sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Modus operandi.

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Pois bem... Lembro-me perfeitamente que a tônica da minha última carta foi um puxão de orelhas do tipo: “peloamordedeus eu imploro: me dá atenção”. Remontei passo a passo todo o percurso que fiz durante esse tempo em que estamos fisicamente separados, tim tim por tim tim, para tentar compreender porque você mudou tanto e mais do que isso: por que mudou tanto comigo? A verdade é que eu fiquei encucado por dois motivos: o primeiro deles era a crença de que o que eu vivi ao seu lado foi tão forte para você quanto foi para mim a ponto da gente conseguir manter nossa amizade tal qual era, independente das fronteiras temporais ou espaciais que fossem colocadas entre a gente; o segundo foi eu ver acontecer com você uma mudança tão brusca quanto aquela que aconteceu com a Mariana, uma menina que morava em Santos de quem lhe falei quando começamos a ficar mais próximos e por quem um dia eu já fui apaixonado. Eu só ficava aqui pensando: não, com você não pode acontecer isso! Só depois de dois anos que eu tomei coragem (obviamente por intermédio das palavras escritas) para falar o que eu queria lhe dizer durante este tempo todo, tirar todas as dúvidas que eu guardei até agora. No entanto, embora tudo que eu tenha lhe dito em minha última carta seja sincero e legítimo, talvez possa ter soado aos seus olhos como algo grosseiro. Grosseiro não no sentido de desrespeitoso, pois eu jamais faria isso com você, mas sim como uma cobrança, talvez aparentemente ríspida quando eu revelo “as verdades” de uma maneira tão crua, tão direta. Bem que se diga, e isso deve ficar muito claro, essas referidas verdades estão entre aspas por serem verdades parciais, minhas verdades, ou seja, aquelas que trago em minha memória. Logo depois que conversamos pelo telefone, num balanço que fiz junto ao Tio Beto por e-mail (pois ele ainda é o meu grande confidente como já lhe disse várias vezes), eu já alertava para a possibilidade da terceira carta, que à época ainda estava nos correios, ser mal recepcionada e/ou mal interpretada por sua parte (como você mesma disse ao telefone, essa forma de comunicação é um tanto problemática justo porque não é capaz de fornecer outros indícios que contextualizem de maneira mais clara o sentido preferencial que o emissor procura transmitir, como acontece em sua plenitude na comunicação face a face). Desde então já venho repensando o conteúdo da mensagem que lhe enviei. Só que a gota d’água que me levou novamente a te encher um pouquinho mais o saco foi o referido texto do Maurice Halbwachs. Sim, você mudou e mudou bastante aos meus olhos, bem que se diga. Mas a verdade verdadeira (a verdadeira mesmo!) é que não há como lutar contra a distância, independente dos nossos esforços, pois a quebra da rotina deixa de presentificar a amizade e os sentimentos que, em outra ocasião, tanto nos unia. Não é a toa que a cada dia que passa eu faço menos sentido para você. A memória só é acionada quando os membros de um grupo compartilham um contexto socialmente relevante para um determinado indivíduo e por isso mesmo elas tratam de uma construção coletiva e não meramente individual. E, para minha tristeza, hoje em dia, por fazermos parte de grupos distintos, a tendência é que progressivamente nos tornemos estrangeiros um ao outro (por mais que eu tenha lutado insistentemente contra isso). Como seus quadros de referencia hoje são outros, agora eu entendo perfeitamente que eu não passe de um borrão no seu passado e, infelizmente, acho que não há como mudar essa situação. Só hoje compreendo que você não tem absolutamente culpa nenhuma nesse processo, ou pelo menos não da maneira (quase conspiratória) que eu imaginava, através de uma mudança voluntária no trato comigo, de passar a ser mais indiferente em relação a mim. Realmente não tem nada a ver com isso. Eu