sábado, 9 de fevereiro de 2008

Que Nossos Fracassos Nos Façam Mais Jovens.

Eu levei anos procurando um amigo como você
Amigo desonesto, infiel e que nunca vê
O que você precisa e as coisas que você quer

Uma pessoa indiferente que sorte a gente ter
Amigo como esse que some pra te esquecer
Anos procurando um amigo como você

Pra me reconhecer, me identificar
Pra compartilhar a vida
Pra ter o que conversar
Pra me fazer entender

Eu levei anos procurando uma moça como você
Sombria e desonesta que mente pra se vender
Sem um pingo de beleza na alma pra enaltecer

Uma pessoa inconseqüente que sorte a gente ter
Parceira como essa que dorme pra não te ver
Anos procurando uma moça como você

Pra me reconhecer, me identificar
Pra chamar de alma gêmea
Pra ter o que conversar
Pra me fazer entender

(A Busca, Violins)

Não é a toa que o Beto Cupertino é, para mim, provavelmente o melhor letrista do rock nacional de todos os tempos. Digo isso porque ele escolheu seguir por um caminho completamente avesso aos grandes letristas: ele prefere jogar na cara, escarrar cenas da vida cotidiana e pensamento que muitos gostariam de deixar guardado debaixo do tapete. E eu não me refiro apenas as letras do excelente Tribunal Surdo, em que essa tendencia é levada as últimas consequencias. Desde o primeiro disco, Aurora Prisma, o mais lírico do Violins, o Beto já mostrava a sua preferencia por temáticas difíceis. Pais é realmente um soco no estômago:

Peça tudo o que eu posso
Tudo e eu faço
Vestir-me um palhaço e fazer seus filhos rirem
Enquanto você injeta sonhos no braço
E volta distante, os olhos no espaço.
Corta-me.
(Pais)


Num mundo em que os temas românticos predominam na chamada cultura de massa, declarações tão cínicas certamente soarão agressivas a muitos. Ninguém gosta de escutar àquela verdade que lhe incomoda a consciência. É sempre costumeira nossa tendencia a transferirmos a responsabilidade das nossas ações a terceiros; a nos eximirmos de nossa culpa (quando de fato a temos, embora eu não goste muito da idéia de culpa); a julgarmos os que estão a nossa volta sem sequer olhar para o que a gente costuma fazer (e invariavelmente cometemos os mesmos erros das pessoas a quem ousamos criticar); a manipularmos o coração das pessoas que vivem conosco; a maldizermos, a termos inveja das pessoas ao nosso redor. Como admitir que as músicas falem desses temas tão fortes?

Pode ser que eu não me convença ao ver você morrer
Que eu não veja paz em ver você sorrir
Mas quando você chora eu posso ser melhor por ser feliz
(Atriz)

Você é bacharel em cometer todos os insultos
(Modus Operandi)

Eu vejo um ar de sensatez
Na comoção de quem te quer morto
Linchado com pau e pedra
Exposto na praça em pele
Mas se alguém notar que cometeu
Um ato vil ao te assassinar
Verá que o mal é um dom
De que todos se armam

Mas eu te perdôo afinal somos mais de cem
E quem não tem um segredo podre
Pra esconder como um animal
Eu sempre amo alguém que nem conheço
Assim tão bem
E nem convém conhecer alguém até o final

Você é um exemplar do fundo do poço
Mas eu amo o mal
(Exemplar do Fundo do Poço)

E é justamente esse o grande mérito do Beto. As suas letras chocam porque falam de temas tabus em nossa sociedade. Dia desses conversando com o Daniel lhe passei a canção Modus Operandi e ele me disse que essa música havia lhe causado um certo mal estar. De fato talvez seja justamente sentir esse mal estar a função da arte, sentir um incômodo que nos faça pensar, que não nos deixe conformar, que nos faça enxergar a humanidade da qual somos feito, humanidade essa que nem sempre é limpa.

Quando eu me deparei com a letra da primeira faixa do álbum A Redenção dos Corpos admito que chorei. Porque vieram a minha cabeça na hora a imagem duas pessoas muito importantes as quais conheci recentemente. Uma letra simples, tocante, sincera e autêntica. Eu sempre gostei da ambivalência de sentimentos que os personagens das letras do Beto expressam em suas falas. Não há pudor em dizer que você odeia justamente a pessoa que ama, que se decepciona com as ações de outrem, em falar sobre frustrações, despesperanças, orgulho; em admtir que possuimos angúsia, desejo, compaixão e até mesmo aquele amor ingênuo.

Pena que nada disso importa
Porque eu quero ser o homem que você deseja
Quando toma banho
Ou quando se masturba
Eu quero ser o corpo que você almeja
Quando está com fome
Ou quando está insone
Foda-se o que eu sei
E o que eu te ensinei
(Gênio Incompreendido)

Você sempre foi o ódio perfeito o ódio vil
O ódio por ter sempre estado bem (...)
E a culpa é minha mas eu não peço perdão
(Células Tronco)

Você se parece com meus pais
Pronta pra partir meu crânio em dois
E pronta também pra me ensinar
Que proibir é incentivar
(Elvis Presley)

Quis sentir outra vez o temporal em meu corpo
E correr com os pés encharcados de lama
Pelo seu coração
Você me diz que o tempo te faz me amar e esquecer os outros
E a morte te faz pensar em viver de novo
(Ocidente/Oriente)

Mas é em você que eu vou encostar
Que eu já cansei de investigar
E acha só um absurdo
Ter que ficar mudo
Quando alguém vem me criticar
Eu devo me livrar de você
E enfrentar de vez o mundo.
Isso sim é absurdo
(Absurdo)

Outra preocupação importante expressa nas letras do Beto diz respeito a dicotomia religiosidade/religião. Livre de falsos moralismos ela acaba, em minha leitura, propondo a unidade entre o profano e o sagrado. Ao mesmo tempo que evoca um olhar metáfisico, ele acaba por oferecer um caráter humano sobre esse mesmo sagrado numa abordagem extremamente tocante. E é justamente nessa despretensão que há um grande caráter político em suas composições, tomando a idéia do político como algo cotidiano.

Tente permanecer vivo presos aos impulsos dos seus próprios pés,
da sua própria fé
É tão incrível quão tolos são
Pretensos juízes do seu coração (...)
Ninguém controla o mundo
O inferno é só um espantalho para as pessoas
que protega o gatuno do tribunal surdo
(Manobrista de Homens)

Deus, você pode ver, eu nunca fui o filho que você quis.
(Deus Você)

É justa a pretensão de quem vem me dizer que no além há respostas para tudo?
Nenhuma dessas regras são respostas
Não neguem o mundo que está aqui
Esse é o mundo que eu vi
(Epitemeu)

Provavelmente será justamente a audácia do Beto, enquanto compositor, o seu próprio fardo. Afinal ser sublime não significa necessariamente ser reconhecido em seu tempo. De qualquer maneira, fica aqui registrada minha enorme admiração e os meus agrdecimentos por você, Beto, ter ajudado, sem saber, a salvar a minha vida. Os meus fracassos com certeza me fazem mais jovem.


Eu já falei mais do que devia me expressar
Sempre foi um fardo tão pesado te querer

(Palhaçada)

É um prazer ser seu soldado errante
(Soldado Errante)

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