sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Criminals.

Da caminhada.

O primeiro passo para o ódio é o amor.

'00

1. I’ll Believe In Anything, Wolf Parade
2. Us Ones In Between, Sunset Rubdown
3. Winged/Wicked Things, Sunset Rubdown
4. The Empty Threats of Little Lord, Sunset Rubdown
5. All Fires, Swan Lake
6. Dear Sons and Daughters of Hungry Ghosts, Wolf Parade
7. Silver Moons, Sunset Rubdown
8. The Men Are Called Horsemen There, Sunset Rubdown
9. Chinese Way, Wolf Parade
10. Are You Swimming In Her Pools?, Swan Lake

Tags.

Spencer Krug

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Meu Brasil brasileiro.



O verdadeiro juramento de Hipócrates: Eu juro ser hipócrita!

Do primado da enunciação.

Não se importe muito com o que você vai dizer, mas sim com a maneira como dirá. Na dúvida, abra a boca.

Modus operandi.

(...)

Pois bem... Lembro-me perfeitamente que a tônica da minha última carta foi um puxão de orelhas do tipo: “peloamordedeus eu imploro: me dá atenção”. Remontei passo a passo todo o percurso que fiz durante esse tempo em que estamos fisicamente separados, tim tim por tim tim, para tentar compreender porque você mudou tanto e mais do que isso: por que mudou tanto comigo? A verdade é que eu fiquei encucado por dois motivos: o primeiro deles era a crença de que o que eu vivi ao seu lado foi tão forte para você quanto foi para mim a ponto da gente conseguir manter nossa amizade tal qual era, independente das fronteiras temporais ou espaciais que fossem colocadas entre a gente; o segundo foi eu ver acontecer com você uma mudança tão brusca quanto aquela que aconteceu com a Mariana, uma menina que morava em Santos de quem lhe falei quando começamos a ficar mais próximos e por quem um dia eu já fui apaixonado. Eu só ficava aqui pensando: não, com você não pode acontecer isso! Só depois de dois anos que eu tomei coragem (obviamente por intermédio das palavras escritas) para falar o que eu queria lhe dizer durante este tempo todo, tirar todas as dúvidas que eu guardei até agora. No entanto, embora tudo que eu tenha lhe dito em minha última carta seja sincero e legítimo, talvez possa ter soado aos seus olhos como algo grosseiro. Grosseiro não no sentido de desrespeitoso, pois eu jamais faria isso com você, mas sim como uma cobrança, talvez aparentemente ríspida quando eu revelo “as verdades” de uma maneira tão crua, tão direta. Bem que se diga, e isso deve ficar muito claro, essas referidas verdades estão entre aspas por serem verdades parciais, minhas verdades, ou seja, aquelas que trago em minha memória. Logo depois que conversamos pelo telefone, num balanço que fiz junto ao Tio Beto por e-mail (pois ele ainda é o meu grande confidente como já lhe disse várias vezes), eu já alertava para a possibilidade da terceira carta, que à época ainda estava nos correios, ser mal recepcionada e/ou mal interpretada por sua parte (como você mesma disse ao telefone, essa forma de comunicação é um tanto problemática justo porque não é capaz de fornecer outros indícios que contextualizem de maneira mais clara o sentido preferencial que o emissor procura transmitir, como acontece em sua plenitude na comunicação face a face). Desde então já venho repensando o conteúdo da mensagem que lhe enviei. Só que a gota d’água que me levou novamente a te encher um pouquinho mais o saco foi o referido texto do Maurice Halbwachs. Sim, você mudou e mudou bastante aos meus olhos, bem que se diga. Mas a verdade verdadeira (a verdadeira mesmo!) é que não há como lutar contra a distância, independente dos nossos esforços, pois a quebra da rotina deixa de presentificar a amizade e os sentimentos que, em outra ocasião, tanto nos unia. Não é a toa que a cada dia que passa eu faço menos sentido para você. A memória só é acionada quando os membros de um grupo compartilham um contexto socialmente relevante para um determinado indivíduo e por isso mesmo elas tratam de uma construção coletiva e não meramente individual. E, para minha tristeza, hoje em dia, por fazermos parte de grupos distintos, a tendência é que progressivamente nos tornemos estrangeiros um ao outro (por mais que eu tenha lutado insistentemente contra isso). Como seus quadros de referencia hoje são outros, agora eu entendo perfeitamente que eu não passe de um borrão no seu passado e, infelizmente, acho que não há como mudar essa situação. Só hoje compreendo que você não tem absolutamente culpa nenhuma nesse processo, ou pelo menos não da maneira (quase conspiratória) que eu imaginava, através de uma mudança voluntária no trato comigo, de passar a ser mais indiferente em relação a mim. Realmente não tem nada a ver com isso. Eu ficava aqui encucado querendo entender, num saudosismo sem tamanho, como de uma hora para outra você, que sempre teve o maior carinho e consideração para comigo, passou a me escrever (quando escrevia) de maneira tão seca, curta, fria e impessoal. Afinal, se nossos contatos eram tão freqüentes e calorosos, minha cabeça pensava que só podia ter acontecido algo muito grande que lhe tivesse feito agir de maneira diferente comigo a partir de agosto de 2005. Aconteceu e não aconteceu, na verdade: no início você ainda me tinha fresco na memória, pois tudo que havíamos passado juntos era muito recente (na nossa cabeça era como se estivéssemos voltando das férias e, por esse motivo, queríamos nos manter próximos). Só que a quebra do convívio diário, da tal presentificação da amizade somada a sua re-inserção na sua cidade junto com a minha em inserção em BH acabou te transformando. E essa transformação, que eu sempre julguei como negativa, quando comparada aos meus pretensos esforços para sempre estar próximo a você (dentro da proximidade que estava ao meu alcance), na verdade, não é negativa, mas “natural”. É negativa para mim que sou carente e sempre me apoiei em você desde quando te conheci, afinal, desde então eu deixaria de povoar seus pensamentos e preocupações cotidianas. Some-se a este processo dois agravantes: porque se eu te acuso de ter mudado eu esqueço que eu também mudei nesse período, por mais que eu não tenha sentido diferença alguma e teime em dizer que não (me sinto como o mesmo de quando tinha 12 anos, com exatamente as mesmas preocupações e os mesmos problemas, talvez apenas potencializados pelo tempo, como já lhe disse outrora); além disso, eu fui covarde, suficientemente covarde (e covarde é a palavra) de não ter te ver antes por conta do meu ciúme bobo e estúpido de você. Se (maldito se) eu tivesse feito isso, talvez hoje eu ainda fizesse algum sentido para você, pois nossa relação teria sido mais constantemente atualizada e vivificada (e quando eu uso esses termos, me refiro pela manutenção tanto quanto possível de relações face a face). Sim, sou o maior culpado disso tudo, pois muito provavelmente estive longe (fisicamente falando) quando, talvez, você precisasse que eu estivesse o mais perto possível de você. Não a toa, se por acaso você teve paciência para ler todas as memórias que eu relatei em que eu estive próximo a você e que eu jamais esqueci, provavelmente você perceberá que você só se recorda de pouquíssimos ou nenhum desses momentos. Justo porque a nossa forma de olhar um para o outro foi diferente (o Renato Russo em “Daniel na Cova dos Leões” diz isso com perfeição: o seu momento era o meu instante): eu sempre fui apaixonado por você mesmo tentando negar isso a todo custo ante a impossibilidade da concretização daquele amor (em sua plenitude – ou melhor, oficialmente – pois, diga-se de passagem o simples fato de estar junto a você já me bastava, até porque eu acho que não sou simpatizante do amor grudento, mas sim do que uma grande amiga definiu por “amizade erótica”). Sendo assim, quando a gente está apaixonado, não se furta em reparar e contemplar cada mínimo detalhe da pessoa amada. E é também por isso que muitas vezes a gente tem a mania equivocada de querer cobrar dos outros que se lembrem do que a gente lembra, que sintam o que a gente sentiu, que valorizem o que a gente valorizou. Ainda que eu tente sempre relativizar essas questões, até porque minha auto-estima sempre me ajudou nesse ponto, eu também às vezes me coloco na posição de centro do mundo (ou tento me colocar), por menos que eu o faça. Num momento de fraqueza completa, me mostrei totalmente, de forma nua e crua tentando, por desespero, te chocar ao mesmo tempo que me pus a rastejar. Enfim, todo mundo tem seus dias, ainda que, como eu já lhe disse e reitero, tudo o que eu lhe disse é a mais pura verdade, a mais sincera verdade de tudo que me afligiu durante todo esse tempo.