ficava aqui encucado querendo entender, num saudosismo sem tamanho, como de uma hora para outra você, que sempre teve o maior carinho e consideração para comigo, passou a me escrever (quando escrevia) de maneira tão seca, curta, fria e impessoal. Afinal, se nossos contatos eram tão freqüentes e calorosos, minha cabeça pensava que só podia ter acontecido algo muito grande que lhe tivesse feito agir de maneira diferente comigo a partir de agosto de 2005. Aconteceu e não aconteceu, na verdade: no início você ainda me tinha fresco na memória, pois tudo que havíamos passado juntos era muito recente (na nossa cabeça era como se estivéssemos voltando das férias e, por esse motivo, queríamos nos manter próximos). Só que a quebra do convívio diário, da tal presentificação da amizade somada a sua re-inserção na sua cidade junto com a minha em inserção em BH acabou te transformando. E essa transformação, que eu sempre julguei como negativa, quando comparada aos meus pretensos esforços para sempre estar próximo a você (dentro da proximidade que estava ao meu alcance), na verdade, não é negativa, mas “natural”. É negativa para mim que sou carente e sempre me apoiei em você desde quando te conheci, afinal, desde então eu deixaria de povoar seus pensamentos e preocupações cotidianas. Some-se a este processo dois agravantes: porque se eu te acuso de ter mudado eu esqueço que eu também mudei nesse período, por mais que eu não tenha sentido diferença alguma e teime em dizer que não (me sinto como o mesmo de quando tinha 12 anos, com exatamente as mesmas preocupações e os mesmos problemas, talvez apenas potencializados pelo tempo, como já lhe disse outrora); além disso, eu fui covarde, suficientemente covarde (e covarde é a palavra) de não ter te ver antes por conta do meu ciúme bobo e estúpido de você. Se (maldito se) eu tivesse feito isso, talvez hoje eu ainda fizesse algum sentido para você, pois nossa relação teria sido mais constantemente atualizada e vivificada (e quando eu uso esses termos, me refiro pela manutenção tanto quanto possível de relações face a face). Sim, sou o maior culpado disso tudo, pois muito provavelmente estive longe (fisicamente falando) quando, talvez, você precisasse que eu estivesse o mais perto possível de você. Não a toa, se por acaso você teve paciência para ler todas as memórias que eu relatei em que eu estive próximo a você e que eu jamais esqueci, provavelmente você perceberá que você só se recorda de pouquíssimos ou nenhum desses momentos. Justo porque a nossa forma de olhar um para o outro foi diferente (o Renato Russo em “Daniel na Cova dos Leões” diz isso com perfeição: o seu momento era o meu instante): eu sempre fui apaixonado por você mesmo tentando negar isso a todo custo ante a impossibilidade da concretização daquele amor (em sua plenitude – ou melhor, oficialmente – pois, diga-se de passagem o simples fato de estar junto a você já me bastava, até porque eu acho que não sou simpatizante do amor grudento, mas sim do que uma grande amiga definiu por “amizade erótica”). Sendo assim, quando a gente está apaixonado, não se furta em reparar e contemplar cada mínimo detalhe da pessoa amada. E é também por isso que muitas vezes a gente tem a mania equivocada de querer cobrar dos outros que se lembrem do que a gente lembra, que sintam o que a gente sentiu, que valorizem o que a gente valorizou. Ainda que eu tente sempre relativizar essas questões, até porque minha auto-estima sempre me ajudou nesse ponto, eu também às vezes me coloco na posição de centro do mundo (ou tento me colocar), por menos que eu o faça. Num momento de fraqueza completa, me mostrei totalmente, de forma nua e crua tentando, por desespero, te chocar ao mesmo tempo que me pus a rastejar. Enfim, todo mundo tem seus dias, ainda que, como eu já lhe disse e reitero, tudo o que eu lhe disse é a mais pura verdade, a mais sincera verdade de tudo que me afligiu durante todo esse tempo.


