Foi ali que tudo começou – mesmo sem começar. Não se faça de desentendida. Você sabe muito bem disso. Foi ali mesmo, quando eu estava compenetrado escolhendo uma música para ouvir em meu radinho. Ok, não era uma música qualquer. Pelo menos No Need To Cry, do British Sea Power, não é aquele tipo de música que costuma passar despercebida aos meus ouvidos. De volta à superfície, no intervalo entre abrir a mochila e voltar a respirar você surgiu. Assim mesmo, de repente, sem mais nem menos. Precisava fazer isso dessa maneira? Parecia até que você já me conhecia de longa data... Até agora me pego olhando para os lados com a esperança de que você ressurja...
Não, não sou chegado na moda embora eu deva admitir que goste dela. Realmente o vestir é uma arte, vencida na maioria das vezes pela simplicidade. Sei que alguém que estava vestido como um menino criado pela vovó, com uma camisa de gola não é a pessoa mais adequada para falar no assunto. Mas foi exatamente o seu estilo pessoal que me fisgou quando você apareceu no meu quadro de visão: aquele tênis pequeno, vermelho, com uma calça xadrez, blusa de frio preta e um pequeno agasalho vermelho aberto. Tudo em perfeita harmonia com seu cabelo cacheado, curto, desgrenhado; tudo ali, no lugar, combinando com o seu rosto que eu sequer sabia bem como definir, cujo estranhamento me vencia. Pronto: você me venceu. Isso mesmo: nocaute. Parabéns! Por trás da minha barba eu não parava de te encarar e você, como que brincando, como que se divertindo com aquela sua bolsa de arquiteta hipponga, entrava no jogo e sustentava o olhar.
Quando meu ônibus chegou senti medo: seria este também o seu? Sim, felizmente (será?) era. Tive certeza quando te vi dando sinal. E pensar que quase nunca eu pego esse ônibus mas hoje, logo hoje resolvi fazer diferente. E ai você entrou na minha frente. E ai você brotou em mim. O hoje é o que importa. Sem pensar, naquele instante que me levantei do banco do ponto de ônibus percebi um desejo, uma excitação com a qual não estou habituado. Simplesmente aconteceu, veio. Quando eu tentei entrar no ônibus logo atrás de você, entre nossos corpos se interpôs uma senhora de idade. O meu pseudo-cavalheirismo falou mais alto e ela nos separou. Só que como ela se sentou rapidamente na parte anterior do ônibus eu consegui te alcançar ainda antes de você cruzar a roleta. Aqueles cabelos castanhos, desgrenhados... Não sei exatamente o que havia no seu corpo... Mas havia algo... Disso eu não tenho dúvida. Mas insisto que não sei dizer o que era. Logo eu que tenho a mania de querer saber tanto...
Você cruzou a catraca e se sentou exatamente onde eu previ: na primeira janela livre disponível. Agora não me recordo ao certo se havia outras. Apenas me parece que aquele lugar estava iluminado. Não entendi novamente o que você quis com isso: um convite ou isolamento? Vou ou não vou? Sento ou não sento? Sentei. Não, não ao seu lado, afinal, ia dar demais na cara – mas não era isso que eu, que você queria? Sentei exatamente na poltrona ao lado, apenas para te olhar. Você bem sabe que foi por isso, que eu fiz de caso pensado. E eu bem sei que você tirou a blusinha de frio e fez de travesseiro, que você fez todo aquele teatro do sono apenas para que eu te contemplasse sem muito constrangimento. Eu não sou bobo e se caí na sua armadilha foi com aquela velha inocência dos que há muito a perderam. E eu fico me perguntando daqui: pra que isso tudo? Pra que toda essa ma-fé, esse coxismo, cinismo, toda essa mediocridade? Pra que essa salada de desculpas? Entre nós havia um vão; não: em cada um de nós havia um vão. Mas nós não fomos. Quer dizer, nós ficamos. E enquanto ficávamos, íamos para lugar algum. Ficar ou ir, ir ou ficar... Íamos, ficávamos... E naquele teatro perdi meus olhos. Oras, eu simplesmente não tinha mais controle sobre a minha visão! Mal sabia eu o que em mim era meu e o que em mim já era seu. Fui perdendo tudo aos poucos enquanto você se limitava apenas a alguns poucos movimentos quase imperceptíveis, no ritmo do ônibus – embora você insistisse em mexer os pés maquinalmente. Suas mãos estavam presas no encosto do banco da frente. Na verdade uma de suas mãos, apenas. E quando eu te olhava sem meus olhos eu não sentia nenhum vestígio do passado. Nem uma pequena marquinha... Puxa vida... A essa altura, Things I Don’t Know ecoava em meus ouvidos. E tudo o que eu queria era berrar e gemer dentro daquele ônibus no compasso esquizofrênico empreendido pela voz do Krugão, meu eterno queridão. How does it feel? Para de fazer essa voz suplicante, Krug. Para. Por favor, não é hora nem lugar. How does it feel? Mas você gosta de me torturar mesmo. Quem? Vocês dois, seus dissimulados.