Continuando minhas reflexões, outro ponto que eu tenho a salientar e que eu julgo como sendo muito importante é o fato d’eu não ter timing suficiente para viver no presente, pois eu demoro muito para assimilar as coisas que acontecem a minha volta. Esse fato está relacionado diretamente com outro ponto crucial: minha ultra-racionalidade. Como você deve ter percebido durante esse tempo todo que a gente conviveu e no qual lhe escrevi tantas cartas, há sempre por meio destas uma tentativa de minha parte em sempre tentar entender, explicar, propor hipóteses para tudo que eu sinto, penso, observo. Essa minha mania, inclusive, foi confundida por um amigo meu por certa prepotência de gente que está na faculdade “em querer teorizar tudo”. Só que ao contrário do que ele pensa essa é uma característica tipicamente minha e que provém de antes mesmo de entrar para a faculdade. Sou um ser lógico a procura de respostas lógicas e para isso proponho explicações para tudo, porque assim aumento a minha crença, faço julgamentos mais precisos e condizentes. Contudo, o que eu acreditava ser uma das minhas maiores virtudes talvez seja o grande germe da minha destruição, um dos meus maiores defeitos. Primeiro porque toda reflexão se constrói em relação ao passado (não a toa meu presente é o passado); e segundo porque existem coisas que não foram feitas para serem explicadas, mas sim para serem sentidas e eu, na insistência de teorizar me esqueço de viver, de experimentar, porque o presente, tempo das sensações é o tempo do risco, da construção e eu quero a certeza da segurança, que só encontro quando olho para trás e entendo as coisas (ou finjo entender). Vivo da nostalgia. Como eu disse ao Daniel, esse meu grande amigo que me acusou (em certa medida sabiamente) de ser muito “teorizador”, sou um cara errado, que toma atitudes erradas, vive num tempo errado e num espaço errado. Eu só entendo as coisas quando elas já se esvaíram e eu não tenho mais como modifica-las. Talvez, mais pra frente quando o presente tiver se tornado passado eu entenda que agora, nesse momento que eu me declaro a você, eu esteja apaixonado por outra pessoa. Ou que crie um amor que nunca existiu (como talvez seja isso que ocorra entre mim e você diante da nossa distância), mas que irá me parecer tão real, apesar de já não ser mais possível de ser concretizado. Isso pode soar um tanto quanto louco para uma pessoa “normal”, pé no chão como você, mas para mim faz todo o sentido do mundo. Porque com esse mecanismo eu acabo achando um culpado para as minhas desilusões. Ou seja, não fui eu quem tive a culpa, mas sim, foi o destino que me separou do meu grande e verdadeiro amor. De quebra mato dos coelhos com um tiro só e ainda consigo pensar num estatuto de felicidade utópica possível, embora eu tenha sido privada da mesma. Ai fica-se com a sensação do “eu podia ter sido feliz...”. Enquanto isso, deixo de lado quem é importante para a minha vida no presente, onde estão meus pés, da mesma maneira que eu, quando estivemos no mesmo espaço, por mais que tentasse estar junto a você e te fazer feliz tanto quanto eu podia, talvez tenha sido uma pessoa ausente. Eu não nasci para este mundo! Mesmo sabendo racionalmente que jamais iria acontecer algo mais sério entre mim e você, afinal, você me enxergava como um amigo, além de, naquela época ainda estar apaixonada pelo Antônio, a minha mente é traiçoeira e vai me condenar sempre pelo que eu não fiz (me fazendo acreditar na circunstancialidade dos fatos em vez de seu caráter absoluto), pelas minhas escolhas, pelo que não tentei. Ou você acha que ao longo desses dois anos e meio eu já não me arrependi de ter largado a engenharia? Arrependimento este não pelo curso em si, pois hoje em dia tenho a certeza plena que me dou muito melhor com as palavras do que com os números, mas porque eu tive de abrir mão de amizades com pessoas as quais eu amo de paixão. Porque eu, com a minha mentalidade probabilística (que não se conforma que a gente tenha de seguir apenas um caminho na árvore da vida; que não se conforma que para cada caminho aberto outros se fecham; que não se conforma que a gente esteja preso a um só corpo) tenho plena e total consciência de que se eu tivesse permanecido na engenharia, a esta hora eu estaria dormindo, ansioso para te encontrar no dia seguinte, pois você teria continuado lá, mesmo que aos trancos e barrancos. E ainda que provavelmente jamais admitisse para mim que te amava por conta da minha ética pessoal e medo de te perder (porque quando se sabe que alguém está apaixonado por você e você não corresponde, você involuntariamente acaba modificando a maneira de lidar com a pessoa apaixonada, por mais que se tente disfarçar, afinal, o que paira no ar é a desconfiança). Ou seja, eu ia te amar sem saber que estava te amando. Bonito isso, não é? Ciladas da vida... O mais legal de tudo é que muito provavelmente a minha insatisfação plena com o mundo me levava a crer que estava faltando alguma coisa, pois o amor tem que ser grande, explosivo, pomposo. Eu, ainda por cima, continuaria insatisfeito acreditando que a felicidade estaria onde eu não estava. Não foi a toa que o primeiro poema que eu resolvi compartilhar com você do Álvaro de Campos, aquele do Chevrolet na estrada de Sintra, traz consigo um dos versos mais fenomenais que eu já li na língua portuguesa e que me define com muita precisão (não por acaso os quero na minha lápide, como meu epitáfio):