Continuando minhas reflexões, outro ponto que eu tenho a salientar e que eu julgo como sendo muito importante é o fato d’eu não ter timing suficiente para viver no presente, pois eu demoro muito para assimilar as coisas que acontecem a minha volta. Esse fato está relacionado diretamente com outro ponto crucial: minha ultra-racionalidade. Como você deve ter percebido durante esse tempo todo que a gente conviveu e no qual lhe escrevi tantas cartas, há sempre por meio destas uma tentativa de minha parte em sempre tentar entender, explicar, propor hipóteses para tudo que eu sinto, penso, observo. Essa minha mania, inclusive, foi confundida por um amigo meu por certa prepotência de gente que está na faculdade “em querer teorizar tudo”. Só que ao contrário do que ele pensa essa é uma característica tipicamente minha e que provém de antes mesmo de entrar para a faculdade. Sou um ser lógico a procura de respostas lógicas e para isso proponho explicações para tudo, porque assim aumento a minha crença, faço julgamentos mais precisos e condizentes. Contudo, o que eu acreditava ser uma das minhas maiores virtudes talvez seja o grande germe da minha destruição, um dos meus maiores defeitos. Primeiro porque toda reflexão se constrói em relação ao passado (não a toa meu presente é o passado); e segundo porque existem coisas que não foram feitas para serem explicadas, mas sim para serem sentidas e eu, na insistência de teorizar me esqueço de viver, de experimentar, porque o presente, tempo das sensações é o tempo do risco, da construção e eu quero a certeza da segurança, que só encontro quando olho para trás e entendo as coisas (ou finjo entender). Vivo da nostalgia. Como eu disse ao Daniel, esse meu grande amigo que me acusou (em certa medida sabiamente) de ser muito “teorizador”, sou um cara errado, que toma atitudes erradas, vive num tempo errado e num espaço errado. Eu só entendo as coisas quando elas já se esvaíram e eu não tenho mais como modifica-las. Talvez, mais pra frente quando o presente tiver se tornado passado eu entenda que agora, nesse momento que eu me declaro a você, eu esteja apaixonado por outra pessoa. Ou que crie um amor que nunca existiu (como talvez seja isso que ocorra entre mim e você diante da nossa distância), mas que irá me parecer tão real, apesar de já não ser mais possível de ser concretizado. Isso pode soar um tanto quanto louco para uma pessoa “normal”, pé no chão como você, mas para mim faz todo o sentido do mundo. Porque com esse mecanismo eu acabo achando um culpado para as minhas desilusões. Ou seja, não fui eu quem tive a culpa, mas sim, foi o destino que me separou do meu grande e verdadeiro amor. De quebra mato dos coelhos com um tiro só e ainda consigo pensar num estatuto de felicidade utópica possível, embora eu tenha sido privada da mesma. Ai fica-se com a sensação do “eu podia ter sido feliz...”. Enquanto isso, deixo de lado quem é importante para a minha vida no presente, onde estão meus pés, da mesma maneira que eu, quando estivemos no mesmo espaço, por mais que tentasse estar junto a você e te fazer feliz tanto quanto eu podia, talvez tenha sido uma pessoa ausente. Eu não nasci para este mundo! Mesmo sabendo racionalmente que jamais iria acontecer algo mais sério entre mim e você, afinal, você me enxergava como um amigo, além de, naquela época ainda estar apaixonada pelo Antônio, a minha mente é traiçoeira e vai me condenar sempre pelo que eu não fiz (me fazendo acreditar na circunstancialidade dos fatos em vez de seu caráter absoluto), pelas minhas escolhas, pelo que não tentei. Ou você acha que ao longo desses dois anos e meio eu já não me arrependi de ter largado a engenharia? Arrependimento este não pelo curso em si, pois hoje em dia tenho a certeza plena que me dou muito melhor com as palavras do que com os números, mas porque eu tive de abrir mão de amizades com pessoas as quais eu amo de paixão. Porque eu, com a minha mentalidade probabilística (que não se conforma que a gente tenha de seguir apenas um caminho na árvore da vida; que não se conforma que para cada caminho aberto outros se fecham; que não se conforma que a gente esteja preso a um só corpo) tenho plena e total consciência de que se eu tivesse permanecido na engenharia, a esta hora eu estaria dormindo, ansioso para te encontrar no dia seguinte, pois você teria continuado lá, mesmo que aos trancos e barrancos. E ainda que provavelmente jamais admitisse para mim que te amava por conta da minha ética pessoal e medo de te perder (porque quando se sabe que alguém está apaixonado por você e você não corresponde, você involuntariamente acaba modificando a maneira de lidar com a pessoa apaixonada, por mais que se tente disfarçar, afinal, o que paira no ar é a desconfiança). Ou seja, eu ia te amar sem saber que estava te amando. Bonito isso, não é? Ciladas da vida... O mais legal de tudo é que muito provavelmente a minha insatisfação plena com o mundo me levava a crer que estava faltando alguma coisa, pois o amor tem que ser grande, explosivo, pomposo. Eu, ainda por cima, continuaria insatisfeito acreditando que a felicidade estaria onde eu não estava. Não foi a toa que o primeiro poema que eu resolvi compartilhar com você do Álvaro de Campos, aquele do Chevrolet na estrada de Sintra, traz consigo um dos versos mais fenomenais que eu já li na língua portuguesa e que me define com muita precisão (não por acaso os quero na minha lápide, como meu epitáfio):

Vou passar a noite a Sintra por não poder passa-la em Lisboa,
Mas quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.

De qualquer maneira não adiantaria nada que eu tivesse a certeza dos meus sentimentos em relação a você, pois o tal do amor não se conjuga no singular. Se assim o fosse eu me sentiria completo. Por outro lado, olha como é engraçado, eu estava por esses dias comentando com o Tio Beto que se eu não tivesse te abandonado, se eu não tivesse abandonado a EQ eu jamais me realizaria academicamente (como não me realizei ainda, embora esteja mais próximo disso hoje) e mais do que isso: jamais conheceria pessoas que, como você, são tão essenciais a minha vida. É foda isso, porque as pessoas importantes que atravessam a minha vida criam raízes fundas e irreparáveis. E como eu sou carente e apegado, fica difícil viver assim. Eu queria ser do tamanho do mundo, não para vigiar as pessoas, mas sim para estar próximo a todo momento daquelas que eu amo, que fazem sentido para mim, de modo a não deixar esse meu amor morrer, as memórias secarem. Sim, sou completamente egoísta nesse sentido. Parece aquela situação em que você vai dormir na casa de uma pessoa “estranha” e que, numa noite de frio, você pega o cobertor e percebe que quando você puxa ele pra cima, seus pés ficam descobertos, ao passo que quando você cobre os pés, as costas ficam desprotegidas. Agora pensa na mesma situação, mas leve em consideração que você, a cada daí que passa, cresce mais e o cobertor, a cada lavagem encolhe. Isso é que é escolher: proteger alguns lugares ao passo que outros, inevitavelmente ficam desprotegidos. De qualquer forma, pode ficar tranqüila porque “a priori” eu já sei que essas minhas palavras não tem efeito, pois elas só tem relevância quando são proferidas pela pessoa certa. O que eu te peço é que ao menos você tome como lição tudo o que eu lhe disse nessas últimas cartas, pois é melhor aprender com os erros dos outros do que errando. Sim, sou apaixonado (e agora perdi a vergonha de afirmar isso) por você, mas provavelmente você nunca tenha existido. Trata-se de alguém que eu criei ou que agora está no passado ao meu lado em uma fotografia (e que de quando em quando eu tento fazer um esforço para entrar dentro) e ficará por lá por toda a posteridade. Diante de tudo isso, sinceramente, eu só espero que você não cometa o erro que eu cometi, continuo cometendo e sempre cometerei, qual seja, viver essa vida paralela pautada em utopias e idealizações idiotas, participando de monólogos estúpidos como este que você está lendo nesse instante (talvez seja por isso que eu goste tanto de escrever cartas, afinal, para mim elas se constituem como o extremo máximo do conceito de Self do G.H. Mead do qual me valho para legitimar socialmente minha loucura e perseguir uma sensação que eu nem sei qual é). Eu posso até ser um estrangeiro para você hoje em dia, mas pode ter certeza absoluta que durante esse tempo de exílio eu jamais deixei de pensar em você pelo menos uma vez por dia.

(...)