sábado, 13 de junho de 2009

A Odisséia do Rancor (4).

O conhecimento arruína o amor: à medida que desvendamos nossos próprios segredos detestamos nossos semelhantes, precisamente porque se assemelham a nós. Quando já não se tem ilusões sobre si mesmo, também não se tem sobre os outros; o inominável, que se descobre por introspecção, estende-se, por uma generalização legítima, ao resto dos mortais; depravados em sua essência, não nos equivocamos ao atribuir-lhes todos os vícios. Curiosamente, a maioria dos mortais se revelam inaptos ou renitentes a detectar os vícios, a constatá-los em si mesmos ou nos outros. É fácil fazer o mal: todo mundo consegue; assumi-lo explicitamente, reconhecer sua inexorável realidade é, por outro lado, uma proeza insólita. Na prática, qualquer um pode rivalizar com o diabo; na teoria não ocorre o mesmo. Cometer horrores e conceber o horror são dois atos irredutíveis um ao outro: não há nada em comum entre o cinismo vivido e o cinismo abstrato. Desconfiemos dos que aderem a uma filosofia tranqüilizadora, dos que crêem no Bem e o erigem em ídolo; não teriam chegado a isso se, debruçados honestamente sobre si mesmos, tivessem sondado suas profundezas ou seus miasmas; mas aqueles poucos que tiveram a indiscrição ou a infelicidade de mergulhar até as profundezas de seu ser, conhecem bem o que é o homem: não poderão mais amá-lo, pois não amam mais a si próprios, embora continuem - e esse é seu castigo - mais apegados a seu eu do que antes...

Para que pudéssemos conservar a fé em nós e nos outros, e para que não percebêssemos o caráter ilusório, a nulidade de todo ato, a natureza nos fez opacos a nós mesmos, sujeitos a uma cegueira que gera o mundo e o governa. Se realizássemos uma investigação exaustiva sobre nós mesmos, o nojo nos paralisaria e nos condenaria a uma existência sem proveito. A incompatibilidade entre o ato e o conhecimento de si mesmo parece ter escapado a Sócrates; sem isto, na sua qualidade de pedagogo, de cúmplice do homem, teria ousado adotar o lema do oráculo com todos os abismos de renúncia que supõe e aos quais nos convida?

(História e Utopia, Emil Cioran)

3 comentários:

Anônimo disse...

'Viver é combater fantasmas na mente e no coração. Escrever (fazer poesia) é julgar a si próprio.'

12 de Junho de 2009 14:57

Anônimo disse...

Muiiiiiiiiito bom esse texto ...
Alguém já soube de uma verdade que seja edificadora ? Tudo que se aproxima da verdade tem que ser destruidor ...

Roubei pra mandar pra minha lista ..

( uma sombra passou por aqui )

Anônimo disse...

é isso!

abs