Vou passar a noite a Sintra por não poder passa-la em Lisboa,
Mas quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.

De qualquer maneira não adiantaria nada que eu tivesse a certeza dos meus sentimentos em relação a você, pois o tal do amor não se conjuga no singular. Se assim o fosse eu me sentiria completo. Por outro lado, olha como é engraçado, eu estava por esses dias comentando com o Tio Beto que se eu não tivesse te abandonado, se eu não tivesse abandonado a EQ eu jamais me realizaria academicamente (como não me realizei ainda, embora esteja mais próximo disso hoje) e mais do que isso: jamais conheceria pessoas que, como você, são tão essenciais a minha vida. É foda isso, porque as pessoas importantes que atravessam a minha vida criam raízes fundas e irreparáveis. E como eu sou carente e apegado, fica difícil viver assim. Eu queria ser do tamanho do mundo, não para vigiar as pessoas, mas sim para estar próximo a todo momento daquelas que eu amo, que fazem sentido para mim, de modo a não deixar esse meu amor morrer, as memórias secarem. Sim, sou completamente egoísta nesse sentido. Parece aquela situação em que você vai dormir na casa de uma pessoa “estranha” e que, numa noite de frio, você pega o cobertor e percebe que quando você puxa ele pra cima, seus pés ficam descobertos, ao passo que quando você cobre os pés, as costas ficam desprotegidas. Agora pensa na mesma situação, mas leve em consideração que você, a cada daí que passa, cresce mais e o cobertor, a cada lavagem encolhe. Isso é que é escolher: proteger alguns lugares ao passo que outros, inevitavelmente ficam desprotegidos. De qualquer forma, pode ficar tranqüila porque “a priori” eu já sei que essas minhas palavras não tem efeito, pois elas só tem relevância quando são proferidas pela pessoa certa. O que eu te peço é que ao menos você tome como lição tudo o que eu lhe disse nessas últimas cartas, pois é melhor aprender com os erros dos outros do que errando. Sim, sou apaixonado (e agora perdi a vergonha de afirmar isso) por você, mas provavelmente você nunca tenha existido. Trata-se de alguém que eu criei ou que agora está no passado ao meu lado em uma fotografia (e que de quando em quando eu tento fazer um esforço para entrar dentro) e ficará por lá por toda a posteridade. Diante de tudo isso, sinceramente, eu só espero que você não cometa o erro que eu cometi, continuo cometendo e sempre cometerei, qual seja, viver essa vida paralela pautada em utopias e idealizações idiotas, participando de monólogos estúpidos como este que você está lendo nesse instante (talvez seja por isso que eu goste tanto de escrever cartas, afinal, para mim elas se constituem como o extremo máximo do conceito de Self do G.H. Mead do qual me valho para legitimar socialmente minha loucura e perseguir uma sensação que eu nem sei qual é). Eu posso até ser um estrangeiro para você hoje em dia, mas pode ter certeza absoluta que durante esse tempo de exílio eu jamais deixei de pensar em você pelo menos uma vez por dia.

(...)

Desastre aéreo.

A caixa preta é o corpo.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A vida.

O eterno retorno do eterno retorno do eterno retorno...

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Reversos.

Cão alado alucinado
Atolado ao teu lado

terça-feira, 27 de outubro de 2009

A raiz.

Talvez o maior dos problemas seja admitir para si mesmo que não se precisa de absolutamente nada do que se acreditava precisar.

Vermelho.

