sábado, 9 de maio de 2009

Objeto Não Identificado.

Sentado, num relance ele percebe o incômodo e logo em seguida mentalmente se indaga: ‘mas de onde vem esse frio’? Naturalmente começa pelo início, toma um primeiro cuidado em observar as circunstâncias tidas como mais evidentes. Verifica se as janelas estão abertas, se existe alguma fresta - por menor que seja – capaz de permitir a circulação de alguma corrente de ar mais gélida e efetua rapidamente a vedação. Apesar de algumas das janelas realmente estarem abertas, a sensação de frio persiste e não deixa rastros quanto a sua origem. Num instante posterior, percebe que se encontra em trajes mínimos e diante disso corre imediatamente até o guarda-roupa em busca de alguma vestimenta. Afinal de contas, se o preceito da física estiver correto, isso impedirá – ou ao menos atenuará – as trocas de temperatura e lhe deixará protegido. Mas como toda ciência, a física também se mostra falha, seus princípios tão objetivos freqüentemente se perdem diante da concretude do cotidiano. ‘Talvez seja por conta de uma porta aberta’, imagina, uma daquelas portas cuja existência não é capaz de se dar conta, mas que mesmo assim permite o fluxo, o intercâmbio. Procura pelas portas. Todas. Uma por uma as fecha, corta as relações, restaura as fronteiras e ainda assim o frio não o deixa. Diante da janela, olha para a paisagem e, para seu espanto percebe a cor vibrante do sol em seu nascer. No entanto reconhece que nem sempre isso significa a presença de um calor, muito embora essa associação seja bastante tentadora. A sensação de desconforto começa a tomar conta dele, que procura insistentemente pelo grau zero de seu frio. ‘É absurdo’, pensa, ‘já tomei todas as precauções’, e ainda assim continua, diante daquele beco, procurando por alguma saída para sanar o frio. ‘Sanar, sanidade, é talvez seja uma questão de inversão’. Observa as páginas abertas de seus livros esparramados pelo chão e procura por alguma referencia, por alguma porta e diante das negativas, as fecha sumariamente. Recorre a uma estratégia simples, mas altamente eficaz, conforme outrora lhe confidenciou um amigo: ‘o álcool é o cobertor dos pobres’. Foi até a dispensa e percebeu que ainda havia uma garrafa de cachaça. ‘Tomara que realmente essa água seja ardente, que queime mesmo’, falou para si mesmo num daqueles fortuitos acessos de esperança. Não hesitou e, embora não estivesse acostumado, bebeu quase todo o conteúdo em poucos e grandes goles, com o mesmo desespero aparente com que costuma tomar sua coca-cola. Embora não tenha resolvido, eis que – talvez motivado pelo efeito alucinógeno do álcool - num daqueles momentos de revelação, Baader-Meinhof lhe vem à mente. Canta e ainda um pouco trôpego corre em direção ao telefone e disca. Chama, chama, chama e a ligação cai. Tenta mais uma vez e novamente não tem sucesso. Diante disso resolve pegar um amontoado de cartas antigas, cuidadosamente colocadas em uma pequena caixinha ornada, e enquanto saltam a seus olhos palavras plásticas de afeto e consideração, o frio torna-se acentuado. Como que com grande atraso, acende um fósforo e o lança sobre a caixinha de papel e seu amontoado de letrinhas. Buscando uma chama verdadeiramente calorosa, ele acaba despejando o restante da cachaça sobre o conteúdo. Com isso, atenua provisoriamente o frio, mas não o extirpa. Em seguida, após falar sozinho algo aparentemente ininteligível, pega as páginas mais obscuras de um jornal qualquer que está aberto em cima de uma mesinha de cabeceira e anota novo número. Liga, chama, atendem, combinam. Enquanto aguardava, recorda-se vagamente com um que de auto-desprezo do sonho ridículo que tivera tempos antes, em que, sem saber como nem porquê de repente se encontrará na companhia de um amigo dentro de um prostíbulo. O amigo tão rápido quanto entrou logo se perdeu em meio às belezas do local, mas ele, diferentemente, ficou ali a observar pequenos detalhes enquanto supostamente tentava fazer valer sua tal masculinidade para efetuar uma escolha. Observou uma garota que lhe chamara atenção, virou o rosto e, poucos segundos depois, quando admitiu seu interesse por ela, infelizmente, a moça não mais estava mais lá. No instante seguinte, sem que ele pudesse opor qualquer resistência, outra daquelas moças simplesmente lhe pegou pelos braços e o encaminhou para o interior de uma pequena cabine. Ao deparar-se novamente com este último fato, bradou um ‘quanta ironia, não é mesmo Dr. Freud!’ em meio ao seu tradicional gargalhar nervoso e prosseguiu em seu fluxo, novamente ao momento da cabine, o qual, novamente falando sozinho, classificou como patético: ‘olha se pode, um cara vai lá pra um puteiro, entra com uma mulher na cabine e, adivinhem o que ele faz? Nada! Simplesmente, de maneira tímida coloca a cabeça entre as pernas da moça, que provavelmente não deve ter entendido absolutamente nada, e começa a conversar sobre banalidades e, quase desfalecido, desfruta do pequeno prazer do toque das mãos dela em seus cabelos. É ridículo. Não, é patético. Vê se pode um sonho desses’. Não lhe resta outra oportunidade que não rir um pouco mais do absurdo da situação, do sonho, que, de fato, diz muito dele mesmo. Logo, ele não ri apenas do sonho, mas talvez sem se dar conta ri de si próprio, esparramado pelo chão ri do ridículo de ser ele mesmo. E ri ainda mais intensamente e mais raivosamente quando lembra que, de repente, ao se decidir por um contato mais íntimo com a tal garota – depois daquela necessidade romanticamente patética de se criar uma cumplicidade, um laço, um terreno comum, uma passado – o sonho termina exatamente como se o rolo daquele filme tivesse sido sumariamente cortado bem no exato fotograma em que a ação tomar um novo rumo. A velha história da imagem congelada. Só faltou terminar com uma legenda dizendo algo idiota como, ‘qualquer semelhança com a vida real é pura coincidência’. Nada seria mais adequado para a situação em questão.

A campainha toca. O porteiro do prédio avisa que a senhora Paloma havia chegado. Ele pede para ela subir. ‘Paloma, Paloma... Como ela será?’, se indagou enquanto o já conhecido barulho do elevador revelava seu movimento. Segundos que separam. Havia escolhido Paloma por causa do seu nome exótico embora nem um pouco vulgar, afinal, todas as garotas dos anúncios sempre se descrevem como máquinas perfeitas, preparadas para te fornecer o grau máximo de prazer que você jamais desfrutou até então em sua vida. Talvez fosse mais apropriado o procedimento oposto, ou seja, escolher pelo nome que lhe parecesse o mais vulgar mais objetificado possível - alguma Shirley, Sheila ou com um apelido que terminasse em com algum Fogosoinha da vida. Mas mesmo tentando se livrar das reminiscências do romantismo, este ainda estava lá dentro dele, dando o ar de sua (des)graça nos pequenos detalhes. O elevador havia parado no térreo. Não havia mais volta. E no intervalo entre a subida de Paloma e o aguardado encontro, ele pensava em seus ‘belos’ princípios, na ilusão de jamais ter de recorrer a este tipo de solução, no próprio medo de colocar tudo a perder e se apaixonar por uma puta. ‘É o cúmulo!, ele dizia mentalmente enquanto o ridículo do seu sonho lhe vinha a tona. Afinal de contas, a questão era de outra natureza: sanar aquele insuportável frio. Tudo o mais já havia sido feito e diante desse quadro a única alternativa restante era buscar pelo chamado fogo de atrito, tão caro a tradição mágica. Uma questão puramente de carne, de troca de temperaturas e não de palavras e sentidos. Uma transação dupla, carnal e econômica, uma celebração do mercado. E se por ventura caísse na bobeira de tentar fazer a síntese com um estimulante ‘diz que me ama’, muito provavelmente ouviria como resposta a frase de amor mais sincera de toda a humanidade com uma crueza que o deixaria totalmente abalado: ‘aí é mais caro’. ‘O amor é só um preço’, constatou enquanto o elevador estacionava no seu andar.

