Assunto vai, assunto vem e de repente, em plena orientação de monografia a Simone havia entrado no terreno do cinema. De fato havia um pretexto significativo para tal discussão, qual seja, a hipótese de que filmes com temáticas mais localizadas teriam chances menores de serem agraciadas com honrarias reconhecidas como um Oscar, por exemplo, em detrimento de outras obras cujos conteúdos narrativos tivessem uma amplitude maior. Por isso, defendeu a Simone, filmes como Cidade de Deus ou Central do Brasil não foram agraciados com tal honraria. Eis que nessa lacuna surgiu uma brecha: ‘eu acho que os filmes do Beto Brant teriam muito mais chances de conseguir trazer um Oscar para o país justo porque apesar da violência muitas vezes expressa em seus conteúdos, como em o Invasor, por exemplo, por outro lado ele procura colocar em questão conteúdos mais universais como a temática do homem pós-moderno, totalmente fragmentando, perdido na vida de uma grande metrópole, que não consegue estabelecer vínculos, se comunicar, partilhar afeto. Você já assistiram a algum filme dele? O último, chamado Cão Sem Dono, fala exatamente sobre isso’.
Não tenho certeza se ela falou isso com algum propósito específico, se pelo nosso contato relativamente frequente nos últimos quatro anos ela já ‘sacou algo’, mas a verdade é que no fim das contas a carapuça vestiu muito bem. Depois de um reconhecimento instantâneo com tal descrição acabei me vendo obrigado a ir o mais depressa possível a locadora e alugar a tal película. Bem, como meu primo estava por perto não tinha nada melhor para fazer, acabamos nós dois por sentarmos no sofá – na verdade eu fiquei deitado no sofá e ele preferiu o chão com as almofadas – e colocamos o DVD para rodar. Ao final do filme, pensei comigo: ‘ok, nada demais’. Eis que então ocorreu algo que eu só havia até então sentido quando da exibição de Sangue Negro, último filme de Paul Thomas Anderson - autor do definitivo Magnólia: sem mais nem menos, a ficha começou a cair e o efeito devastador do filme emergiu dentro de mim. De fato Cão Sem Dono, cujo roteiro foi inspirado no livro ‘Até o dia em que o cão morreu’, do jovem escritor paulistano radicado no sul Daniel Galera, ganha uma estrutura narrativa que causa certo estranhamento: os cortes entre as cenas são explicitados, contrariando a ortodoxia do cinema, que tende a procurar ao máximo diluí-los em nome de uma construção clara de causalidade. Ao contrário disso, Beto Brant constrói um filme de situações que sim, estão ligadas, mas cujo nexo não tem pretensão de estabelecer uma relação direta e explicita. Um filme de cenas do cotidiano de um rapaz que não sabe muito bem o como ser e se relacionar. A contraposição entre a interpretação contida e deslocada de Ciro, protagonista da trama, e o jeito solto de Marcela, fio condutor da trama, é muito tocante. Dito de outra forma, há uma ambivalência fundamental em Ciro expressa pela dificuldade de fixar laços, ao mesmo tempo em que os deseja; as duas faces da solidão: sua busca e sua negação, sendo que o desejo concreto do personagem invariavelmente transita entre esses dois pólos – geralmente estando no oposto do que a situação possibilita. Assim como exemplo do ótimo Choke - que terminei de assistir há pouco -, o sexo acaba sendo uma alternativa de ficar em cima do muro: mais do que um contato entre interiores, um contato entre exteriores – a busca pela concretização de um desejo instantâneo que apenas posterga a verdadeira questão. Não há nada de grandioso no filme, de mágico, de espetacular e é exatamente a simplicidade que faz do mesmo um soco no estômago. Simplicidade essa que, quando elevada ao máximo, nos brinda com o momento mais bonito da película, em que talvez seja o único momento em que os protagonistas verdadeiramente se interpenetrem: quando Ciro pega seu violão e Marcela canta de uma maneira desesperada.
Mais do que um mero título sugestivo, Cão sem Dono é uma verdadeira experiência pela complexidade de sentimentos que abarca o abismo interior dos seres humanos.
***
Para manter o clima, como trilha sonora ideal para o filme fica a letra abaixo, extraída do álbum Cão, do sambista paulistano Rômulo Fróes.