Foi num desses dias, quando está prestes a nevar e há uma eletricidade no ar. Você quase pode ouvir. Certo? E este saco estava dançando para mim como uma criança chamando para brincar. Por 15 minutos. Foi quando entendi que havia esta vida toda por trás das coisas e essa incrível força benevolente que dizia não haver razão para ter medo nunca. Em vídeo não é a mesma coisa, eu sei. Mas ajuda a lembrar. Preciso me lembrar. Às vezes, há tanta beleza no mundo que parece que não posso suportar. E meu coração parece que vai sucumbir.

(Ricky Fitts, em Beleza Americana)

Musas. (6)

Musas. (5)

Das perguntas sem resposta.

Por que eu sempre sou a interferência?

Musas. (4)

Chuva.

- Você quem sabe.
- Quisera eu soubesse de algo.

Musas. (3)

Musas. (2)

Musas.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Circunferência.

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que…,
Isto.

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim…

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

(Álvaro de Campos)

Do gozo pleno.

Um triângulo: alguém para poder submeter e alguém para poder ser submetido.

domingo, 25 de outubro de 2009

A Letter to Elise.

Como eu disse ao Daniel, esse meu grande amigo que me acusou (em certa medida sabiamente) de ser muito “teorizador”, sou um cara errado, que toma atitudes erradas, vive num tempo errado e num espaço errado. Eu só entendo as coisas quando elas já se esvaíram e eu não tenho mais como modifica-las.

sábado, 24 de outubro de 2009

Fernando Vidal.

Ocorre-me que ao ler a história de Norma Pugliese alguns de vocês pensarão que sou um canalha. Desde já lhes digo que acertaram. Considero-me um canalha e não tenho o menor respeito por minha pessoa. Sou um indivíduo que se aprofundou em sua própria consciência, e quem é que, tendo se afundado nos vincos de sua consciência, poderá respeitar-se?

Ao menos considero-me honesto, pois não me engano sobre mim mesmo nem tento enganar os demais. Vocês talvez me perguntem, então, como enganei sem o menor escrúpulo tantos infelizes e mulheres que cruzaram meu caminho. Mas acontece que há enganos e enganos, senhores. Esses enganos são pequenos, não têm importância. Da mesma forma que não se pode qualificar de covarde um general que ordena uma retirada com vistas a um avanço definitivo. São e eram enganos táticos, circunstanciais, transitórios, em favor de uma verdade maior, de uma desapiedada investigação. Sou um investigador do Mal, e como se poderia investigar o Mal sem afundar-se até o pescoço na sujeira? Vocês me dirão que ao que tudo indica eu encontro um vivo prazer em fazê-lo, em vez da indignação ou do asco que deveria sentir um autêntico investigador que se vê forçado a fazê-lo por desagradável obrigação. Também está correto e eu o reconheço publicamente. Vêem como sou honrado? Não disse em momento algum que sou boa pessoa: disse que sou um investigador do Mal, o que é muito diferente. E além disso reconheci que sou um canalha. Que mais podem pretender de mim? Um canalha insigne, isso sim. E orgulhoso de não pertencer a essa espécie de fariseus que são tão ruins como eu mas que pretendem ser honoráveis indivíduos, pilares da sociedade, corretos cavalheiros, eminentes cidadãos a cujos enterros vai uma enorme quantidade de gente e cujas crônicas logo aparecem nos jornais sérios. Não: se sair alguma vez nesses jornais, será, sem dúvida, na seção policial. De modo que estou muito longe de sentir-me envergonhado.

Detesto essa universal comédia dos sentimentos honoráveis. Sistema de convenções que se manifesta já na linguagem: suprema falsificadora da Verdade com vê maiúsculo. Convenções que ao substantivo "velhinho" antepõem o adjetivo "pobre"; como se todos não soubéssemos que um mau-caráter que envelhece nem por isso deixa de ser maucaráter, senão que, pelo contrário, agrava seus maus sentimentos com o egoísmo e o rancor que adquire ou incrementa com as cãs. Teria de se fazer um monstruoso auto-defé com todas essas palavras apócrifas, elaboradas pelo sentimentalismo popular, consagradas pelos hipócritas e defendidas pela escola e pela polícia: "veneráveis anciãos" (a maior parte já merece que se cuspa neles), "distintas matronas" (em sua quase totalidade movidas pela vaidade e pelo egoísmo mais cru), etcétera. Para não falar dos "pobres ceguinhos" que constituem o motivo deste Informe. E devo dizer que se esses pobres ceguinhos me temem é justamente porque sou um canalha, porque sabem que sou um deles, um sujeito sem piedade que não vai se deixar afugentar com besteiras e lugares-comuns. Como poderiam temer um desses infelizes que os ajudam a cruzar a rua em meio à lacrimosa simpatia estilo filme de Disney com passarinhos e fitinhas coloridas de Natal?

Se se perfilassem todos os canalhas que há no planeta, que formidável exército se veria, que amostragem inesperada! Desde criancinhas de brancos aventais ("a pura inocência da meninice") até corretos funcionários públicos, que, no entanto, levam papéis e lápis para suas casas. Ministros, governadores, médicos e advogados em sua quase totalidade, os já mencionados pobres velhinhos (em imensas quantidades), as também mencionadas matronas que agora dirigem sociedades que ajudam o leproso ou o cardíaco (depois de ter galopado em suas carreiras em camas alheias e de ter contribuído precisamente para o incremento das doenças do coração), gerentes de grandes empresas, jovenzinhas de aparência frágil e olhos de gazela (mas capazes de depenar qualquer idiota que creia no romantismo feminino ou na fragilidade e desamparo de seu sexo), inspetores municipais, funcionários coloniais, embaixadores condecorados, etcétera, etcétera. CANALHAS, MARCHEM! Que exército, meu Deus! Avancem, filhos da puta! Nada de parar, nem de choramingar, agora que os espera o que lhes tenho preparado!

CANALHAS, DIREITA!

