domingo, 11 de maio de 2008

Um tiro na alma.

- Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualquer atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? Por isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que eu dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente e nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas as coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai ......... ............ ............. ............ .......... ........... ............. ............ ............ ............ ......... ........... ............ ............ sim, eu sei, eu vou escrever, não eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as botas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.

(Para uma avenca partindo, Caio Fernando Abreu)

4 comentários:

Anônimo disse...

oi,Guilherme!
mil perdões pelo
erro de endereço.
De qq forma, vc
não seria mesmo meu príncipe,
a pessoa com quem te confundi tá mais pra uma mistura de principe-sapo-anti/herói...

olha,
tem um texto que
acho que vc ia gostar
de ler, apesar de parecer
um lance amargo e sem
esperanças. É uma novela,
se chama 'Nome Falso', do
argentino Ricardo Piglia.
Dentro dela tem um conto,
de um cara chamado Roberto Arlt
(talvez vc conheça)
É algo como uma conversa,
num quarto de hotel,
entre um anarquista e uma
prostituta!
Bonito e triste, como
esses textos que vc parece
apreciar tanto quanto eu!

confere e se gostar (ou não)
me conta. Eu mesma não sei com
certeza o q acho do conto (sou uma mulher de poucas certezas!), que se
chama LUBA. Um abração, vou
passar sempre por aqui.
Mas continuo não gostando
de emails! coisa de velhinha...
Estou te falando do conto sem
pensar, sem programar, sem
calcular nada. Queria que ele
nos aproximasse (parece que podemos mesmo ser amigos), mas é possível que seja só uma parede a mais. É assim com o que se escreve, com o que se fala, nessa nossa ineficiência, nessa pressa, nesse impulso de comunicar. Diferente do que se sonha ou vivencia, geralmente processos mais diretos, mais lentos, que pedem paciência, confiança mútua, compreensão, compaixão.


Vixi, tenho que
me ligar aqui no trampo,
senão danço...
Força pra ti tb!
É o que nos vale,
não é não?

Where I'm Anymore disse...

Olá Renata! Não há motivos para se pedir desculpas, minha cara - até porque você não fez nada de errado. Confusões simplesmente acontecem!

Antes de mais nada pode ter certeza que eu vou dar um jeito de procurar por tal conto e assim que eu terminar de lê-lo eu dou um jeito de te informar o que achei a respeito. Pelo enredo esse 'Luba' realmente parece ser interessante.

Apenas me permito discordar da questão da tristeza, Renata: acho que os textos bacanas tem que ter um conflito porque é isso que ajuda a nos compreender melhor. Sem um conflito interessante não existe um bom texto, certo? As vezes tem esse caráter tanto melancólico, mas o que no fundo no fundo nos 'ganha' é a identificação que estabelecemos com aquele determinado tipo de questão expressa nas palavras. Gosto te textos fortes, intensos, sinceros, que mexam comigo, que me abalem e dilacerem, porque isso de alguma maneira me faz sentir um pouco mais vivo. Eu acho que a arte tem essa função de sempre colocar o dedo no nosso olho, essa coisa bem 'escarrada' mesmo. Porque de nada adianta ler uma história que pareça não haver pontos de apoio com a realidade das nossas vidas. Como diz o meu queridão Morrissey, dos Smiths, em Panic: 'enforquem o DJ porque a música que ele toca não diz nada sobre a minha vida'. E eu acho que as coisas caminham bem por ai mesmo, hehehe!

Se você acha e-mails 'coisa de velhinha', então eu te confesso que apesar da idade tenho uma mania mais 'velha' ainda: gosto de cartas, hehehe! Mas abri meu e-mail apenas para no caso de você querer dizer algo que um blog não seja capaz de comportar, afinal, os comentários são públicos, por mais que esse seja quase que um 'blog fantasma', hehehe.

Quanto a questão da amizade, concordo plenamente com você: trata-se sempre de um permanente processo. E a chave desse processo é uma palavrinha complicada e perigosa: confiança. Confiar é se expor, se desarmar, estar vulnerável. E você sabe tanto quanto eu que trata-se de uma tarefa tanto quanto dificil essa, mas que se concretizada pode ser recompensadora. De qualquer forma a internet é um ambiente frio e no fim das contas ela ajuda até o momento em que começa a atrapalhar, afinal de contas, nós somos seres de sangue quente, oras! E por conta disso a gente precisa do contato com um outro, contato presencial, físico, concreto, de poder tocar, ver que é de verdade, se sentir seguro, protegido, confortado. Por isso gosto mais das cartas, porque, como sempre explico - e explico tudo demais - a caligrafia, por ser uma marca individual, única, acaba carregando um pedaço do coração daquele que escreve. A coisa fica mais humana. Talvez menos legível - no meu caso - mas ainda assim, mais humana. Não quero forçar nada com você, até porque as coisas só funcionam, Renata, quando elas são despretensiosas. O problema é justamente na passagem da despretensão para a pretensão, porque a partir daí entra em cena uma figurinha perigosa: e expectativa. Ok, é impossível viver sem expectativa, mas por outro lado, as melhores coisas da minha vida ocorreram quando eu menos esperava. Então vamos deixar o tempo (sempre ele, maldito e bendito) nos mostrar se o que pode existir entre a gente é uma muleta ou algo no qual nós dois, cada qual a sua maneira, possamos aproveitar de maneira positiva em nossas vidas. As vezes o acaso nos reserva alguma sorte, não é mesmo? Foi por acaso que eu conheci essa menina de quem falo nesse blog... Aiaiaiaiaiai.