Atrás da porta ele ouve os passos de um salto a procura do número correto. O último suspiro antes de Paloma. Ela toca a campainha, e, apesar de hesitar ele prontamente, numa reação puramente mecânica, abre a porta. ‘Olá, eu sou a Paloma’, identifica-se. Ele se apresenta e observa os traços de Paloma. Uma morena dos cabelos pretos que trajava um vestido igualmente preto até a altura do joelho, com um decote contido e uma maquiagem discreta. Não era exatamente uma Brastemp, embora para ele fosse até mais do que isso. Tinha um corpo que nada fazia alusão àquela perfeição maquínica, mas que por outro lado em nenhum momento o desapontara, muito pelo contrário, até porque ele jamais achara graça no que era perfeito. Embora não fosse uma pessoa gorda, estava um pouco acima de seu peso ideal e isso acabava, no fim das contas, sendo um ponto positivo aos olhos dele. Afinal, o que ele queria acima de tudo, era carne – um corpo e só. Tinha os peitos de um tamanho razoável, nem muito pequenos, nem exageradamente grandes – pelo menos quando amparados pelo vestido - e seu rosto era uma incógnita porque causava nele um misto de atração e repulsa, sem que se soubesse o porquê disso. Ah sim, como não poderia passar despercebido, o primeiro lugar que ele olhou mais detidamente, antes mesmo de se fixar no rosto de Paloma, foram seus pés. Sim, os pés, parte esta de suma importância erótica para ele. Ainda que ela não tivesse os pés de seus sonhos, não eram feios, estavam bem cuidados e as suas unhas haviam sido pintadas de preto, fato que saltou aos olhos dele. Uma curiosidade pouco relevante, apenas.

Após adentrar ao recinto, já por volta das 8 horas de uma manhã de sábado, Paloma foi direto ao assunto e disse: ‘Embora não seja a maneira mais romântica de começar, eu costumo acertar tudo antes porque, sabe como é, eu já fui passada para trás algumas vezes e não quero ficar no prejuízo’. Diferentemente do que ela acreditava, ele achou ótimo que as coisas realmente começassem desse jeito, até porque já fixava de uma vez por todas as bases contratuais do acordo e isso estabelecia os limites que aquela relação teria. Efetuado o pagamento e combinadas as condições – duração, posições e o escambau – começou propriamente o jogo. Ele foi logo para cima, sem nenhuma palavra anterior, o que estranhou Paloma: ‘mas você não prefere conversar antes, para criar um clima?’. Ele não se conteve eu soltou uma gargalhada espirituosa depois de ouvir tais palavras, pois na mesma hora se lembrou de um filme de Woody Allen em que a garota de programa em questão havia proferido similar idéia. Paloma sem entender a reação dele ficou claramente sem graça. Ele até pensou em explicar, ele até pensou em contar o inusitado da situação e dizer que pelos mesmos motivos do personagem de Woody Allen, sua resposta era negativa. Mas limitou-se apenas a dizer não, afinal, dizer sim, explicar, era arriscar criar uma cumplicidade e se abrir, criar um passado, tocar em feridas profundas e aumentar o risco de uma pneumonia que aquela ação procurava a todo custo sanar. Por outro lado, um pouco arrependido, ele pensou que talvez fosse Paloma, enquanto uma garota de programa, a pessoa mais adequada do mundo para que ele realmente pudesse dizer aquilo tudo que o afligia. Afinal de contas, uma pessoa que, segundo ele, cometia uma violência tão grande contra si mesma e contra os sonhos e ideais puritanos de uma sociedade completamente moralista ao ter de se prostituir para garantir o pão de cada dia talvez tivesse conhecimento de sobra para emitir uma opinião sobre o amor que não fosse tão leviana ou conveniente. Oras, ali, por bem ou por mal, mesmo que ainda contivesse em si alguma chama de um futuro diferente, de uma realização amorosa, Paloma sabia que diante dele ela não era uma mulher, ela não tinha escolhas, vontades, grandes liberdades – fora aquelas estabelecidas por aquele contrato tácito. Ela era apenas um objeto, um brinquedinho que seria dele por duas horas para que se satisfizesse a seu bel prazer. Pouco importava se ele a excitasse, se preocupasse em saber como ela estava se sentindo, se havia alguma dor, se ela tinha problemas ou o que esperava de sua vida, do futuro, se tinha medos e angústias, se acreditava em outra vida após a morte, se ela se sentia solitária. Essa era exatamente a grande vantagem: dois desconhecidos unidos por uma intimidade comprada, monetariamente comprada e esfregada, como quem diz, ‘me dá o meu prazer e me ofereça o calor que eu preciso, porque eu to te pagando, porra, e cala a sua boca porque a única coisa que eu quero é te comer’. O ‘amor’ ali era apenas um estímulo, parte do pacote das duas horas. Uma verdadeira apologia ao descartável destituída da hipocrisia de para sempre. Sem desculpas, sem consolos, sem justificativas. Puro e simples do desejo de possuir – e, para alguns, de subjugar – outro ser humano, outro corpo e satisfazer o instinto, colocar pra fora toda aquela porra guardada não só na bolsa escrotal mas dentro do cérebro e tentar atingir algum estado, mesmo que totalmente efêmero, de realização interior. Eliminam-se problemas como conquista e auto-estima da jogada porque seja ele feio, desprezível, sujo, há o dinheiro. Inconscientemente aquele acordo assumia a solidão como condição inequívoca de ambas as faces da moeda. O que ele haveria dentro dele não importaria a ela, assim como ele não se importaria com o que se passava dentro da mente de Paloma. Carne.

