quarta-feira, 18 de abril de 2012

Em extinção. (3)

Um infortúnio, por mais terrível que seja, não nos autoriza a falsificar a memória, a falsificar o mundo, a falsificar tudo, a fazer, em suma, causa comum com a hipocrisia. Constatei muitas vezes que, de falecidos tomados a vida inteira como repulsivos e repugnantes, falava-se de repente como se nunca houvesse sido repulsivos ou repugnantes em sua vida. Isso sepre me pareceu de um mau gosto constrangedor. Afinal a morte de uma pessoa não a torna outra, não a torna um bom caráter, não a torna um gênio se era imbecil, um santo se a vida inteira foi um monstro. Temos de suportar um tal acidente como natural, aturá-lo com todos os seus horrores, mesmo com a certeza de que ele não altera, em sua verdadeira imagem, as pessoas mortalmente acidentadas. Sobre um morto não se deve falar mal, dizem as pessoas, uma opiniçao hipócrita e falsa. Como é que posso afirmar de repente, depois da morte de alguém que a vida inteira foi sempre uma pessoa ignóbil, um caráter de todo abjeto, que ele não terá sido uma pessoa ignóbil, um caráter abjeto mas de súbito uma pessoa boa? Esse mau gosto constatamos todos os dias quando alguém morre. Assim como não devíamos hesitar em dizer, quando de sua morte, tal pessoa boa morreu, também não devíamos hesitar em dizer, tal pessoa sórdida, abjeta, morreu. Morreu com todos os seus erros, devíamos dizer, e com tudo o que tinha de encantador, com tudo o que tinha de admirável, em todo caso. Sua morte não deve de maneira alguma corrigir a imagem que temos de uma pessoa. Para nós, ela continua o que era, devíamos dizer conosco, e deixá-la em paz.

(Extinção, Thomas Bernhard)

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