segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Um acontecimento.

Não parecia se tratar da mesma pessoa, embora certamente fosse... Sei que não mudou um pingo durante todo esse tempo. Mesmo assim...

Lembro bem daquele dia perto da fonte, em que ela se aproximava e ele, por sua vez, se afastava. Para cada passo dela, um dele, no sentido oposto. E se disse que lembro com perfeição daquele dia, como de tantos outros grandes dias com tantos outros pequenos detalhes, jamais poderia deixar de frisar o medo dele em cair dentro da fonte. Não que fosse medo de cair dentro da fonte até porque não havia em toda sua extensão uma gota d’água que fosse. O problema, portanto, era o perigo de se afogar. Em sua expressão, de forma propositalmente velada, havia certa aflição, pois nem se conheciam e, de repente, ela começava a invadir o que ele tinha de mais seu: ele mesmo. Tentou resistir o quanto pôde. Certa vez, inclusive, foi repreendido por ela. ‘Não precisa fugir de mim’. Não se tratava exatamente uma fuga, mas não adiantaria explicar a ela. Era tanto mais delicado do que fugir e, para dizer a verdade, naquele exato instante ele mesmo sequer saberia descrever do que se tratava.

Um dia aconteceu.

Hoje não havia mais fonte nem havia mais ela. Ele estava sentado em um banco de concreto, pensando, angustiado. Finalmente tinha compreendido o que um dia aconteceu – e todo acontecimento só se torna um a posteriori, quando se tem consciência dele e lhe imputa algum tipo de valor. A fonte foi apenas o começo. O acontecimento, na verdade, não era uma fotografia, estática, mas várias que, estáticas, em série, formaram-lhe um atordoante filme. Constatou que havia perdido a si mesmo. Sim, havia. Já não tinha nem mais o que poderia chamar de seu. Era disso que se tratava aquela ‘fuga mais que uma fuga’ que ela havia lhe falado. Sim, era de afogamento, de quebrar aquele ponto de segurança que tornava o viver suportável, por mais que ele jamais acreditasse ser aquilo o que sentia algo suportável. Um passo em falso. Como ele poderia prever as conseqüências? Já não era mais um, apenas meio. Um meio, sentado. Foi o que ele sentiu de uma forma tão intensa como jamais sentira até então. Qualquer coisa como uma vontade enorme de chamar quem quer que fosse, contanto que fosse alguém. Quando ela – que não era ela – simplesmente surgiu. Não apenas surgiu como reconheceu. Foi o suficiente para que de uma vez só aquele mesmo rapaz se levantasse imediatamente, sem respirar, e a abraçasse de tal maneira, com tamanha força, como se aquele gesto fosse o único capaz de lhe restituir a totalidade que lhe fora roubada.

Não parecia se tratar da mesma pessoa e, no entanto, por um curtíssimo intervalo novamente o fora.

2 comentários:

Anônimo disse...

gosto muito do jeito que tu escreve! prefiro comentar por outros meios do que por aqui, porque gosto de ir te perguntando algumas coisas.
e ah, estou com saudades de conversar contigo!
beijo (:

Anônimo disse...

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um texto antigão
(e acho que não
é preciso colocar na
legenda, à moda dos
portugueses:
'isso é uma ironia, oh pá...'.

para fazer eco
a UMA palavra
de um dos 'textos de uma trama bacana' que me ficou na cabeça
(no corpo?)

para alguém que poderia
ter sido chamado Guilherme,
Jacinto ou Tomaz ou outra coisa qq
(mas também não atenderia a ninguém)

para dizer talvez
que tesão/emoção/e ciúme
podem rimar bem
mas depois dos gestos
(às vezes se controla, outras não)
fica bem difícil saber
o que é morte
e o que foi vida.

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não quero te
apontar o dedo,
ninguém pode
ensinar nada a
ninguém e por aí vai...
Tb sei q vejo muito mais
a mim mesma do q qq outra
coisa, mas tento perceber
o que está fora, tento muito,
tento quase o tempo todo. Talvez sempre de forma equivocada,
vai saber.
Passo o texto
pq parece algo que
podia apontar tb
prah mim etc etc e tal.

gosto de ti.
bjs


Ele acordou no meio da noite e constatou, surpreso, que tinha tido sonhos eróticos. Só se lembrava com precisão do último deles: uma mulher gigante nadava nua numa piscina, era pelo menos cinco vezes maior do que ele e tinha a barriga coberta por grossos pêlos que iam das coxas ao umbigo. Olhava-a da borda da piscina e sentia-se muito excitado.
Como pode ficar excitado com o estômago doendo e com o corpo enfraquecido? Como podia ficar excitado ao olhar uma mulher que, se estivesse acordado, só lhe inspiraria repulsa?
Disse a si mesmo: existem duas rodas dentadas que giram em sentido inverso no mecanismo de relojoaria do cérebro. Numa estão as visões, na outra as reações do corpo. O dente sobre o qual está gravada a visão de uma mulher nua encaixa no dente oposto, sobre o qual está inscrito o imperativo da ereção. Quando a engrenagem se altera, por qualquer motivo, e o dente correspondente à excitação entre em contato com o dente sobre o qual está desenhada a imagem de uma andorinha em pleno vôo, nosso sexo se endurece à vista da andorinha.
Aliás, ele lera um estudo no qual um de seus colegas, especialista em sono, afirmava que um homem que sonha está sempre em ereção, seja qual for o sonho que tenha. A associação da ereção com uma mulher nua não era, portanto, mais do que um regulagem escolhida pelo Criador entre mil outras regulagens possíveis para ajustar o mecanismo de relojoaria na cabeça do homem.
O que existe de comum entre tudo isso e o amor? Nada. Basta que uma roda da engrenagem desvie uma fração de milímetro na cabeça de Tomas para que ele fique excitado só de ver uma andorinha, o que não muda em nada o seu amor por Tereza.
Se a excitação é um mecanismo que depende de uma capricho de nosso Criador, o amor, ao contrário, é aquilo que só pertence a nós, e pelo qual escapamos do Criador. O amor é nossa liberdade. O amor está para além da necessidade, para além do "es muss sein!" ["tem de ser!"].
Mas nem isso é a verdade inteira. Mesmo que o amor seja algo diferente do mecanismo de relojoaria da sexualidade imaginado pelo Criador para seu divertimento, ele é, ainda assim, ligado a esse mecanismo como uma doce mulher nua se balançando no pêndulo de um enorme relógio.
Tomas diz a si mesmo: associar o amor à sexualidade é uma das idéias mais bizarras do Criador.
Pensou ainda: a única maneira de salvar o amor da tolice da sexualidade seria acertar o relógio de maneira diferente em nossa cabeça, para que pudéssemos ficar excitados com a visão de uma andorinha.
Embalou-se com este doce pensamento. À beira do sono, no espaço encantado das visões confusas, de repente teve certeza de que acabara de achar a solução para todos os enigmas, a chave do mistério, uma nova utopia, o Paraíso: um mundo em que se tem uma ereção diante de uma andorinha, e em que podia amar Tereza sem ser importunado pela tolice agressiva da sexualidade.
Voltou a adormecer.