sábado, 28 de abril de 2012

Sahara, 1987. (4)

Cheguei a casa e fui procurar as tuas fotografias, as fotografias da nossa viagem. Guardei-as dentro de um envelope grande no qual escrevi "Sahara, 1987" e meti-as dentro de uma gaveta, num armário. Desde então, mudei algumas vezes de casa, mudei até de vida outras vezes, e as fotografias continuaram sempre dentro desse envelope, na gaveta, no mesmo armário. Vinte anos. Só ontem é que voltei a vê-las. Só ontem é que percebi que tinhas morrido.

(No Teu Deserto, Miguel Sousa Tavares)

Sahara, 1987. (3)

A razão principal é que já não há muita gente que tenha tempo a perder com o deserto. Não sabem para que serve e, quando me perguntam o que há lá e eu respondo "nada", eles riscam mentalmente essa viagem de seus projectos. Viajam antes em massa para onde toda a gente vai e todos se encontram. As coisas mudaram muito, Cláudia! Todos têm teorro do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se de telefonemas, mensagens escritas, mails e contactos no Facebook e nas redes sociais na Net, onde se oferecem como amigos a quem nunca viram na vida. Em vez do silêncio, falam sem cessar; em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo. em vez de se descobrirem, expõem-se logo por inteiro: fotografias deles e dos filhos, das férias na neve e das festas de amigos em casa, a biografia das suas vidas, com amores antigos e actuais. E todos são bonitos, jovens, divertidos, "leves", disponíveis, sensíveis e interessantes; E por isso é que vivem esta estranha vida: porque, muito embora julguem poderem ter o mundo aos pés, não aguentam nem um dia de solidão. Eis porque já não há ninguém para atravessar o deserto. Ninguém capaz de enfrentar toda aquela solidão.

(No Teu Deserto, Miguel Sousa Tavares)

Sahara, 1987. (2)

- Em que pensas?
- Estava a pensar que há viagens sem regresso. E que nunca mais vou voltar desta viagem. Nunca mais vou regressar do deserto.

(No Teu Deserto, Miguel Sousa Tavares)

Sahara, 1987.

Foste embora, foram-se embora as outras visitas desse dia, uma enfermeira veio dar-me um remédio e mudar o frasco de soro, e eu fiquei sozinha, a pensar em ti e na tua visita. Através da janela do quarto, percebi que a tarde estava a acaar e que as luzes da cidade se iam acendento. Lá de fora vinha o ruído do trânsito ao fim do dia, um ruído de gente e automóveis apressados, gente que queria voltar para casa, onde estavam os que amavam ou os que se tinham habituado a amar, sem fazer demasiadas perguntas nem exigir nada mais do que esse amor tranquilo de todos os dias. É verdade que nunca quis ou nunca vivi para querer isso para mim. Queria mais, vê tu! Queria viver no limite todos os dias, queria que as coisas estivessem sempre a correr. Conhecer novaspessoas todo o tempo, sair, ir a discotecas, divertir-me todos os dias, sentir que podia seduzir todos a minha volta e brincar com isso. Mas agora, agora que a noite chegou e que fiquei sozinha, agora que sei que também tu voltaste para uma casa onde tens alguém à tua espera, alguém que te ama, alguém que de dá paz, também a mim, de repente, me apetecia poder ir para casa e ter à minha espera alguém que me amasse. Não, não estou a dizer que queria que fosses tu. Não estou a dizer isso, estou a falar de alguém. Alguém sem nome.

Eu sei que algures, mais adiante na minha vida, hei-de encontrar quem esteja em casa à minha espera quando eu chegar. im, eu sei, está escrito, é sempre assim. Mas era agora que eu queria não sentir este vazio, não te sentir tão distante, tão longe do deserto. Queria só dar um sentido à nossa viagem. Já sei, já sei que nada dura para sempre - só as montanhas e os, os rios meu sábio. Mas o que fomos nós um para o outro: apenas companheiros ocasionais de viagem? Com o tempo contado, com tudo previamente estabelecido e com prazo de validade previsto à partida? Foi só isso, diz-me, foi só isso o nosso encontro? Não ficou mais nada lá atrás, não deixamos nada de nós os dois no deserto que atravessamos?

(No Teu Deserto, Miguel Sousa Tavares)

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Em extinção. (4)

Se meu tio Georg soubesse como na realidade estou agora subitamente sozinho! Semrpe anseio pela solidão, mas se estou sozinho, sou a pessoa mais infeliz. Não suporto a solidão e falo nela sem parar, prego a solidão e a odeio profundamente, porque não há mais nada que faça tão infeliz, como sei, como agora já sinto na pele, prego a solidão por exemplo a Gambetti e sei exatamente que a solidão é o mais temível de todos os castigos. Digo a Gambetti, Gambetti, o sublime é a solidão, porque me arvoro emseu filósofo, mais sei perfeitamente que a solidão é o mais terrível dos castigos. Só um louco propaga a solidão, e afinal de contas estar completamente sozinho nada mais é do que estar completamente louco, pensei, e tornei a caminha na direção contrária.