Foi quando numa dessas paradas entre A e B, num ponto x qualquer outro qualquer resolve dar o ar de sua graça. Desgraça! Poxa vida, como então te contemplar? Agora sim havia mais do que a (falta de) distância entre a gente. E mesmo sem fazer idéia você sabe bem que eu não sou contorcionista. Mas por você admito: vale o esforço. Pareci um avestruz ora tentando sem sucesso te olhar da forma como vinha fazendo, ora esticando o máximo possível para que você aparecesse no reflexo do espelho improvisado próximo à porta dianteira do ônibus. Mas eu sei que você também estava incomodada com isso. Tanto que tão rápido quanto possível tratou de arrumar uma posição mais confortável para você – e para mim. E nisso eu não conseguia parar de reparar na inquietação das suas penas, dos seus pés. Tênis vermelho, pequenino. Logo, pés pequenos, acho – será que seria possível o contrário? A essa altura o ar se encarregou de levar até minhas narinas um cheiro imperceptível. Como não podia deixar de ser, comecei a salivar. Jatos seguidos, como quem se prepara para última refeição de sua vida. Apetite. Não, era apenas desejo. Ai meu deus – em quem nem sequer acredito... Desejo. E você lá toda prosa, quieta, olhos fechados enquanto eu olhava cuidadosamente cada marca do seu rosto, as pequenas imperfeições, seu nariz, os seus traços. Não era cuidadosamente nem deseleixadamente. Era com-pul-si-va-men-te! Isso mesmo: com um desejo obsessivamente compulsivo, embora aparentemente asséptico. Não é possível tanto controle no olhar, tanta frieza. Mas como eu vou saber o que se passava em minha face se eu não consigo olhar para mim? Acho que queria estar asséptico para disfarçar o que eu não conseguia mais esconder. E você lá... De repente o banco atrás do meu fica vago. Trata-se da poltrona mais alta, visão privilegiada de um rei plebeu, praticamente um camarote. Sei que se você pudesse iria berrar u-huuuuuuuuuuuuuuuu!!! bem alto quando pulei para o banco detrás. O rapaz do meu lado, do seu lado, já estava achando aquilo tudo muito estranho. Ele não entendeu que aquele circo todo nada tinha a ver com ele. Tadinho...
Tadinho de mim, oras! Você lá com aquele teatro e eu, bem, e eu? Você me consumindo e eu, porra? Eu, eu, eu... Eu nem tava ali para ser bem franco. Queria tanta coisa... Quase nada... E o ônibus? Pois que eu me lembre ninguém havia parado o tempo e pouco a pouco B se aproximava. Imaginem toda tensão que me atravessava nesse momento. Ô-o-ooooooo-ô-ô-ô-ohhhhhhhhhhh! Para de berrar os sinos da catedral, Krug! Não, não, não... Bate ônibus. Não tinha dois andares mas ainda assim morrer ao seu lado (mesmo que não efetivamente – mas o que é a distância que nos separa se comparada àquela entre meu coração e a minha vida?) seria um enorme privilégio. Grand-finale. Mas era impossível haver ali qualquer acidente diferente daquele que já se desenhava desde que você apareceu em minha frente.
(Uma freada brusca)
Teria eu conseguido o impossível? Acabou? Poxa, bater aqui nesse jardim de infância seria um erro tão primário para um motorista de ônibus. Será que ele conseguiu? Será que eu consegui? Abri os olhos. Você saiu do ônibus. Lentamente. Fiquei imóvel enquanto meu espírito me abandonava em seu favor. O ônibus partiu. Não sobrou sequer um vestígio de futuro: nunca mais encontrei você, nem meu espírito, nem a mim.