Formoso e edificante espetáculo.

Cada um dos soldados ao chegar ao estábulo será alimentado com suas próprias canalhices, convertidas em excremento real (não metafórico). Sem consideração alguma nem arranjos. Que ao filhinho do senhor ministro não se lhe permita comer pão duro em vez de sua caça correspondente. Não, senhor! Ou se fazem as coisas como é devido ou não vale a pena fazer nada. Que coma sua merda. E mais ainda: que coma toda a sua merda. bom seria que admitíssemos que cada um coma uma quantidade simbólica. Nada de símbolos: cada um há de comer sua exata e total canalhice. É justo, compreende-se: não se pode tratar um infeliz que simplesmente esperou com alegria a morte de seus progenitores para receber uns trocados da mesma forma que alguns desses anabatistas de Mineápolis que aspiram ao céu explorando negros na Guatemala. Não, senhor! JUSTIÇA E MAIS JUSTIÇA! A cada um a merda que lhe corresponda, ou nada. Não contem comigo, ao menos para safadezas desse tipo.

E que conste que minha posição não só é inexpugnável senão desinteressada, já que, como reconheci, em minha condição de perfeito canalha, integrarei as filas do exército coprófago. Só reivindico o mérito de não enganar ninguém.

E isso me faz pensar na necessidade de inventar previamente algum sistema que permita detectar a canalhice em personagens respeitáveis e medi-la com exatidão para descontar de cada um a quantidade que merece que se lhe desconte. Uma espécie de canalhômetro que indique com uma agulha a quantidade de merda produzida pelo Senhor X em sua vida até este Juízo Final, a quantidade a deduzir em consideração à sinceridade ou boa disposição, e a quantidade líquida que deve tragar, uma vez feitas as contas.

E, depois de realizada a medição exata em cada indivíduo, o imenso exército deverá se pôr em marcha até seus estábulos, onde cada um de seus integrantes consumirá sua própria e exata sujeira. Operação infinita, como se vê (e aí residiria a piada), porque ao defecar, em virtude do princípio da conservação dos excrementos, expulsariam a mesma quantidade ingerida. Quantidade que volta a ser colocada diante de seus focinhos, mediante um movimento de inversão coletiva a uma voz de comando militar, devendo ser ingerida novamente.

E assim, ad infinitum.

(Sobre Heróis e Tumbas, Ernesto Sábato)

Entre.

Dentro das prisões
Não existem paredes
Mas o ar não sai

Dentro das paredes
Não existem prisões
Mas o ar não entra

A camiseta.

When routine bites hard and ambitions are low
and resentment rides high but emotions won't grow
And we're changing our ways, taking different roads

Then love, love will tear us apart again
Love, love will tear us apart again

Why is the bedroom so cold? You've turned away on your side
Is my timing that flawed? Our respect runs so dry
Yet there's still this appeal that we've kept through our lives

But love, love will tear us apart again
Love, love will tear us apart again

You cry out in your sleep, all my failings exposed
And there's taste in my mouth as desperation takes hold
Just that something so good just can't function no more

But love, love will tear us apart again
Love, love will tear us apart again
Love, love will tear us apart again
Love, love will tear us apart again

(Love Will Tear Us Apart, Joy Division)

As vezes...

...alguma coisa justa acontece. Parabéns, 'S'!

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Saber falar.

Ao vivo eu sou um lixo.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Larará. (2)

Depois da chuva de sangue,
Depois da chuva de sapos.

(Tormenta, Wado e Realismo Fantástico)

Larará.

E eu ja sei qual é o fim:
Você se transforma em uma velha inconveniência.

(Velha Inconveniência, Quase Coadjuvante)

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Dos elogios.

Por que eles sempre soam como ofensas?

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

domingo, 18 de outubro de 2009

Das confissões.

Jaz aqui um ser completamente intransigente e arrogante - mesmo que involuntariamente, o que no fim das contas não atenua absolutamente nada a sentença.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Do Amor.

— O amor que aprendemos aqui, pai, só muito tarde fui descobrir que ele não sabe o que quer; essa indecisão fez dele um valor ambíguo, não passando hoje de uma pedra de tropeço; ao contrário do que se supõe, o amor nem sempre aproxima, o amor também desune; e não seria nenhum disparate eu concluir que o amor na família pode não ter a grandeza que se imagina.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)

Da sinceridade.

— Em parte alguma, menos ainda na família; apesar de tudo, nossa convivência sempre foi precária, nunca permitiu ultrapassar certos limites; foi o senhor mesmo que disse há pouco que toda palavra é uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos. Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas, estou convencido também de que é muito perigoso quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo, e não descubro de onde tira a sua força quando rompe a resistência do casulo; contorce-se com certeza, passa por metamorfoses, e tanto esforço só para expor ao mundo sua fragilidade.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)

Da força.

— Forte ou fraco, isso depende: a realidade não é a mesma para todos, e o senhor não ignora, pai, que sempre gora o ovo que não é galado; o tempo é farto e generoso, mas não devolve a vida aos que não nasceram; aos derrotados de partida, ao fruto peco já na semente, aos arruinados sem terem sido erguidos, não resta outra alternativa: dar as costas para o mundo, ou alimentar a expectativa da destruição de tudo; de minha parte, a única coisa que sei é que todo meio é hostil, desde que negue direito à vida.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)

Das parábolas.

— Eu também tenho uma história, pai, é também a história de um faminto, que mourejava de sol a sol sem nunca conseguir aplacar sua fome, e que de tanto se contorcer acabou por dobrar o corpo sobre si mesmo alcançando com os dentes as pontas dos próprios pés; sobrevivendo à custa de tantas chagas, ele só podia odiar o mundo.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)

Diálogo.

— Não acredito na discussão dos meus problemas, não acredito mais em troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga a outra. Admito que se pense o contrário, mas ainda que eu vivesse dez vidas, os resultados de um diálogo pra mim seriam sempre frutos tardios, quando colhidos.