Já fui teu cão
Vigia de uma luz
Sombria
O mais fiel
O sol que no teu céu
Cabia
Mas não entendes
O meu delírio
Amor doente
A carne que não sinto
Entre os dentes
Já fui teu pai
Já fui teu tradutor
Teu guia
Já fui a chave
A parte que te cabe
Um dia
Mas não entendes
Minha loucura
Amor doente
A carne que não sinto
Entre os dentes
(Amor Doente, Romulo Fróes)
Não tenho certeza se ela falou isso com algum propósito específico, se pelo nosso contato relativamente frequente nos últimos quatro anos ela já ‘sacou algo’, mas a verdade é que no fim das contas a carapuça vestiu muito bem. Depois de um reconhecimento instantâneo com tal descrição acabei me vendo obrigado a ir o mais depressa possível a locadora e alugar a tal película. Bem, como meu primo estava por perto não tinha nada melhor para fazer, acabamos nós dois por sentarmos no sofá – na verdade eu fiquei deitado no sofá e ele preferiu o chão com as almofadas – e colocamos o DVD para rodar. Ao final do filme, pensei comigo: ‘ok, nada demais’. Eis que então ocorreu algo que eu só havia até então sentido quando da exibição de Sangue Negro, último filme de Paul Thomas Anderson - autor do definitivo Magnólia: sem mais nem menos, a ficha começou a cair e o efeito devastador do filme emergiu dentro de mim. De fato Cão Sem Dono, cujo roteiro foi inspirado no livro ‘Até o dia em que o cão morreu’, do jovem escritor paulistano radicado no sul Daniel Galera, ganha uma estrutura narrativa que causa certo estranhamento: os cortes entre as cenas são explicitados, contrariando a ortodoxia do cinema, que tende a procurar ao máximo diluí-los em nome de uma construção clara de causalidade. Ao contrário disso, Beto Brant constrói um filme de situações que sim, estão ligadas, mas cujo nexo não tem pretensão de estabelecer uma relação direta e explicita. Um filme de cenas do cotidiano de um rapaz que não sabe muito bem o como ser e se relacionar. A contraposição entre a interpretação contida e deslocada de Ciro, protagonista da trama, e o jeito solto de Marcela, fio condutor da trama, é muito tocante. Dito de outra forma, há uma ambivalência fundamental em Ciro expressa pela dificuldade de fixar laços, ao mesmo tempo em que os deseja; as duas faces da solidão: sua busca e sua negação, sendo que o desejo concreto do personagem invariavelmente transita entre esses dois pólos – geralmente estando no oposto do que a situação possibilita. Assim como exemplo do ótimo Choke - que terminei de assistir há pouco -, o sexo acaba sendo uma alternativa de ficar em cima do muro: mais do que um contato entre interiores, um contato entre exteriores – a busca pela concretização de um desejo instantâneo que apenas posterga a verdadeira questão. Não há nada de grandioso no filme, de mágico, de espetacular e é exatamente a simplicidade que faz do mesmo um soco no estômago. Simplicidade essa que, quando elevada ao máximo, nos brinda com o momento mais bonito da película, em que talvez seja o único momento em que os protagonistas verdadeiramente se interpenetrem: quando Ciro pega seu violão e Marcela canta de uma maneira desesperada.
Mais do que um mero título sugestivo, Cão sem Dono é uma verdadeira experiência pela complexidade de sentimentos que abarca o abismo interior dos seres humanos.
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Para manter o clima, como trilha sonora ideal para o filme fica a letra abaixo, extraída do álbum Cão, do sambista paulistano Rômulo Fróes.
Já fui teu cão
Vigia de uma luz
Sombria
O mais fiel
O sol que no teu céu
Cabia
Mas não entendes
O meu delírio
Amor doente
A carne que não sinto
Entre os dentes
Já fui teu pai
Já fui teu tradutor
Teu guia
Já fui a chave
A parte que te cabe
Um dia
Mas não entendes
Minha loucura
Amor doente
A carne que não sinto
Entre os dentes
(Amor Doente, Romulo Fróes)
Um comentário:
o livro que tu me deu!
e a borges de medeiros e os cenários tão manjados daqui de poa..
hahah
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