terça-feira, 9 de setembro de 2008

Soneto.

Acordou em estado de encantamento. Noutra cidade, ainda mais ao norte, para onde fugira depois daquele beijo. Só que quase não conseguia mais olhar para fora. Como antigamente, como quando fazia parte da roda, como quando estava realmente vivo — mas se porra ainda não morri caralho, quase gritava. E talvez não fosse tarde demais, afinal, pois começou desesperadamente outra vez a ter essa coisa sôfrega: a esperança. Como se não bastasse, veio também o desejo. Desejo sangrento de bicho vivo pela carne de Outro bicho vivo também. Sossega, dizia insone, abusando de lexotans, duchas mornas, shiatsus. Esquece, renuncia, baby: esses quindins já não para o teu bico, meu pimpolho... Meio fingindo que não, pela primeira vez desde agosto olhou-se disfarçado no espelho do hail do hotel. As marcas tinham desaparecido. Um tanto magro, bíên-sure, considerou, mas pas grave, mon chér. Twiggy, afinal, Iggy Pop, Verushka (onde andaria?), Tony Perkins — não, Tony Perkins melhor não — enumerou, ele era meio sixties. Enfim, quem não soubesse jamais diria, você não acha, meu bem? Mas o outro sabia. E por dentro do encantamento, da esperança e do desejo, entremeado começou a ter pena do outro, mas isso não era justo, e tentou o ódio. Ódio experimental, claro, pois embora do bem, ele tinha Ogum de lança em riste na frente. Aos berros no chuveiro: se você sabe seu veado o que pretende afinal com tanta sedução? Sai de mim, me deixa em paz, você arruinou a minha vida. Começou a cantar uma velha canção de Nara Leão que sempre o fazia chorar, desta vez mais que sempre, por que desceste ao meu porão sombrio, por que me descobriste no abandono, por que não me deixaste adormecido? Mas faltava água na cidade de lá, e ensaboado e seco ele parou de cantar.

(Depois de Agosto, Caio Fernando Abreu)

Nenhum comentário: