sábado, 22 de agosto de 2009

Um trechinho.

Sim, mas não adianta, eu sei desse teu ser que também é o meu, sei que Ruisis é também você, e Rukah é o ser a três que também és, inventaste muito bem, és tão só, eu compreendo. Pára, não diz que é invenção. Ora, Ruiska, vão saber de qualquer jeito. Tenho vergonha, pára. Por agora, mas fica sabendo que a tua metafísica de dentro é coisa pra depois, entendes? E anda mais depressa, estás mancando. Anão, por favor, o meu de dentro o teu a dor o vazio palvra morta da minha boca tudo trevoso queria amo não sei amo não sei demais paredões da memória memória memória cascalho confundindo o percurso das águas dor pátio onde os homens caminha chamados ai AAAAAAAAAIIIIIIIII que chamados estiletes a terra os dentes pó pó mas a memória os girassóis Deus Deus Deus o azul o ovo a periferia da galáxia vida vida ali começa a matéria ai e eu e eu nunca mais o meu de mim sempre a cora o meu de outro meu mais longe ou meu mais perto não sei o outro não é eu ou não sei umbigo centro de mim ou do universo não sei ando querendo colocar o bilhete na parede alguém vai pegar vai ler diz diz que é também o teu de dentro diz que não sou só eu que tento diz por favor lê lê vou vomitar ninguém para pôr a mão na testa goi goi chin chin roseiral-mirim laranjeiras correria vida goiabada em lata memória memória memória morrer fica saliva gosma gosma esticando sempre teia sempre teia teia de aranha centro umbigo AAAAAAIIAAAIAAI. Agora fica quieto, há uma passeata, não vês? São os príncipes do mundo, a juventude, os que vão fazer. O quê? Vão acabar com os discursos do medo, o homem vai nascer outra vez, e tu, olha, deves te preparar para esse fim-começo, esconde as tuas mãos, são mão de escriba, escondo a minha voltada para cima, o homem é carne e sangue, ossos também, e só, entendes? Não tentes falar. Eles vêm vindo. Não digas que. Não dá mais tempo. E VOCÊS DOIS QUEM SÃO? Responde corretinho, Ruiska. Sabem, eu escrevia e esse aqui sou eu mesmo, mas do cone sombrio. PÁRA AÍ. Um escritor, senhores, muito bem, o que escreves? AÍ. Escrevia,s abem, sobre essa angústia de dentro. PÁRA AÍ. Senhores, eis aqui, um nada, um merda neste tempo de luta, enquanto nos despimos, enquanto caminhamos pelas ruas carregando no peito um grito enorme, enquanto nos matam, sim porque nos matam a cada dia, um merda escreve sobre o que o angustia, e é por causa desses merdas, desses subjetivos do baralho, desses que lutam pela própria tripa, essa tripa de vidro delicada, que nós estamos aqui mas chega, chega, morte à palavra desses anêmicos do século, esses enrolados que se dizem com Deus, Deus é esse ferro frio agora na tua mão, quente no peito do teu inimigo, Deus é essa bala, olhem bem, Deus é um fogo que vai queimar essas gargantas brancas, Deus é Tum mesmo, homem, tu é que vais dispor do outro que te engole, e quem é que te engole, homem? Todos que não estão do teu lado te engolem, todos esses que se omitem, esses escribas rosados, verdolengos, esses merdas dessa angústia de dentro. Espera um pouco, moço, não sou desses não, quando falo de mim quero falar de ti, nós dois e todos, nós todos somos um, entende? Vem, Ruiska, o moço vai te arrancar a víscera. Espera, anão, o senhor entendeu? Baralho, velho escriba, olha esse cara aqui, sabes quantas vezes por semana nesse cara come? Não senhor, não trouxe penico nem medidor. Pois não era preciso, velho escriba, ele come uma côdea seca por semana, não come bifes não, come só o enxofre da vida. Alcachofra? Alcachofra para o teu rabo de escriba, vilão, PESSOALLL! OS IMUNDOS VEM VINDO!, façam uma frente só, sai porco-escriba, sai porco-anão, unam-se aos nossos inimigos. OOHHHHAHHHHUIUIUI PEGA ESSE AÍ COM ESSE ANÃO DE CIRCO. OS SENHORES FAZM PARTE DOS REVOLTOSOS? Para dizer a verdade, capitão, estava apenas conversando sobre essa coisa de escrever e. ESCREVES? Sim senhor. Porra Ruiska, outra vez. TOMA LÁ UMAS BORDOADAS. Ai, capitão, me larga, me ajuda anão, dos dois lados me matam, UIIII. Vem, Ruiska, não fica aí no meio, olha lá um caminho, vamos correr, corre mais e chega até o riacho, corre, pára, onde é que estás, ah já estás aí, oi, sabe-se lá qual é o lado? Descansa, molha os pés, tens um olho de sangue, que mania também de dizer tudo, pára com isso, já não escreves há séculos, morde a mão e cala, isso de palavras acabou-se. Não posso mais dizer, anão? Não como dizes, deves falar do outro, mas não do jeito que falas, fala claro, fala assim: apresentar armas, e todos te entenderão, escarra três vezes sobre os teus mitos, enche a boca de sangue e todos te entenderão, enfia a faca no peito dos eleitos e todos te entenderão, usa o estrôncio noventa, fala cem vezes merda, e principalmente degola a tua cabeça, fecha o punho assim, assim Ruiska, não sabes nem fechar o punho, também que merda, assim