Não, não sou chegado na moda embora eu deva admitir que goste dela. Realmente o vestir é uma arte, vencida na maioria das vezes pela simplicidade. Sei que alguém que estava vestido como um menino criado pela vovó, com uma camisa de gola não é a pessoa mais adequada para falar no assunto. Mas foi exatamente o seu estilo pessoal que me fisgou quando você apareceu no meu quadro de visão: aquele tênis pequeno, vermelho, com uma calça xadrez, blusa de frio preta e um pequeno agasalho vermelho aberto. Tudo em perfeita harmonia com seu cabelo cacheado, curto, desgrenhado; tudo ali, no lugar, combinando com o seu rosto que eu sequer sabia bem como definir, cujo estranhamento me vencia. Pronto: você me venceu. Isso mesmo: nocaute. Parabéns! Por trás da minha barba eu não parava de te encarar e você, como que brincando, como que se divertindo com aquela sua bolsa de arquiteta hipponga, entrava no jogo e sustentava o olhar.
Quando meu ônibus chegou senti medo: seria este também o seu? Sim, felizmente (será?) era. Tive certeza quando te vi dando sinal. E pensar que quase nunca eu pego esse ônibus mas hoje, logo hoje resolvi fazer diferente. E ai você entrou na minha frente. E ai você brotou em mim. O hoje é o que importa. Sem pensar, naquele instante que me levantei do banco do ponto de ônibus percebi um desejo, uma excitação com a qual não estou habituado. Simplesmente aconteceu, veio. Quando eu tentei entrar no ônibus logo atrás de você, entre nossos corpos se interpôs uma senhora de idade. O meu pseudo-cavalheirismo falou mais alto e ela nos separou. Só que como ela se sentou rapidamente na parte anterior do ônibus eu consegui te alcançar ainda antes de você cruzar a roleta. Aqueles cabelos castanhos, desgrenhados... Não sei exatamente o que havia no seu corpo... Mas havia algo... Disso eu não tenho dúvida. Mas insisto que não sei dizer o que era. Logo eu que tenho a mania de querer saber tanto...
Você cruzou a catraca e se sentou exatamente onde eu previ: na primeira janela livre disponível. Agora não me recordo ao certo se havia outras. Apenas me parece que aquele lugar estava iluminado. Não entendi novamente o que você quis com isso: um convite ou isolamento? Vou ou não vou? Sento ou não sento? Sentei. Não, não ao seu lado, afinal, ia dar demais na cara – mas não era isso que eu, que você queria? Sentei exatamente na poltrona ao lado, apenas para te olhar. Você bem sabe que foi por isso, que eu fiz de caso pensado. E eu bem sei que você tirou a blusinha de frio e fez de travesseiro, que você fez todo aquele teatro do sono apenas para que eu te contemplasse sem muito constrangimento. Eu não sou bobo e se caí na sua armadilha foi com aquela velha inocência dos que há muito a perderam. E eu fico me perguntando daqui: pra que isso tudo? Pra que toda essa ma-fé, esse coxismo, cinismo, toda essa mediocridade? Pra que essa salada de desculpas? Entre nós havia um vão; não: em cada um de nós havia um vão. Mas nós não fomos. Quer dizer, nós ficamos. E enquanto ficávamos, íamos para lugar algum. Ficar ou ir, ir ou ficar... Íamos, ficávamos... E naquele teatro perdi meus olhos. Oras, eu simplesmente não tinha mais controle sobre a minha visão! Mal sabia eu o que em mim era meu e o que em mim já era seu. Fui perdendo tudo aos poucos enquanto você se limitava apenas a alguns poucos movimentos quase imperceptíveis, no ritmo do ônibus – embora você insistisse em mexer os pés maquinalmente. Suas mãos estavam presas no encosto do banco da frente. Na verdade uma de suas mãos, apenas. E quando eu te olhava sem meus olhos eu não sentia nenhum vestígio do passado. Nem uma pequena marquinha... Puxa vida... A essa altura, Things I Don’t Know ecoava em meus ouvidos. E tudo o que eu queria era berrar e gemer dentro daquele ônibus no compasso esquizofrênico empreendido pela voz do Krugão, meu eterno queridão. How does it feel? Para de fazer essa voz suplicante, Krug. Para. Por favor, não é hora nem lugar. How does it feel? Mas você gosta de me torturar mesmo. Quem? Vocês dois, seus dissimulados.