Não obstante a todas as benesses e vantagens da transação, ele não agüentou e voltou atrás. Primeiro, fez questão de explicar a Paloma o porque de sua reação tão inesperada, para que ela não se sentisse deslocada: ‘não sei se você já ouviu falar ou sabe quem é Woody Allen e a verdade é que saber que se trata de um cineasta, de um ator, pouco vai alterar a ordem do mundo e principalmente da sua vida. Quando eu dei risada, eu não o fiz para tentar te ofender, ou qualquer coisa do tipo, mas porque me lembrei de uma cena engraçada de um filme dele, cena esta que se repetiu aqui entre nós dois. O personagem do Woody Allen tinha contratado uma garota de programa e quando ela chegou na sua casa, se espantou com o fato de que ele não quisesse conversa e preferisse ir direto aos finalmentes. Quando eu disse não naquele primeiro momento, o fiz pelo mesmo motivo do personagem, afinal, eu estou pagando justamente para não ter a obrigação de te conquistar, de falar coisas que você queira escutar, de não reviver aquelas coincidências para as quais inevitavelmente sempre acaba por querer encontrar um sentido oculto, ou - e talvez no meu caso o motivo principal - de não ter que me expor e dizer nada sobre mim, porque eu sei o quanto isso pode ser complicado e perigoso. Em suma, eu não quero sua cumplicidade, não quero seu amor, mas apenas eliminar o frio que sinto’.

Pronto, a cilada estava armada. In principium erat verbum. Com esta preocupação tola por parte dele diante da expressão desconfortável de Paloma, a situação começava a ser inverter, afinal, eles haviam entrado no maravilhoso reino das palavras, onde tudo inevitavelmente se perde uma hora. Como um bebum que finalmente encontra alguém para ouvir suas idéias desconexas, disparou-se a falar contra o falar: ‘O que eu queria evitar é justamente o que sem querer eu começo a fazer agora, explicar, situar, mostrar, porque se tratam de atitudes verdadeiramente idiotas, mesmo idealmente sendo bonitas e louváveis, mas que só servem para, num momento posterior, serem mal interpretadas e se voltarem contra nós mesmos. O passado de cada um, aos olhos alheios, é sempre uma pedra disfarçada de rosas. Muito provavelmente uma moça como você já se apaixonou e viveu algum relacionamento que, tempos depois ruiu. Eu te pergunto, então, como começa essa história’?

