decomposto, corpo vivo de vermes, depois urna de cinza, que os teus pares te esqueçam, que eu mesma me esqueça e focinhe a eternidade à procura de uma melhor idéia, de uma nova desengonçada geometria, mais êxtase para a minha plenitude de matéria, licores e ostras
vem depressa, Hillé, olha um bichinho tão delicado engolindo o outro
tira, Ehud, não deixa, pára pára
não grita, imagine, quem sou eu para decidir da vida e da fome de um outro


(A Obscena Senhora D, Hilda Hilst)

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Quem sou eu?

Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa, mas quando chegar a Sintra terei pena de não ter ficado em Lisboa. Não, não foi ele quem disse isso, muito embora isso diga bastante sobre ele. Feito de prosa, almejaria ter a magia da poesia, do muito com pouco. No entanto, cisca para lá, cisca para cá, rodeia, pensa, fala: não tira os pés do chão – por mais que eles flutuem. Em meio a toda essa fumaça, o resultado invariavelmente é o mesmo pouco com muito. Como a linguagem diz apenas de símbolos que se referem a outros símbolos e não chegam a lugar algum, a nenhum ponto cego, por meio deste labirinto, para tentar se entender ele acaba se desentendendo, refugiando-se em paradoxos: gosta do que não gosta, não gosta do que gosta. Um ser que está encurralado. Sintra ou Lisboa? Os dois. Nenhum dos dois. O abismo entre. A pressa. Tudo, nada e o intervalo que os separa - ao mesmo tempo.

Um fio desencapado.

deverias ter casado com outro
por quê?
esses doutos, falantes, esses da filosofia, ai, devemos nos amar, Hillé, para sempre, eu te dizia: tu tens vinte agora, eu vinte e cinco, pensa tudo isso não vai voltar, não terás mais vinte nem eu vinte e cinco, teremos cinqüenta cinqüenta e cinco, e vais ficar triste de teres perdido o tempo com perguntas, pensa como serás aos sessenta. eu estarei morto.
causa mortis? acúmulo de perguntas de sua mulher Hillé.

(A Obscena Senhora D, Hilda Hilst)

domingo, 10 de agosto de 2008

No telefone.

- (...) amor à vista, sofrimento a prazo.

Cabra-cega com fantasmas.

Fico até tarde na varanda: o ar está pesado e morno, a maresia tem cheiro mais intenso. Bernardo saiu para a rua mas logo voltará. Penso em ir ao hospital ver Zico amanhã. Solidária. Mas não quero me envolver com mais ninguém, não vou agüentar, não devia ter deixado que Nazaré ficasse com ele por aqui, não havia mais espaço nenhum no meu coração, nem para a menor simpatia. Talvez assim Tia Beata beijasse só de longe, abraçasse com os cotovelos em defesa, fosse ranzinza e chata. Não queria mais se envolver, depois do marido que não conseguia fazer amor, três meses de tormento e depois o tiro, a tampa da cabeça pulando fora, sangue demais, amargura demais, a virgindade total foi como um casulo. Um sótão.

Ela só se envolvera mais uma vez, com Bila, mas esta não podia retribuir, e assim era mais confortável.


(As Parceiras, Lya Luft)

Trilha Sonora.

Contornando um outono em preto e branco
Outro engano ou eu não sei o que fiz de mim?
Dorme tarde, teme o sonho
Me enfeitiça e depois some
E eu não sei o que quis de mim

Eu estive tão doente nesses últimos 23 carnavais

Num sexo triste, eu visto a roupa
Ou quer que eu grite com a voz rouca:
Me abandone mas fale bem de mim.

Eu estive tão doente nesses últimos 23 carnavais
E eu não quero mais..
Eu não quero mais...
Retirem-me desse quarto
Coloquem-me na ambulância
E levem-me até a festa.

Envelheci esperando alguém fazer algo por mim...
Envelheci esperando alguém fazer algo por mim...

(23 Carnavais, Violins)

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Conflito.