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Capinando paixões.

Que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinos graves marcando as horas: "O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; por isso, ninguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais largo que a perna: dar o passo mais largo que a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa casa há de colocar nunca o carro à frente dos bois: colocar o carro à frente dos bois é o mesmo que retirar a quantidade de tempo que um empreendimento exige; e ninguém ainda em nossa casa há de começar nunca as coisas pelo teto: começar as coisas pelo teto é o mesmo que eliminar o tempo que se levaria para erguer os alicerces e as paredes de uma casa; aquele que exorbita no uso do tempo, precipitando-se de modo afoito, cheio de pressa e ansiedade, não será jamais recompensado, pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas, não bebendo do vinho quem esvazia num só gole a taça cheia; mas fica a salvo do malogro e livre da decepção quem alcançar aquele equilíbrio, é no manejo mágico de uma balança que está guardada toda a matemática dos sábios, num dos pratos a massa tosca, modelável, no outro, a quantidade de tempo a exigir de cada um o requinte do cálculo, o olhar pronto, a intervenção ágil ao mais sutil desnível; são sábias as mãos rudes do peixeiro pesando sua pesca de cheiro forte: firmes, controladas, arrancam de dois pratos pendentes, através do cálculo conciso, o repouso absoluto, a imobilidade e sua perfeição; só chega a este raro resultado aquele que não deixa que um tremor maligno tome conta de suas mãos, e nem que esse tremor suba corrompendo a santa força dos braços, e nem circule e se estenda pelas áreas limpas do corpo, e nem intumesça de pestilências a cabeça, cobrindo os olhos de alvoroço e muitas trevas; não é na bigorna que calçamos os estribos, nem é inflamável a fibra com que tecemos as trancas de nossas rédeas, pode responder a que parte vai quem monta, por que é célere, um potro xucro? o mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame das nossas cercas, e com as farpas de tantas fiadas tecer um crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe viva, cerrada e pujante, que divida e proteja a luz calma e clara da nossa casa, que cubra e esconda dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado; e nenhum entre nós há de transgredir esta divisa, nenhum entre nós há de estender sobre ela sequer a vista, nenhum entre nós há de cair jamais na fervura desta caldeira insana, onde uma química frívola tenta dissolver e recriar o tempo; não se profana impunemente ao tempo a substância que só ele pode empregar nas transformações, não lança contra ele o desafio quem não receba de volta o golpe implacável do seu castigo; ai daquele que brinca com fogo: terá as mãos cheias de cinza; ai daquele que se deixa arrastar pelo calor de tanta chama: terá a insônia como estigma; ai daquele que deita as costas nas achas desta lenha escusa: há de purgar todos os dias; ai daquele que cair e nessa queda se largar: há de arder em carne viva; ai daquele que queima a garganta com tanto grito: será escutado por seus gemidos; ai daquele que se antecipa no processo das mudanças: terá as mãos cheias de sangue; ai daquele, mais lascivo, que tudo quer ver e sentir de um modo intenso: terá as mãos cheias de gesso, ou pó de osso, de um branco frio, ou quem sabe sepulcral, mas sempre a negação de tanta intensidade e tantas cores: acaba por nada ver, de tanto que quer ver; acaba por nada sentir, de tanto que quer sentir; acaba só por expiar, de tanto que quer viver; cuidem-se os apaixonados, afastando dos olhos a poeira ruiva que lhes turva a vista, arrancando dos ouvidos os escaravelhos que provocam turbilhões confusos, expurgando do humor das glândulas o visgo peçonhento e maldito; erguer uma cerca ou guardar simplesmente o corpo, são esses os artifícios que devemos usar para impedir que as trevas de um lado invadam e contaminem a luz do outro, afinal, que força tem o redemoinho que varre o chão e rodopia doidamente e ronda a casa feito fantasma, se não expomos nossos olhos à sua poeira? é através do recolhimento que escapamos ao perigo das paixões, mas ninguém no seu entendimento há de achar que devamos sempre cruzar os braços, pois em terras ociosas é que viceja a erva daninha: ninguém em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a terra para lavrar, ninguém em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a parede para erguer, ninguém ainda em nossa casa há de cruzar os braços quando existe o irmão para socorrer; caprichoso como uma criança, não se deve contudo retrair-se no trato do tempo, bastando que sejamos humildes e dóceis diante de sua vontade, abstendo-nos de agir quando ele exigir de nós a contemplação, e só agirmos quando ele exigir de nós a ação, que o tempo sabe ser bom, o tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto, é sempre abundante em suas entregas: amaina nossas aflições, dilui a tensão dos preocupados, suspende a dor aos torturados, traz a luz aos que vivem nas trevas, o ânimo aos indiferentes, o conforto aos que se lamentam, a alegria aos homens tristes, o consolo aos desamparados, o relaxamento aos que se contorcem, a serenidade aos inquietos, o repouso aos sem sossego, a paz aos intranqüilos, a umidade às almas secas; satisfaz os apetites moderados, sacia a sede aos sedentos, a fome aos famintos, dá a seiva aos que necessitam dela, é capaz ainda de distrair a todos com seus brinquedos; em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência absoluta à soberania incontestável do tempo, não se erguendo jamais o gesto neste culto raro; é através da paciência que nos purificamos, em águas mansas é que devemos nos banhar, encharcando nossos corpos de instantes apaziguados, fruindo religiosamente a embriaguez da espera no consumo sem descanso desse fruto universal, inesgotável, sorvendo até a exaustão o caldo contido em cada bago, pois só nesse exercício é que amadurecemos, construindo com disciplina a nossa própria imortalidade, forjando, se formos sábios, um paraíso de brandas fantasias onde teria sido um reino penoso de expectativas e suas dores; na doçura da velhice está a sabedoria, e, nesta mesa, na cadeira vazia da outra cabeceira, está o exemplo: é na memória do avô que dormem nossas raízes, no ancião que se alimentava de água e sal para nos prover de um verbo limpo, no ancião cujo asseio mineral do pensamento não se perturbava nunca com as convulsões da natureza; nenhum entre nós há de apagar da memória a formosa senilidade dos seus traços; nenhum entre nós há de apagar da memória sua descarnada discrição ao ruminar o tempo em suas andanças pela casa; nenhum entre nós há de apagar da memória suas delicadas botinas de pelica, o ranger das tábuas nos corredores, menos ainda os passos compassados, vagarosos, que só se detinham quando o avô, com dois dedos no bolso do colete, puxava suavemente o relógio até a palma, deitando, como quem ergue uma prece, o olhar calmo sobre as horas; cultivada com zelo pelos nossos ancestrais, a paciência há de ser a primeira lei desta casa, a viga austera que faz o suporte das nossas adversidades e o suporte das nossas esperas, por isso é que digo que não há lugar para a blasfêmia em nossa casa, nem pelo dia feliz que custa a vir, nem pelo dia funesto que súbito se precipita, nem pelas chuvas que tardam mas sempre vêm, nem pelas secas bravas que incendeiam nossas colheitas; não haverá blasfêmia por ocasião de outros reveses, se as crias não vingam, se a rês definha, se os ovos goram, se os frutos mirram, se a terra lerda, se a semente não germina, se as espigas não embucham, se o cacho tomba, se o milho não grana, se os grãos caruncham, se a lavoura pragueja, se se fazem pecas as plantações, se desabam sobre os campos as nuvens vorazes dos gafanhotos, se raiva a tempestade devastadora sobre o trabalho da família; e quando acontece um dia de um sopro pestilento, vazando nossos limites tão bem vedados, chegar até as cercanias da moradia, insinuando-se sorrateiramente pelas frestas das nossas portas e janelas, alcançando um membro desprevenido da família, mão alguma em nossa casa há de fechar-se em punho contra o irmão acometido: os olhos de cada um, mais doces do que alguma vez já foram, serão para o irmão exasperado, e a mão benigna de cada um será para este irmão que necessita dela, e o olfato de cada um será para respirar, deste irmão, seu cheiro virulento, e a brandura do coração de cada um, para ungir sua ferida, e os lábios para beijar ternamente seus cabelos transtornados, que o amor na família é a suprema forma da paciência; o pai e a mãe, os pais e os filhos, o irmão e a irmã: na união da família está o acabamento dos nossos princípios; e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao cocho, o gado sempre vai ao poço; hão de ser esses, no seu fundamento, os modos da família: baldrames bem travados, paredes bem amarradas, um teto bem suportado; a paciência é a virtude das virtudes, não é sábio quem se desespera, é insensato quem não se submete." E o pai à cabeceira fez a pausa de costume, curta, densa, para que medíssemos em silêncio a majestade rústica da sua postura: o peito de madeira debaixo de um algodão grosso e limpo, o pescoço sólido sustentando uma cabeça grave, e as mãos de dorso largo prendendo firmes a quina da mesa como se prendessem a barra de um púlpito; e aproximando depois o bico de luz que deitava um lastro de cobre mais intenso em sua testa, e abrindo com os dedos maciços a velha brochura, onde ele, numa caligrafia grande, angulosa, dura, trazia textos compilados, o pai, ao ler, não perdia nunca a solenidade: "Era uma vez um faminto."

(Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)

Aos reféns.

Vamos falar de pesticida
E de tragédias radioativas
De doenças incuráveis
Vamos falar de sua vida
Preste atenção ao que eles dizem
Ter esperança é hipocrisia
A felicidade é uma mentira
E a mentira é salvação
Beba desse sangue imundo
E você conseguirá dinheiro
E quando o circo pega fogo
Somos os animais na jaula
Mas você só quer algo tão doce
Não confunda ética com éter
Quando penso em você eu tenho febre

Mas quem sabe um dia eu escrevo
Uma canção pra você
Quem sabe um dia eu escrevo
Uma canção pra você

É complicado estar só
Quem está sozinho que o diga
Quando a tristeza é sempre o ponto de partida
Quando tudo é solidão
É preciso acreditar num novo dia
Na nossa grande geração perdida
Nos meninos e meninas
Nos trevos de quatro folhas
A escuridão ainda é pior que essa luz cinza

Mas estamos vivos ainda
E quem sabe um dia eu escrevo
Uma canção pra você
Quem sabe um dia eu escrevo
Uma canção pra você

(Natália, Legião Urbana)

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Contra o plástico.

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

(Poética, Manuel Bandeira)

Mágica.

Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
em cada esquina cai um pouco tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem, amor
Preste atenção o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés

(O Mundo é um Moinho, Cartola)

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Da filosofia.

Para viver basta aprender a ser como o sol: sorria amarelo!

Do altruísmo.

A virtude não iria tão longe se a vaidade lhe não fizesse companhia.

(François de La Rochefoucauld)

domingo, 11 de outubro de 2009

Mais do mesmo.

Não raramente, o que se pode perceber no contato cotidiano com os ‘mais entendidos’ é um certo desprezo pela cultura de massas, motivado, sobretudo, por afirmações que podem ser resumidas pela idéia de uma ‘falta de personalidade’ das pessoas, o que as tornariam ‘facilmente influenciáveis’ e, por que não dizer, manipuláveis? Logo, existem orgulhos patéticos como ‘não assistir a programas de televisão’.

Sem perceber, ‘os mais entendidos’ acabam fazendo parte da mesma armadilha de que se dizem imunes. Tudo bem: podem não imitar a jovem bobinha de Malhação. Seria evidente demais – e impossível, pois sequer ligam a televisão. Mas emulam com uma profundidade oca e deturpada seus dramas cults. Vide o número de 'incompreensíveis' Amelies, Clementines e Clarices que se espalham dia após dia, com seus discursos prontos e pasteurizados – além de convenientes e equivocados, naturalmente.

A manipulação aí é mais chique – vem da ‘alta cultura’ -, embora o vazio a ser escondido seja o mesmo. Não existem pessoas, mas apenas tipos e cada vez mais e mais previsíveis. O conto de fadas é exatamente igual. O que muda é o figurino e a trilha sonora. Nada além.

No fim das contas, a Desciclopédia resume:

‘O indie é um emo que leu alguns livros’.

sábado, 10 de outubro de 2009

Tesouros.

E esse outro avô ex-combatente na Argélia era de quem? Ah, sim, do Kramer. O Kramer se apaixonou por uma corista que se chamava Olga. Por algum motivo nunca conseguiam encontrar-se. Ele gritava passando pela casa de Olga, manhãzinha (ela dormia!): Olga, Olga, hoje estou de folga! Mas nunca se viam, e penso que ele sabia que se efetivamente se deitasse cima ela o sonho terminaria. Sábio Kramer. Nunca mais o vi. Há sonhos que devem permanecer nas gavetas, nos cofres, trancados até nosso fim. E por isso passíveis de serem sonhados a vida inteira.

(Estar sendo, ter sido, Hilda Hilst)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O aprendiz de foca.

A quem ama não é suficiente que o amem. Não é o amor a única coisa que quer. Quem ama é dragão ardente que gira em torno do amado. Precisa se manter no limite desse amor. Ficar sempre à espreita. Evitar que o amor que lhe entregam compita com o seu. O amado treme quando se olha nos olhos do amante e perceber a loucura. O amado é reflexo do amante. Quem ama tem o tempo como inimigo, o pensamento como carrasco, o sangue como rival. Quem ama não tem cúmplice. Tudo é obstáculo e intriga nele. Gostaria de comer o coração porque sabe que os corações mudam e ama o amor que sente. O amado dorme. Quem ama vigia. Não conhece o descanso. Odeia-se e quer morrer.

Kamel Nacif: Nunca peça o melhor de ninguém (não vá além da luz negra). O melhor de alguém pode ser o pior que existe nele.

Ela foi enviada para fazer-lhe companhia e agora sua solidão é maior. Ela devia ensiná-lo a caçar pássaros de fogo. Ela está mais só do que ele. Para jogar é preciso estabelecer regras, se essas regras são violadas não é possível jogar. Ela gosta de jogar. Ele inventa os jogos e não sabe jogá-los.

O sexo não tem pé nem cabeça. O amor só pés e cabeça. Entre a cabeça e os pés não há nada. O sexo é natural e o amor real. O sexo é a alma do corpo. Nos números naturais entre 1 e 2 não há nada. Nos reais entre 1 e 2 há um infinito. O natural é pouco denso, o real não pode ser atravessado.

Sou o homem invisível, meu pensamento não deslumbra os especialistas, não excita os amantes, não diverte as crianças. Minhas fantasias eróticas têm que ver com os caracóis. Desconheço as leis que regem o universo.

Sou o homem invisível, o boneco sem alma, o ineficaz. Não tenho dons, ninguém ouvirá minha escuta canção. Sou o espaço entre a cabeça e os pés. Meu pensamento é um pescoço quebrado.

(Técnicas de masturbação entre Batman e Robin, Efraim Medina Reyes)

Forca da Saudade.

_ _ _ I _ _ .

Fichamento.

O burguês cuja vida se divide entre o negócio e a vida privada, cuja vida provada se divide entre a esfera da representação e a intimidade, cuja intimidade se divide entre a comunidade mal humorada do casamento e o amargo consolo de estar completamente sozinho, rompido consigo e com todos, já é virtualmente o nazista que ao mesmo tempo se deixa entusiasmar e se põe a praguejar, ou o habitante das grandes cidades de hoje, que só pode conceber a amizade como ‘social contact’, como o contato social de pessoas que não se tocam intimamente. Nos rostos dos heróis do cinema ou das pessoas privadas, confeccionadas segundo o modelo das capas de revista, dissipa-se uma aparência na qual, de resto, ninguém mais acredita, e o amor por esses modelos de heróis nutre-se da secreta satisfação de estar afinal dispensado do esforço da individuação (mais penoso, é verdade) da imitação.

***

Mas a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa. A maneira pela qual o jovem aceita e se desincumbe do ‘date’ obrigatório, a entonação no telefone e na mais familiar situação, a escolha das palavras na conversa, e até mesmo a vida interior organizada segundo os conceitos classificatórios da psicologia profunda vulgarizada, tudo isso atesta a tentativa de fazer de si mesmo um aparelho eficiente e que corresponda, mesmo nos mais profundos impulsos instintivos, ao modelo representado pela indústria cultural. Mas mais íntimas reações das pessoas estão tão completamente reificadas para elas próprias que a idéia de algo peculiar a elas só perdura na mais extrema abstração: personalidade significa para elas pouco mais do que possuir dentes deslumbrantemente brancos e estar livres do suor nas axilas e das emoções.

(A Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer)

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Ciorando (9).

Diga-me apenas uma coisa que tenha começado bem e não tenha terminado mal.

(Emil Cioran)

domingo, 4 de outubro de 2009

Repeat.

Escuta, meu amigo
Vem cá, deixa de ser trouxa
Babando como um beagle
Atrás de uma louca
Ou esperta demais
Enquanto te vejo de lado
Se iludindo com uns sorrisos
Ela vai no seu amigo descolado
Do cabelo bagunçado
No marrento e no bombado
No retrô e no atirado
E quando ninguém mais sobrou
Ela diz que sempre te amou
Que você era o tal
Vê se arruma uma mulher de verdade
Que já não mente pros pais

(Amigo Trouxa, Tiro Williams)

O lado trágico. (4)

Sim, sim: NÃO!