Pega de surpresa com a situação, Paloma timidamente respondeu: ‘Ah, o começo é sempre um conto de fadas’. Aproveitando o ensejo, ele emendou: ‘Sempre fica aquele clima de cordialidade, de compreensão, do eu te aceito como você é, de um reconhecimento tão amplo que só pode ser fruto de um destino, não é mesmo? Mas eu te pergunto novamente, e depois?’. Paloma sem saber o que responder, como quem não quer dizer o que se sabe ser verdadeiro, com sua expressão reticente silencia-se e ele, então, mais uma vez retoma a palavra: ‘Pois é, você disse tudo Paloma. Foi por causa de um frio intenso, num acesso de certa maneira disparatado – para não dizer desesperado -, que eu encontrei seu nome no anúncio daquele jornal ali e resolvi te ligar. Foi justamente para não ter que ficar nu novamente que eu quis essa pseudo-nudez que ligaria nossos corpos. Foi justamente para não ter que te fazer nenhuma pergunta, para não ter que lhe dirigir nenhuma palavra que eu te chamei aqui. Sabe, foi pra não me importar se você acha o meu jeito estranho, minha fala muito formal, se me acha bonito ou feio que eu te chamei aqui. Diferentemente do que eu sempre acreditei, eu quis fazer sexo com você exatamente pelo motivo oposto que me fazia querer fazer sexo com alguém – ou no caso, um romântico fazer amor – ou seja, para não criar nenhum tipo de vínculo ou apego. Em nenhum grau. Você no seu canto, eu no meu, porque ao contrário do que muitos pensam, longe de ser a solução é esta exatamente a raiz dos problemas. Afinal de contas, o que é o amor se não uma desculpa cuidadosamente forjada para purificar o sexo? No fim das contas, Schopenhauer – outro que não vale a pena você conhecer – estava certo, somos apenas animais, filhos da mesma natureza contra a qual a todo custo, por conta de nossa grande presunção em saber falar, tentamos negar. Ninguém está disposto a entender ninguém, faz apenas parte do ritual de purificação. Satisfeito o instinto, as palavras voam no ar. Pense em você. Imagino que durante o tempo que você está nesta vida não foram poucas as vezes em que algum cliente mais assíduo cultivou em uma menina tão bonita quanto você a esperança de viver um amor, de uma vida supostamente respeitável com um daqueles futuros cor-de-rosa, não?’. Ainda refletindo sobre as últimas palavras dele, Paloma respondeu confirmando com a cabeça. ‘Mas quantos realmente cumpriram? Quantos estiveram realmente dispostos a te entender e respeitar sem preconceitos, sem pré-condenações? Quantos quiseram fazer dessa grande aventura uma outra ainda maior com você ao lado? Quantos largaram suas famílias para estar ao seu lado? Quantos vieram ao seu encontro quando você mais precisava? Quantos se dispuseram a conversar com você, a te amar verdadeiramente para além do êxtase momentâneo de uma trepada? Quantos sabem, ou melhor, quantos quiseram ao menos saber do universo que existe dentro dos limites da sua pele? Quantos deles se lembram do seu aniversário? Você tá no auge da sua forma física, na plenitude da sua sexualidade. E quando eu digo isso, não quero minimizar nem desprezar o seu trabalho, porque foi o jeito que você Paloma encontrou para se manter viva e isso é mais do que legitimo. Por outro lado, é apenas – e ao mesmo tempo, tudo – sexo. Findado o coito, não raramente o mal estar metafísico se apossa da mente dos seus clientes-pretendentes, que correm o mais depressa possível para longe de você e levam junto com eles todo o amor e os sonhos – até que surja a próxima necessidade. Bem aquela coisa da novela das oito. E como você se sente quando se vê novamente obrigada a esperar?”.

Eis que então, inesperadamente Paloma sem pestanejar o desconcerta: ‘eu me sinto com frio’. Novamente ele ri e novamente Paloma se sente sem jeito diante de daquela reação: ‘não fique assim, garota, porque eu não estou rindo de você. É que sem se dar conta, do alto de toda a sua sabedoria você resolveu um quebra-cabeças que me atormentava há um bocado de tempo. Pode parecer até uma brincadeira, mas eu te garanto que não é. Algumas horas antes que eu resolvesse te ligar, fui acometido subitamente por um imenso e inexplicável frio. Fiz tudo quanto foi possível para me aquecer: verifiquei as janelas, fechei as portas, vesti esta roupa com que agora você me vê, fechei todos os meus livros, bebi quase toda essa cachaça que estava naquela garrafa ali, queimei algumas memórias, tudo isso querendo compreender de onde vinha essa friagem. Nesse momento desisti de procurar