terça-feira, 11 de agosto de 2009

Incesto.

Agora não há mais saída. Na verdade, nunca houve. Antes, contudo, eu ainda não sabia disso. Antes dos pés na estrada, apenas pensava coisas como ‘basta pisar na estrada que um dia, quem sabe numa chuva de outono, num domingo morto ou no meio de um passe de mágica tudo ficará para trás e então o que eu fui finalmente será parte de mim, uma parte verdadeiramente minha’. Bastaram os pés na estrada para saber que os pés na estrada não bastavam simplesmente porque o bastante não é o suficiente.

O asfalto é o mesmo, negro, contínuo, que no limite se mistura com o calor do sol, ao fundo, formando uma espécie de alucinação, de tremor. Andando a gente percebe que as pedras no caminho e mesmo os pequenos buracos das grandes crateras não passam de asfalto. O horizonte não chega, faça sol ou faça sol. A gente aprende também que a chuva não deixa de ser uma forma que o sol adquire para tentar nos fazer criar átimos de esperança. Você bebe a água que cai, com desespero contido limpa o corpo imundo, contidamente desesperada a pele enruga. Os olhos transbordam. Você aprende a gritar e a comemorar o segredo do que não existe. A roupa, encharcada, não pesa a pressa. O sol entra dentro de você e quando o temporal acaba, pede passagem de volta, por meio do suor, para restaurar o horizonte árido. Nas margens, há areia. Uma areia amarelada, fina, formada por grãos desérticos, grãos que ficam mais visíveis quanto menores-espelhos - quando alçados à solidão pela ação do vento. Vez por outras, cactos quebram temporariamente a monotonia da paisagem. Há quem veja beleza nesses vegetais. Não porque existam, mas porque insistam em viver de resquícios, porque possuem uma profundidade invisível e, portanto, reconhecível. Um oásis perdido numa aparência grotesca, disforme, em meio a espinhos.

De cima:

O sol e o cacto.
O horizonte e o cacto.
A estrada e o cacto.
O cacto e o cacto.

O cacto prossegue enquanto o cacto permanece. A procura e o encontro por um instante se tocam e se despendem. O sol, a estrada, o deserto, a chuva e a cegueira. O tempo é tudo isso misturado e separado.

‘Sempre em frente, soldado, marchar! A sua hora há de chegar’. Este era o lema da estrada. É pelo lema que se acostuma a crescer. É pela lama. Antes da estrada há estradas que você não percorre. Todo falatório sempre se resume a comandos como ‘não desista nem se deixe enganar’; ‘o sol há de te iluminar’; ‘existem tentações, mas permaneça na estrada’; ou ‘a estrada é sempre o caminho mais curto’, este último modo é particularmente interessante porque ele simula uma ilusão de escolha, quando na prática não há concessão: estrada ou estrago, quando estrago é apenas um sinônimo de estrada, afinal, quem é o louco que há de preferi-lo?

Foi num dia, numa terça-feira de domingo, em abril, quero dizer, em dezembro, que eu parei de andar. Foi nesse dia singular - como todos os dias iguais sempre nos parecem – que eu parei de andar e me sentei no chão e me dei conta que eu mesmo já não passava de uma estrada. Naquele instante, sentado, chão eu me indaguei: o que havia realmente diferente entre mim e o caminho? Pensei comigo ‘e se eu morrer, o que eu vou me tornar’? ‘Isso se eu pudesse morrer, porque só morre quem é vivo e a estrada não é viva, é piche’, prossegui. Piche.

Rebobinei a fita.

- Quem é o louco que há de preferir o estrago à estrada?

Louco. Estrago. Estrada. Sanidade insana ou uma insanidade sã?

Câmera lenta.

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Play.

O cacto prossegue enquanto o cacto permanece. A procura e o encontro por um instante se tocam e se despendem.

O cacto. Uma erva daninha contaminando a estrada. A porta de saída da estrada, uma porta de entrada. ‘Por que não?’ e, convenhamos, por que não? Era preciso sentir. Por isso, coloquei o meu dedo indicador em um dos espinhos. Não hesitei. Apertei com força.

Retirei o espinho do meu dedo. Não gritei. Não consegui. Não. Simplesmente não. Meu coração disparou. Finalmente qualquer espasmo de dor latejando em mim. Os meus olhos pouco acostumados a enxergarem, repararam na existência de um pequeno, quase invisível pontinho vermelho que escorria primeiro aos poucos, sob a forma de um filete, para, em seguida, ganhar volume e sair caudalosamente, do meu dedo. A areia, seca, amarela, nua, estéril recebeu sentiu em sua pele morta um pouco de vermelho.

Cessada a saída daquele líquido vermelho, pude observar que no cacto, de onde aquele espinho fora removido, um líquido incolor timidamente extravasava os limites do verde. Não era água, apenas. De repente, o líquido saiu com raiva. Apenas um jato. Pequeno, porém grandioso porque, enfim.

Estrada
Ex-trada.
Estrago.

Toda forma de comunhão nasce de uma destruição - vermelho-incolor no amarelo.

Uma possibilidade em meio à certeza:

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