Por um lado, a vida precisa necessariamente de uma forma para se manifestar. Por outro, a forma delimita, enclausura, aprisiona, congela a ação da vida.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Um acontecimento.

Não parecia se tratar da mesma pessoa, embora certamente fosse... Sei que não mudou um pingo durante todo esse tempo. Mesmo assim...

Lembro bem daquele dia perto da fonte, em que ela se aproximava e ele, por sua vez, se afastava. Para cada passo dela, um dele, no sentido oposto. E se disse que lembro com perfeição daquele dia, como de tantos outros grandes dias com tantos outros pequenos detalhes, jamais poderia deixar de frisar o medo dele em cair dentro da fonte. Não que fosse medo de cair dentro da fonte até porque não havia em toda sua extensão uma gota d’água que fosse. O problema, portanto, era o perigo de se afogar. Em sua expressão, de forma propositalmente velada, havia certa aflição, pois nem se conheciam e, de repente, ela começava a invadir o que ele tinha de mais seu: ele mesmo. Tentou resistir o quanto pôde. Certa vez, inclusive, foi repreendido por ela. ‘Não precisa fugir de mim’. Não se tratava exatamente uma fuga, mas não adiantaria explicar a ela. Era tanto mais delicado do que fugir e, para dizer a verdade, naquele exato instante ele mesmo sequer saberia descrever do que se tratava.

Um dia aconteceu.

Hoje não havia mais fonte nem havia mais ela. Ele estava sentado em um banco de concreto, pensando, angustiado. Finalmente tinha compreendido o que um dia aconteceu – e todo acontecimento só se torna um a posteriori, quando se tem consciência dele e lhe imputa algum tipo de valor. A fonte foi apenas o começo. O acontecimento, na verdade, não era uma fotografia, estática, mas várias que, estáticas, em série, formaram-lhe um atordoante filme. Constatou que havia perdido a si mesmo. Sim, havia. Já não tinha nem mais o que poderia chamar de seu. Era disso que se tratava aquela ‘fuga mais que uma fuga’ que ela havia lhe falado. Sim, era de afogamento, de quebrar aquele ponto de segurança que tornava o viver suportável, por mais que ele jamais acreditasse ser aquilo o que sentia algo suportável. Um passo em falso. Como ele poderia prever as conseqüências? Já não era mais um, apenas meio. Um meio, sentado. Foi o que ele sentiu de uma forma tão intensa como jamais sentira até então. Qualquer coisa como uma vontade enorme de chamar quem quer que fosse, contanto que fosse alguém. Quando ela – que não era ela – simplesmente surgiu. Não apenas surgiu como reconheceu. Foi o suficiente para que de uma vez só aquele mesmo rapaz se levantasse imediatamente, sem respirar, e a abraçasse de tal maneira, com tamanha força, como se aquele gesto fosse o único capaz de lhe restituir a totalidade que lhe fora roubada.

Não parecia se tratar da mesma pessoa e, no entanto, por um curtíssimo intervalo novamente o fora.

Um golpe de sorte.

Pode ser um tiro certo, ou um caminhão na contramão
Um tropeçar displicente sem corrimão
Um vírus grave ou uma simples falta de atenção

Os meus parabéns por mais um ano bem
É como você se sente
Eu me sinto como um velho virgem
Conhecendo o sexo
É uma sensação de estar na chuva com braços abertos
Em que tudo é muito tempo
Tudo é muito tempo...

É o que você come que te entope o coração
É o avião caindo, entre as arvores num dia de tempo bom
É o câncer que te rompe e te consome o pulmão

Os meus parabéns por mais um ano bem
É como você se sente
Eu me sinto como um velho virgem
Conhecendo o sexo
É uma sensação de estar na chuva com braços abertos
Em que tudo é muito tempo
Tudo é muito tempo...

É um golpe de sorte, você não estar há sete palmos
Pois meus parabéns, por você ainda estar tão lúcido e calmo

(A Festa, Violins)