pela origem de todo daquele gelo e resolvi apenas tentar encontrar um meio de me esquentar, mas esquentar de verdade: você. De repente, sem mais nem menos a situação é subvertida, pois ao quebrar o protocolo a senhorita me pega no contrapé e me coloca bem diante da resposta que eu procurava e não conseguia encontrar, talvez por estar tão incrustada a minha própria face. Nem calor, nem uma solução para o frio, apesar da descoberta. Por acaso você teria algum tipo de solução para essa situação’? Paloma sentada no pequeno sofá da sala olha bem fundo nos olhos dele e diz: ‘Infelizmente não tem solução. É aquela coisa do tempo passar, de se criar novas necessidades que tentem mascarar a ordem natural das coisas. Todo mundo sempre diz coisas bonitas nesses momentos, não é? Tipo, ‘é só uma fase’, ‘vai passar’, quando não, ‘você gosta de sofrer’, ‘você também não se esforça’. Mas é difícil quando não se vê pela frente um futuro. Não tem nada a ver apenas com extravasar, com tirar os pés do chão e pendurá-los no céu. Não é isso. Você disse das promessas e isso realmente acontece. E parece fácil olharem para mim como um bichinho para quem se faz um monte de promessas tentadoras, como se eu fosse totalmente passiva, como se eu fosse uma vítima. Eu talvez, diferentemente do que você pensa, até podia ter cedido facilmente a tentação de um ou outro galanteador. Mas que tipo de liberdade eu conseguiria ter dentro dessa relação? Oras, o meu passado das ruas estaria a todo momento como uma vitrine, esperando pelo primeiro vacilo, você percebe? Eu já comecei muitos contos de fada e já sei muito bem como eles terminam. Quando você coloca essa sua mágoa toda, eu realmente entendo não como quem diz ‘ah, eu te entendo’. Você já reparou que tudo mundo nos entende e contraditoriamente não entende lhufas? Falam as coisas de maneira automática, como quem acende a luz quando entra na sala. É tudo sempre muito banal quando não os afeta de maneira direta. Por isso, eu jamais poderia te dar uma solução sendo que eu também padeço de problemas parecidos. Não é porque eu sou uma garota de programa que eu não tenho uma vida, que eu não passo por dificuldades nesse campo sentimental. Para além do meu corpo, há também uma alma que tem necessidades, embora isso nem sempre pareça claro para quem está de fora. Mas também não sou mais ingênua a ponto de acreditar em príncipes encantados, em caminhos prontos. O meu trabalho é também a minha condição de liberdade, já que eu não consigo mais confiar em ninguém’. Desta vez quem ficou em reticente foi ele. O silêncio no ambiente não os incomodava. Era uma circunstância necessária. Depois de alguns minutos, Paloma retomou novamente a palavra: ‘agora eu inverto a sua questão e te pergunto: quantas vezes você se dispôs a acreditar, entender, se preocupar, quero dizer, amar verdadeiramente outra pessoa? Ou seja, o que você sente como sendo amor? O que há de tão célebre assim no amor que justifique algum empenho?’. Ele se surpreende com as indagações porque eram estas justamente as mesmas que ele queria fazer a Paloma pouco antes dela ter lhe dado a resposta de seu enigma. Porque se parecia cômodo colocar tais questionamentos a ela, por outro lado, a tarefa de responder a estas perguntas parecia-lhe um bocado espinhosa: ‘o problema, Paloma, é que colocando desta maneira você toca justamente a questão mais profunda, qual seja, tentar definir o que é amor. O que te faz amar alguém, se apaixonar por alguém? É muito difícil precisar isso, quero dizer, saber em que medida você ama outra pessoa, ou ama a si mesmo, ou ama apenas uma imagem que tem da outra pessoa, ou apenas se força a amar alguém. Muitas vezes quando você olha para alguém que você diz já ter amado e reconhece em momentos distintos da sua ligação com essa pessoa que você já conseguiu enxergar todas essas possibilidades que eu acabei de mencionar. O passado é sempre uma massinha de modelar. Saber o exato momento em que se apaixona por alguém é tarefa muito escabrosa, até porque, independente de qualquer possibilidade, o amor é sempre e inevitavelmente uma idéia. Diante disso, a dificuldade maior é saber de que maneira esta idéia te afeta os sentidos. Digo, suponhamos que você conhece uma pessoa e passa um tempo ao lado dela. Chega a ser hilário como é freqüente aquele encontro nem ser tão prazeroso, mas diante das suas demandas você procurar de todas as maneiras possíveis senti-lo como ótimo apenas e tão somente para ter a certeza