(Extinção, Thomas Bernhard)

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Em extinção. (3)

Um infortúnio, por mais terrível que seja, não nos autoriza a falsificar a memória, a falsificar o mundo, a falsificar tudo, a fazer, em suma, causa comum com a hipocrisia. Constatei muitas vezes que, de falecidos tomados a vida inteira como repulsivos e repugnantes, falava-se de repente como se nunca houvesse sido repulsivos ou repugnantes em sua vida. Isso sepre me pareceu de um mau gosto constrangedor. Afinal a morte de uma pessoa não a torna outra, não a torna um bom caráter, não a torna um gênio se era imbecil, um santo se a vida inteira foi um monstro. Temos de suportar um tal acidente como natural, aturá-lo com todos os seus horrores, mesmo com a certeza de que ele não altera, em sua verdadeira imagem, as pessoas mortalmente acidentadas. Sobre um morto não se deve falar mal, dizem as pessoas, uma opiniçao hipócrita e falsa. Como é que posso afirmar de repente, depois da morte de alguém que a vida inteira foi sempre uma pessoa ignóbil, um caráter de todo abjeto, que ele não terá sido uma pessoa ignóbil, um caráter abjeto mas de súbito uma pessoa boa? Esse mau gosto constatamos todos os dias quando alguém morre. Assim como não devíamos hesitar em dizer, quando de sua morte, tal pessoa boa morreu, também não devíamos hesitar em dizer, tal pessoa sórdida, abjeta, morreu. Morreu com todos os seus erros, devíamos dizer, e com tudo o que tinha de encantador, com tudo o que tinha de admirável, em todo caso. Sua morte não deve de maneira alguma corrigir a imagem que temos de uma pessoa. Para nós, ela continua o que era, devíamos dizer conosco, e deixá-la em paz.

(Extinção, Thomas Bernhard)

Em extinção. (2)

E quem dirá se nós mesmos seguimos o caminho correto? Nós mesmos não somos as pessoas mais felizes do mundo. E estivemos sempre em busca do ideal, sem encontrá-lo. O fato é que nós todos sempre buscamos um caminho para nos aproximar uns dos outros e com isso sempre nos afastamos cada vez mais, quanto maiores foram nossas tentativas de nos reaproximar, tanto mais nos afastamos uns dos outros. Nossas tentativas, nesse sentido, disse, sempre terminaram em mágoa. Sempre desistimos de nossas tentativas somente porque, do contrário, serímaos sufocados por nossas próprias censuras, disse.

(Extinção, Thomas Bernhard)

Em extinção.

É natural amar nossos pais, e igualmente natural amar nossos irmãos, pensei, de novo defronte da janela e olhando a Piazza Minerva lá embaixo, que continuava deserta, e não percebemos que, a partir de um determinado momento, os odiamos contra nossa vontade, mas de maneira tão natural quanto antes os amávamos, por todos esses motivos de que tomamos consciência somente anos, muitas vezes décadas mais tarde. Não podemos mais indicar o momento exato em que não amamos mais, senão odiamos, nossos pais e nossos irmãos, e também não nos empenhamos mais em averiguar esse momento exato, porque no fundo temos medo. Quem deixa os seus contra a vontade deles, e ianda por cima da maneira mais implacável como eu fiz, tem de dar o ódio deles como certo, e quanto maior tiver sido o amor deles por nós, tanto será o ódio deles quando tivermos posto em prática aquilo que havíamos prometido.

(Extinção, Thomas Bernhard)

terça-feira, 17 de abril de 2012

Ah, a verdade... (2)

Porque essa verdade que Sofía e sua mãe haviam procurado durante tanto tempo, e pela qual, naquela ocasião, quando Rímini ainda fazia parte de suas vidas, teriam feito qualquer sacrifício - essa verdade demonstrava ser duplamente inútil: aparecia agora, quando já era tarde demais, e aparecia para ele, que nunca a procurara e não tinha mais nenhuma relação com o mundo que vinha a perturbar. E enquanto começava a pensar que talvez isso explicasse a sorte catastrófica da verdade humana - isso: não o fato de que não houvesse verdade, como sustentavam muitos, mas o fato de que a verdade vinha sempre fora de hora, quando o enigma a que dava resposta já fora esquecido, e jamais caía nas mãos daqueles que a procuravam ou que dela necessitavam.

(O Passado, Alan Pauls)