quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Diários (III).

Há pouco fiquei me olhando durante muito tempo no espelho. Tenho a impressão de que meus traços mudam todo dia. Ou não são bem os traços que mudam, porque o olho, o nariz, a boca continuam o mesmo. É uma coisa que está em todos os traços ao mesmo tempo, e ao mesmo tempo em nenhum. Ontem eu estava com raiva, olhei meu rosto e achei que ele tinha uma expressão meio diabólica. Me senti mal só de olhar. Outro dia, estava com uma bruta vontade de abraçar todo mundo, até as pessoas que eu não conhecia. Minha cara estava mansa, quase bonita.

Hoje estou com uma moleza por dentro, uma coisa que não sei bem explicar como é, parece um imenso tapete de algodão embranquecendo tudo. Papai me provocou à hora do almoço, como sempre, mas não reagi. Baixei a cabeça, continuei comendo sem dizer nada. Aí ele parou com a agressão, começou a ser muito gentil e tudo. Então me deu muita raiva. Porque não pode me tratar bem sempre? Será preciso que eu baixe constantemente os olhos para que ele não me magoe? Se for assim, vai me magoar a vida inteira, porque não quero — nunca — baixar os olhos para ninguém.

Está chovendo. Pela janela posso ver, lá embaixo, as pessoas correndo, de capas e guarda-chuvas. As árvores do parque estão todas molhadas, mais verdes. Engraçado, não gosto do meu quarto — das paredes, do móveis —, mas gosto demais das coisas que posso ver pela janela. Das coisas que estão fora dele, porque o que está aqui dentro eu acho muito parecido comigo. E eu não gosto de mim. Ou gosto? Não sei. Talvez pareça não gostar justamente porque gosto muito, então exijo demais de meu corpo, e as coisas erradas que ele faz — são tantas! — me fazem detestá-lo. A gente sempre exige mais das pessoas e das coisas que quer bem, as que queremos mal ou simplesmente não queremos nos são indiferentes.

A chuva serviu de pretexto para não ir à aula. De qualquer maneira, mesmo que não estivesse chovendo, eu não iria. Só que teria que mentir. Pegar os livros, ficar caminhando durante horas pela beira do rio, pela minha praça ou pelas ruas do centro. Tenho faltado muito. E papai e mamãe vão descobrir de qualquer jeito. Mas não me importa. Quero, um dia, não me importar com elas, nem com o que possam pensar ou dizer, nem com qualquer outra pessoa. Ah, como eu queria ser eu mesmo, por um dia, uma hora que fosse. Mas como é difícil, meu Deus, como é difícil.

Invejo a coragem de Marlene, que abandonou os pais e foi viver sozinha num apartamento. Não consigo me imaginar morando longe deles, numa mesma cidade. Eles tomaram conta de mim, dos meus pensamentos, tenho a impressão de que são mais do que eu mesmo. Seria necessário um esforço muito grande para me libertar deles. Seria como arrancar um braço, uma perna. Porque a coisas e a pessoas que fazem parte da minha vida vão aos poucos entrando em mim, depois de algum tempo já não sei dizer o que é meu e o que é delas. Mesmo assim, bem no fundo, há coisas que são só minhas. E embora me assustem às vezes, é delas que mais gosto. Como essa vontade de acabar com tudo, que me dá de vez em quando.

Ontem, caminhando pela beira do rio, eu pensei que, se desse dois passos e um impulso no corpo, em breve tudo estaria terminado. Olhei para a rua também, e aquelas automóveis que passavam zunindo ofereciam uma morte fácil e rápida. Aqui no meu quarto também existem coisas que podem matar — a lâmina no aparelho de barbear, a própria janela de que gosto tanto. No quarto de meus pais há o revólver na gaveta, o vidro de comprimidos para dormir. Na cozinha, gás. No banheiro, aqueles vidros escuros de veneno. É fácil morrer. A toda hora, em todos os lugares, a morte está se oferecendo. Mais difícil é continuar vivendo. Eu continuo. Não sei se gosto, mas tenho uma curiosidade imensa pelo que vai me acontecer, pelas pessoas que vou conhecer, por tudo que vou dizer e fazer e ainda não sei o que será. Ontem, foi com dificuldade que consegui sair de perto do rio. Hoje parece impossível que eu tenha pensado aquilo.

Eu não me conheço. E tenho medo de me conhecer. Tenho medo de me esforçar para ver o que há dentro de mim e acabar surpreendendo uma porção de coisas feias, sujas. O que aconteceria, então? O orgulho de ter conseguido chegar perto de meu coração? Ou uma grande humildade, uma humildade de cão faminto, rabo entre as pernas, costelas aparecendo? Não sei, não sei — minha cabeça quase estala quando faço perguntas, meu pensamento escorrega, se desvia, foge para longe, como se ele também tivesse medo da resposta. E talvez nem seja preciso coragem. Talvez seja necessário apenas um breve impulso, como aquele que me fazia mergulhar de repente na água gelada do açude da fazenda. E eu nem era corajoso por fazer isso, apenas tinha as esquecido por um instante de mim, do meu corpo.

A fazenda. Muitas vezes me dá uma grande saudade daquilo, daquele tempo, de Edu, que só nas férias vinha da faculdade de direito, de vovó com seus álbuns de fotografias, tia Violeta com o seus moranguinhos, Luciana com suas histórias. Principalmente, saudade daquilo que fui e, sei, não sou mais e nunca mais voltarei a ser. Mais logo afasto essas coisas da cabeça. Só trazem tristeza, reavivam coisas que eu não queria mais sentir. Essas lembranças passam pela cabeça sem se deter. São humildes, parecem esperar um aceno para caírem sobre mim. Quase nunca faço esse aceno; ela desaparecem, deixando um gosto e um cheiro muito leves de poeira, armário aberto depois de muito tempo, lençol limpo, café preto com broa de milho. Gosto de tempo, elas deixam.

Tempo. O tempo que faz que estou aqui, escrevendo. Não importa, eu gosto. Até essa dor nas costas que está começando é gostosa, diferente da que me da quando sento para estudar. Mamãe há pouco bateu na porta, depois abriu e perguntou se eu estava bem. Achei engraçado. “Eu nunca estou bem” tive vontade de responder. Ou então: “O que é estar bem?” Preferi dizer que sim: "Sim, mamãe, estou bem." Ela se foi. Não consigo olhar de frente para ela. Aquela barriga enorme me faz baixar os olhos. Não posso aceitar a idéia de que ela vai ter um filho. Sei que é ridículo pensar assim, mas isso me parece — não sei — obsceno, indecente. E não é ciúme da criança que vai nascer. Bom, é melhor parar de escrever essas coisas. Vou riscá-las. Me sinto mal só de pensar nelas.

(Diário I - Limite Branco, Caio Fernando Abreu)

2 comentários:

Anônimo disse...

bonito.

Me fez pensar no primeiro dia em q fui almoçar com um menino que eu não sabia se era tímido ou 'galinha' pra caramba. Até hoje não sei. Fazia frio.

Passando em frente à banca de jornais ele me fez parar, quase bruscamente...

--Olha, vc é mulher. Veja só essa foto (ou era um desenho?), com essa mulher grávida. Não tá esquisita? não parece que o bebê vai nascer pelo lugar errado?

-- ...

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Será que a ternura, a vontade de cuidar, começou ali??

Se ele soubesse o quanto eu entendo ele... se ele soubesse.


Um beijo

Where I'm Anymore disse...

Você é engraçada, Renata!

Beijos!

PS: Vontade de cuidar é bonito.