de não estar sozinho no mundo. Isso já aconteceu comigo algumas vezes. Por outro lado, também é muito freqüente você sentir tão bem ao lado de uma pessoa a ponto de sequer se dar conta disso, do prazer, da necessidade de se ter prazer. Aquela coisa do amor muitas vezes não ser algo exatamente consciente, perceptível. Dessa maneira, eu acho que o amor é sempre uma aposta. Você tem que assumir o amor e ver no que vai dar, porque no fim das contas ninguém sabe quem é ele, como se manifesta, sequer se realmente existe. Em todo caso, é preciso dar a cara a tapa – e se preparar muito para apanhar, justo por causa de tudo isso que a gente falou, das incompreensões, da conveniência. A vontade de mostrar para o outro que existe algo dentro de você sempre é algo problemático porque, por mais que a grande maioria das pessoas queira amar e diga querer ser amada, a verdade é que no fim das contas esta mesma maioria tem medo desse amor e não raramente vive criando subterfúgios. Ou seja, querem e não querem ser amadas ao mesmo tempo, tem medo de se entregarem e de dizerem o que realmente sentem. Admitir que se gosta, se entregar é sempre assumir um risco. E assumir um risco é também a possibilidade de se quebrar ao meio, porque cada contato que mexe com o que há dentro da gente, mas que mexe verdadeiramente deixa raízes. E por vezes é muito mais fácil terminar isso antes mesmo de começar do que quando se sabe que não terá mais o controle da situação em suas mãos. Daí muitas vezes esses rótulos idiotas: mas ele é muito obsessivo, como se o fato de ser passional fosse um grande engano, como se a gente não pudesse mostrar e dizer o que se sente sob pena de ser desclassificado de antemão. Daí é mais fácil a nudez do sexo, que não exige nenhum tipo de abertura, nenhum vinculo, nenhum entendimento. Daí a preferência pela superfície em detrimento daqueles canais do subterrâneo. O importante é estar no controle, quando o ideal seria justamente o oposto. Ninguém quer pular na piscina porque realmente não há nenhum interesse em compartilhar e eu sempre vi o amor como a possibilidade mais bonita de partilha: uma troca mútua. É aquela coisa tola de querer ser amado sim, de se sentir aquela euforia gostosa e justamente por conta disso fazer o seu máximo para que o outro também sinta dentro de si toda a beleza que lhe proporciona. Daí a necessidade de um entendimento mínimo, ou mais do que isso, de uma vontade de se entender. E o amor tem a ver muito com esse esforço. A gente percebe quando há um esforço e é isso que nos faz sentir bem: a atenção. Mais até do que um entendimento perfeito, o esforço em entender. Só que na grande maioria dos casos, isso é apenas um jogo feito para impressionar, para estabelecer controle e nada mais. Essa é a grande dificuldade: será que existe algo fora do jogo da conquista? Encontrar uma pessoa assim é uma tarefa difícil, eu hoje diria impossível. Eu tento fazer a minha parte de acordo com as minhas limitações. Só que cada ação sempre pode ser lida de inúmeras maneiras possíveis. Ou seja, o princípio que norteia a conduta de qualquer pessoa é um só, rigidamente flexível, a velha lei da conveniência. Acho que esta é a minha grande birra, quero dizer, é muito difícil encontrar alguém disposto a sair de dentro de si mesmo, de se reconhecer verdadeiramente humano, imperfeito. O amor, para mim, seria a porta de saída, a possibilidade de momentos agradáveis diante da transitoriedade de uma existência. Só que eu não tenho muita certeza de que esta porta realmente exista.’ Paloma apenas assentiu com a cabeça, olhou para o relógio e percebeu que aquele papo já havia ultrapassado em quarenta minutos as duas horas combinadas pelo programa. Como não havia acontecido nada do combinado e sem a possibilidade de qualquer tipo de clima que fosse capaz de encadear alguma ação mais íntima, Paloma disse a ele que ficasse com o dinheiro, repassando-a apenas um pequeno valor estimado para o táxi. Ele, no entanto, se negou a aceitar o dinheiro de volta alegando que durante aquele período alguém eventualmente poderia ter solicitado o tempo dela e que, portanto, não era justo deixar de pagar por um período que ele efetivamente utilizou. Diante disso, levou Paloma até a porta de seu apartamento e quando logo depois de se despedirem com um tímido abraço, ela deixou escapar uma pequena frase antes de tomar o elevador: 'toda cura é provisória. Não se esqueça disso'.

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