terça-feira, 8 de abril de 2008

Um Capítulo.

Provo que a mais alta expressão da dor consiste essencialmente na alegria.

Augusto dos Anjos

***

Da vez seguinte em que se encontraram no terraço do bar, uma semana depois, Ulisses estava com o seu ar moroso e desinteressante. Mas Lóri já o conhecia: este ar vinha de que ele tranqüilamente treinava instante por instante um modo de abrir caminho. Se saía desse ar longínquo era para olhá-la com um vago desejo que não parecia querer se tornar mais forte.

Lóri manteve-se em silêncio, deixando que ele bebesse em silêncio, sem olhá-lo. Foi pois com um pequeno susto que o ouviu dirigir-se a ela, e não saberia há quanto tempo ele a contemplara para dizer-lhe:

— Você é tão antiga, Lóri, disse ele e para surpresa dela havia ternura na sua voz. Você é tão antiga, minha flor, que eu deveria lhe dar a beber vinho numa ânfora, disse já sem ternura e chamara-a de "minha flor" como ela o ouvira chamar a secretária dele, da vez em que a haviam encontrado na rua. Era um modo disfarçado de uma falsa camaradagem, assim como Lóri agia em relação a ele com certa secura. Mas havia tenacidade em Ulisses, havia tenacidade em Lóri.

Ulisses agora olhava-a curioso:

— Lóri, você nem ao menos consegue sentir o que há de profunda e arriscada aventura no que nós dois tentamos? Lóri, Lóri! Nós estamos tentando a alegria! Você ao menos sente isso? E sente como nos arriscamos no perigo? Você sente que há mais segurança na dor morna? Ah Lóri, Lóri, você não consegue recuperar, mesmo vagamente, na lembrança da carne, o prazer que pelo menos no berço você deve ter sentido por estar? Por ser? Ou pelo menos outra vez na vida, não importa quando, nem por quê?

Lóri não respondeu, sabia que ele adivinhava que a resposta era negativa.

— Você prefere a dor?

Também a isso ela não respondeu, sabia que ele adivinhava que a resposta seria de novo: não.

— O que é? Para aprender a alegria você precisa de todas as garantias?

Ela ficou em silêncio, porque o tom de Ulisses mudara e em vez de ardente se tornara sardônico e era para feri-la. Ele reclinou-se na cadeira um pouco cansado e disse:

— Você é das que precisam de garantia. Quer saber como eu sou para me aceitar? Vou me fazer conhecer melhor por você, disse com ironia. Olhe, tenho uma alma muito prolixa e uso poucas palavras. Sou irritável e firo facilmente. Também sou muito calmo e perdôo logo. Não esqueço nunca. Mas há poucas coisas de que eu me lembre. Sou paciente mas profundamente colérico, como a maioria dos pacientes. As pessoas nunca me irritam mesmo, certamente porque eu as perdôo de antemão. Gosto muito das pessoas por egoísmo: é que elas se parecem no fundo comigo. Nunca esqueço uma ofensa, o que é uma verdade, mas como pode ser verdade, se as ofensas saem de minha cabeça como se nunca nela tivessem entrado?

Lóri começava a achar que Ulisses zombava dela. E apertou os lábios em cólera. Só que não podia se impedir de querer ouvi-lo, sua curiosidade crescia à medida que, mesmo sabendo que ele brincava, também falava a verdade.

— Tenho uma paz profunda, continuou ele, somente porque ela é profunda e não pode ser sequer atingida por mim mesmo. Se fosse alcançável por mim, eu não teria um minuto de paz. Quanto à minha paz superficial, ela é uma alusão à verdadeira paz. Outra coisa que esqueci é que há outra alusão em mim — a do mundo grande e aberto. Sou professor de Filosofia porque é o que eu mais estudei e no fundo gosto de me ouvir falando sobre o que me interessa. Tenho um senso didático pronunciado que faz com que meus alunos se apaixonem pela matéria e me procurem fora das aulas. Este meu senso didático, que é uma vontade de transmitir, eu também tenho em relação a você, Lóri, se bem que você seja a pior de meus alunos. Bom, apesar de meu ar duro, que aliás vem também do fato de meu nariz ser tão reto, apesar de meu ar duro, sou cheio de muito amor e é isso o que certamente me dá uma grandeza, essa grandeza que você percebe e de que tem medo.

Como se de súbito tivesse notado que falara sério, parou e riu para desfazer tudo o que dissera:

— Meu amor pelo mundo é assim: eu perdôo as pessoas terem um nariz mal feito ou terem lábios finos demais e serem feias — todo erro dos outros e nos outros é uma oportunidade para mim de amar. Veja, não permito que ninguém mande em mim, e no entanto não me incomodo por exemplo de simplesmente seguir o programa traçado na faculdade para o ensino de cada classe.

Ulisses finalmente notou a cólera muda de Lóri. Então disse simples e sincero:

— Bem sei que estava brincando, mas não menti nenhuma vez, tudo o que eu disse é verdade. E se me confessei, não importa, sobretudo se foi a você. Aliás eu me confessaria também a outros, sem nenhum perigo: ninguém pode fazer uso do que os outros são, nem mesmo uso mental, por isso, esse tipo de confissão não é jamais perigoso. Talvez agora você ainda me desconheça mais. O melhor modo de despistar é dizer a verdade, embora eu não tenha tentado nenhuma vez despistar você, Lóri, disse ele. Com alguma dor então Lóri percebeu que Ulisses, apesar de dizer o contrário, não queria se dar a ela. E ela pagaria com a mesma moeda. Talvez antes de ele falar, ela tivesse a intenção de um dia dar-se, pois sabia que teria de dar a alguém o que ela era, senão o que faria de si? Como morrer antes de dar-se, mesmo em silêncio? Porque no dar-se teria enfim uma testemunha de si própria. E porque Ulisses também teria pensado na morte, ele disse:

— Antes de morrer se vive, Lóri. E uma naturalidade morrer, transformar-se, transmutar-se. Nunca se inventou nada além de morrer. Como nunca se inventou um modo diferente de amor de corpo que, no entanto, é estranho e cego e no entanto cada pessoa, sem saber da outra, reinventa a cópia. Morrer deve ser um gozo natural. Depois de morrer não se vai ao paraíso, morrer é que é o paraíso.

Ficaram em silêncio muito tempo, um silêncio que não pesava. Até que ele, como se quisesse lhe dar alguma coisa, disse:

— Olhe para esse pardal, Lóri — mandou ele — não pára de ciscar o chão que aparentemente está vazio mas com certeza seus olhos vêem a comida.

Obediente, ela olhou. E de súbito eis que o pardal alçou vôo, e na surpresa Lóri esqueceu-se de si própria e disse como uma criança para Ulisses:

— É tão bonito que voa!

Falara com a inocência que usava nas aulas com as crianças, quando não temia ser julgada. Inquieta então olhou rápido para o lado de Ulisses. Ele a olhava. Com um susto Lóri notou: era um olhar... de amor?

(Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, Clarice Lispector)

Nenhum comentário: