quarta-feira, 10 de junho de 2009

A Odisséia do Rancor.

Criar é legar seus sofrimentos, é querer que os outros mergulhem nele e os assumam, impregnem-se deles e os revivam. Isso é verdade para um poema e pode ser verdade para o cosmos. Sem a hipótese de um deus febril, obcecado, sujeito a convulsões, embriagado de epilepsia, não poderíamos explicar este universo que em tudo traz as marcas de uma baba original. E adivinhamos a essência desse deus quando nós mesmos experimentamos um tremor semelhante ao que ele deve ter sentido nos momentos em que lutava contra o caos. Pensemos nele com tudo o que em nós é contrário à forma ou ao bom senso; nos aproximamos dele através de súplicas que nos deslocam, pois ele fica próximo de nós toda vez que algo, em nós, se rompe e que, à nossa maneira, também enfrentamos o caos. Teologia sumária? Contemplando esta criação sabotada, como não incriminar seu autor? Como, sobretudo, julgá-lo hábil ou simplesmente destro? Qualquer outro deus teria dado provas de maior competência ou equilíbrio do que ele: para onde quer que se olhe, só existe erro e confusão. É impossível não absolvê-lo, mas também é impossível não compreendê-lo. E nós o compreendemos por tudo o que em nós é fragmentário, inacabado, malfeito. Sua empresa carrega os estigmas do provisório, e, no entanto, não foi o tempo que lhe faltou para realizá-la bem. Para nossa desgraça, ele foi inexplicavelmente apressado. Por uma ingratidão legítima, e para que sinta o nosso mau humor, nos esforçamos – peritos em anti-Criação – para deteriorar seu edifício, para tornar ainda mais miserável uma obra já comprometida desde seu início. Sem dúvida seria mais sensato e mais elegante não tocar nela, deixá-la tal e qual, não vingar-nos nela da incapacidade de seu Criador; mas como ele nos transmitiu seus defeitos, não temos por que termos consideração com Ele. Se, em última instância, O preferimos aos homens, isso não O coloca a salvo de nossos maus humores. Talvez só tenhamos concebido Deus para justificar e regenerar nossas revoltas, para dar-lhes um objeto digno, para impedir que se extenuem e se aviltem, realçando-as pelo abuso revigorante do sacrilégio, réplica às seduções e aos argumentos dos desânimos. Jamais nos desembaraçaremos de Deus. Tratá-Lo de igual para igual, como inimigo, é uma impertinência que fortifica, que estimula, e são dignos de lástima aqueles a quem Ele não irrita mais. Que sorte, em compensação, poder – sem cerimônia – responsabilizá-Lo por todas as nossas misérias, humilhá-Lo e injuriá-Lo, não perdoá-Lo em momento algum, nem sequer em nossas orações!

Segundo o testemunho dos livros sagrados, também Ele sente rancor, cujo monopólio não possuímos, pois a solidão, por mais absoluta que seja, não preserva este sentimento. Que mesmo para um deus não seja bom estar só, isto significa: criamos o mundo para ter quem atacar, em quem exercitar nossa verve e nossas afrontas.

(História e Utopia, Emil Cioran)

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