Vou terminar esse 'comentário-quase-e-mail' com três coisas:

1) O link de mais um conto do Caio Fernando que talvez possa ser de seu agrado. Terminei de o ler há pouco e achei magnífico. Esse cara é simplesmente genial.

http://semamorsoaloucura.blogspot.com/2006/09/os-sobreviventes.html

2) Se você é uma mulher de poucas certezas então eu posso te afirmar com toda convicção que você está no caminho certo! A certeza estraga, conforma e cega. Insegurança pode ser uma virtude, como escrevi em um post recente. Digo isso porque não ter certeza nos permite ter mais liberdade de ação, de ir e vir sem ficar preso a amarras e crenças totalitárias e totalizadoras. Não se trata de uma condição das mais simples - bem pelo contrário - mas é mais recompenasador saber que se dispõe de asas para voar.

3) Se seu príncipe está mais para uma mistura 'principe-sapo-anti-herói', então acho que você tirou sorte grande, hehehe! Porque é exatamente isso que faz com que ele soe grandioso em você: a imperfeição. Não se trata de tentar corrigir essa imperfeição, de querer fazer ele mudar, mas de ajudar ele a mudar o que ele deseja mudar. Essa é a sutileza da coisa.

Bem, já falei demais. Desde já, a casa é sua!

Abração e boa sorte!
Força sempre!

Guilherme

Where I'm Anymore disse...

Acabei de ler o 'Luba', Renata. E devo dizer que gostei do conto!

De alguma maneira eu me enxergo na figura do anarquista. Tem uma música de uma banda queridona minha chamada Violins, cujas letras já citei várias vezes nesse espaço, chamada Missão de Paz na África que diz o seguinte: 'Seja bom se esse é o seu dom'. Mas ser bom vale realmente a pena? Esse é o 'x' da questão. No conto do Tolstói, 'A Morte de Ivan Illich', o dito Ivan, na beira da morte, olha para o passado e percebe que ser bom, ser ético, correto não adiantou absolutamente; não lhe trouxe a felicidade que isso prometia. Embora não seja esse o foco da conversa entre o 'anarquista e a Luba', acho que tem um momento que esse questionamento passa pela cabeça do anarquista, quando ele diz a ela que 'não quer ser puro'.

O confronto de visões dele com a prostituta é realmente bacana demais. Eu gostei de uma hora que ela diz que de nada iria importar ele se preocupar com o bem da humanidade, pois isso não iria faze-la menos triste, menos infeliz. No fim das contas, Renata, as pessoas de maneira geral não entendem que o homem não é um ser de harmonia mas sim de conflito. É justamente no conflito que há a busca. E essa idéia de pureza, sobretudo cristã, é tanto quanto problemática a meu ver. Digo isso sobretudo em relação a idéia de pecado. Porque no fim das contas céu e inferno, no limite são a mesma coisa. O bem e o mal estão sempre juntos. E não há nada de errado. Essa idéia do Arlt de confrontar o profano e o sagrado, no limite (anarquista e prostituta) é muito interessante para perceber que tudo está muito intrincado. Onde começa um e termina outro? Porque havia de se esperar que a prostituta fosse profana e que o anarquista sagrado, quando, o texto mostra que a prostituta tem seu lado sagrado assim como o anarquista guarda uma faceta profana.

No outro extremo, a Luba me lembra muito uma menina que eu conheço. Tem essa pureza misturada com certa lascívia e instabilidade. Vai e de repente volta. Eu gosto disso, para ser franco. Eu gosto dessa busca assumida pelo desejo. Além disso ela tem uma maturidade que me deixa realmente perdido. O que é legal contrastando com o anarquista, de quem, em tese, se esperaria a tal maturidade.

E você, Renata, quais suas impressões sobre o texto? Por que você ainda não tem uma opinião formada sobre ele? Que tipo de estranhamento ele te causa?

Um abração e até mais!

Guilherme

Anônimo disse...

não sei te dizer agora,
procurei o conto de novo,
em casa, mas não encontrei
depois que reler te falo...

aquele dos morangos mofados é
muito bom, já reli muitas vezes.
Mas não me vejo no clima daquele texto,apesar de ser tão próximo, de alguma maneira. Felizmente tb não me remete aos últimos episódios na minha vida em que havia um clima de erotismo. Mas, enfim, cada qual com suas sensações, impressões, visões (ia dizer tezões, mas ia ficar estranho!). Té mais, bjks queridão.