não. Olha, anão, corta um pedaço. De quê? Tira uma lasca da minha perna, tira um pouco de pele. Por quê? Pronto, tiro eu. Deixa a pele aí perto do rio, aí entre as pedras, deixa que a água chegue perto, melhor viver na água, sabes esse pouco de epiderme vai crescer formar um novo eu. Dessa lasca de pele que tiraste há de se fazer um Ruiska outro inteirinho, tanto assim queres viver? Um construtor de águas, um outro feito de mim mas todo nu, despojado de tudo, nu no corpo, nu por dentro, ah, vai balbuciar, isso vai, não abro mão do balbucio, vai dizer blu, plinka plinka ohe ohahu, vai entrar dentro do rio e gritar OHEOHUOHAHU. Ruiska, que queres dos homens? Que te entendam? Que te cocem a cabeça? Façam blu blu no teu pintinho? Conta de um jeito claro o que pretendes, as palavras existem para... para, bem, para. Parabéns anão, elucidaste, as palavras enfim, as palavras... oh pervinca, oh begônia, sabes da begônia? Sabes do mistério da begônia? Sabes do verme que é cortado em mil pedaços e que depois cada pedaço é um verme? A palavra, anão, vê bem, se eu digo amor, o que é que sentes? Uma coisa no peito, um quente. E se tu dizes, sem que te perguntem, sinto uma coisa no peito, um quente, as gentes te dirão que é amor o que sentes? Ora, Ruiska, não, vão dizer, espera um pouco, diz para mim essa coisa que no fundo me obrigaste a dizer. Anão, sinto uma coisa no peito, um quente. Então te digo, Ruiska, estás mal, talvez adoentado, e olha que deu certo porque... não é doença o amor? Não, é coisa grande que nasce contigo e depois vai morrendo. Por quê? Coexistes, vives ao lado dos, das. Olha a minha cara, anão. Olhei. Gostas dela? Bem, não é nada esquisita, é normal, tens umas rugas aí perto dos olhos, um olho, olha pra mim é bom teu olho, clarinho, tem pintas amarelas. Amas o meu rosto, anão? Bem, é uma cara que não se pode amar, sabes por quê? Já te digo, tu não te dás, quando me olhas estás dizendo sempre: eu sou eu, em nada teu igual. Mas tu sabes que eu sou parte de ti, não sabes? Pois é claro, Ruiska, sou tua sombra, tudo que vem de baixo em i, é coisa minha, e és tu também inteiro. Tens ódio no teu de dentro, anão? Claro, não sou feito de açucenas, tu sabes que me enrabam por aí, que é treva esse sulco que faço sob a terra, que existo porque, sabes que não sei bem por que existo? Nem eu, anão. Estamos conversando há muito tempo e quase nada do que falas eu entendo. Nem eu, Ruiska. AIURGUR é bonito porque tem ronco e ais, AUIRGUR é muito dor, tu não achas? Tem ronco, isso é verdade. Te lembras das coisas que eu dizia? Quem é que não se lembra, Ruiska, tinhas o dom... tinhas... ora, uma magnificência, e tinhas também altivez, uma... espera, uma austeridade, lá isso eras, austero, muito, um mestre da austeridade. E que boa linguagem. Dizias: morte, meu sopro, dizias: é a palavras essa que se levanta agora prodigiosa? Ai, estás te desmanchando, Ruiska. Não, é nada, é esse sol do meio-dia, o olho já não vê, mas percebe uma luz, percebe que... o olho a dimensão do nada a memória outra vez o corpo retina infância quaresmeiras do acaso fugidias fugidias quando me tocaram a primeira vez quando me tocaste pai as mãos sobre o meu peito meu Deus eu que não sou eu matéria de vileza eu que ai esse amor mais fundo universo do medo balbucio apenas mas e muito mais é muito mais isso de dizer menos é mui to ma is. Ruiska, o que é que procuras? Deus? E tu pensas que Ele se fará aqui, na tua página? No teu caminhar de louco? No silêncio de tua vaidade? Sim, no teu caminhar de louco, em ti todo fragmentado, abjeto. Ele se fará na vontade que tens de quebrar o equilíbrio, de te estilhaçares, Ele se fará no riso dos outros, nesses que sorriem apiedados quando te descobrem, Ele se fará enorme porque e somente agora que te mostras, agora é que dás ao outro o mais pobre de it, fala, Ruiska, sem parar, fala desse teu fundo cor cinza, mostra a tua anca, teus artelhos, tuas canelas peludas, teu peito encovado, teu riso frouxo, mostra tudo de ti, sabes, não tens nada, tua língua se enrola a cada palavra, não tens amor nem guias, estás sozinho como um boi que vai ser comido, sabes como é com o boi? Abrem a veia, deixam-no sangrar, enquanto isso todos conversam, amam, tu és um boi, Ruiska, um boi aberto, esburacado, tu és um porco, Ruiska, e te imaginas home, pedes todos os dias que te dêem as mãos, suplicas, procuras do Deus, Ele está aí mesmo no teu sangue, na tua natureza de porco, no teu olho revirado, ai, acalma-te, preserva-te, estás em emoção, te pensas magnífico dizendo as tuas verdades, mas continuas breu para o teu próximo, e todo o teu caminho terá um só destino, a morte, ela sim é grandiloqüente, ela é a rainha, chega a qualquer hora, oh, não te exaltes, receba-a, tens mais ossos que carnes?

(Fluxo, Hilda Hilst)

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