Foi quando numa dessas paradas entre A e B, num ponto x qualquer outro qualquer resolve dar o ar de sua graça. Desgraça! Poxa vida, como então te contemplar? Agora sim havia mais do que a (falta de) distância entre a gente. E mesmo sem fazer idéia você sabe bem que eu não sou contorcionista. Mas por você admito: vale o esforço. Pareci um avestruz ora tentando sem sucesso te olhar da forma como vinha fazendo, ora esticando o máximo possível para que você aparecesse no reflexo do espelho improvisado próximo à porta dianteira do ônibus. Mas eu sei que você também estava incomodada com isso. Tanto que tão rápido quanto possível tratou de arrumar uma posição mais confortável para você – e para mim. E nisso eu não conseguia parar de reparar na inquietação das suas penas, dos seus pés. Tênis vermelho, pequenino. Logo, pés pequenos, acho – será que seria possível o contrário? A essa altura o ar se encarregou de levar até minhas narinas um cheiro imperceptível. Como não podia deixar de ser, comecei a salivar. Jatos seguidos, como quem se prepara para última refeição de sua vida. Apetite. Não, era apenas desejo. Ai meu deus – em quem nem sequer acredito... Desejo. E você lá toda prosa, quieta, olhos fechados enquanto eu olhava cuidadosamente cada marca do seu rosto, as pequenas imperfeições, seu nariz, os seus traços. Não era cuidadosamente nem deseleixadamente. Era com-pul-si-va-men-te! Isso mesmo: com um desejo obsessivamente compulsivo, embora aparentemente asséptico. Não é possível tanto controle no olhar, tanta frieza. Mas como eu vou saber o que se passava em minha face se eu não consigo olhar para mim? Acho que queria estar asséptico para disfarçar o que eu não conseguia mais esconder. E você lá... De repente o banco atrás do meu fica vago. Trata-se da poltrona mais alta, visão privilegiada de um rei plebeu, praticamente um camarote. Sei que se você pudesse iria berrar u-huuuuuuuuuuuuuuuu!!! bem alto quando pulei para o banco detrás. O rapaz do meu lado, do seu lado, já estava achando aquilo tudo muito estranho. Ele não entendeu que aquele circo todo nada tinha a ver com ele. Tadinho...
Tadinho de mim, oras! Você lá com aquele teatro e eu, bem, e eu? Você me consumindo e eu, porra? Eu, eu, eu... Eu nem tava ali para ser bem franco. Queria tanta coisa... Quase nada... E o ônibus? Pois que eu me lembre ninguém havia parado o tempo e pouco a pouco B se aproximava. Imaginem toda tensão que me atravessava nesse momento. Ô-o-ooooooo-ô-ô-ô-ohhhhhhhhhhh! Para de berrar os sinos da catedral, Krug! Não, não, não... Bate ônibus. Não tinha dois andares mas ainda assim morrer ao seu lado (mesmo que não efetivamente – mas o que é a distância que nos separa se comparada àquela entre meu coração e a minha vida?) seria um enorme privilégio. Grand-finale. Mas era impossível haver ali qualquer acidente diferente daquele que já se desenhava desde que você apareceu em minha frente.
(Uma freada brusca)
Teria eu conseguido o impossível? Acabou? Poxa, bater aqui nesse jardim de infância seria um erro tão primário para um motorista de ônibus. Será que ele conseguiu? Será que eu consegui? Abri os olhos. Você saiu do ônibus. Lentamente. Fiquei imóvel enquanto meu espírito me abandonava em seu favor. O ônibus partiu. Não sobrou sequer um vestígio de futuro: nunca mais encontrei você, nem meu espírito, nem a mim.
Um comentário:
o ônibus é um ótimo palco pra esse tipo de coisa acontecer. imagina qtas histórias já começaram e terminaram dessa msm forma?
sensacional, mais do que nunca sou seu fã.
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