Minha lâmpada de cabeceira está estragada. Não sei o que é, não entendo dessas coisas. Ela acende e, sem a gente esperar, apaga. Depois acende de novo, para em seguida tornar a apagar. Me sinto igual a ela: também só acendo de vez em quando, sem ninguém esperar, sem motivo aparente. Para a lâmpada pode-se chamar um eletricista. Ele dará um jeito, mexerá nos fios e em breve ela voltará a ser normal, previsível. Mas e eu? Quem desvendará meu interior para consertar meu defeitos?
Puxa, se já acordo de manhã com essas interrogações, imagine o que estarei penando logo à noite... Engraçado, vou-me adensando à medida que o dia avança. Quando chega a hora de dormir estou um poço de profundidade, sinto-me capaz de resolver qualquer problema... Acontece que é hora de dormir, e eu não vou escapar às facilidades da cama para resolver problemas. Nunca escapo das facilidades, aliás, sejam elas quais forem.
Fico imaginando o meu futuro. Não consigo me ver de bigode na cara, barrigudo, uma mulher ao lado mais meia dúzia de filhos. Mas também não consigo me ver de outra maneira. Enfim, não consigo me ver de nenhuma maneira, seja ela qual for. Nem minha cara, nem meu corpo, nem minha vida. Talvez eu não tenha futuro, o que afinal não é tão desesperador assim. Pode ser até um consolo.
Acordei muito cedo hoje. Ainda não lavei o rosto, estou escrevendo de pijama mesmo. Tenho a impressão de que este diário é como um espelho. Ele me reflete todas as vezes que o tomo para escrever. A diferença é que o espelho não me guarda: basta sair da frente dele para que minha imagem se apague. O diário, não, o diário é fiel. Ele me guarda mesmo quando não estou escrevendo: basta abri-lo para que ele me mostre a mim mesmo.
Mamãe passou mal ontem à noite. Eu estava com insônia e lia, quando ouvi seus gemidos. Meu pai levantou-se, deve ter acendido a luz, caminhava, abria gavetas, foi até o banheiro. Depois ouvi que mamãe vomitava. Continuei deitado, lendo ou só olhando as letras porque elas se embaralhavam sem formar sentido. O meu dever seria levantar e ao menos perguntar o que estava acontecendo. “O meu dever”... merda para ele, que não tenho dever nenhum. Ah, se eu pudesse ao menos saber se o que faço é certo, ou e ao menos faço, seja lá o que for, com convicção, mesmo não sendo correto. Certo... dever... — só palavras, rótulos, ordens preestabelecidas, grudadas como cartazes em todas as paredes, para que todo mundo veja. Quem não as segue é apontado e criticado por todos. Nojo, nojo é o que tenho disso, e de todos, e de mim principalmente.
Mas não posso perdoá-los, nem agir de outra maneira. Perdoar de quê? Porque não há nada de que perdoá-los realmente. Eles não fizeram nada. Não, fizeram isto: me criaram com tudo na mãos, um inútil, são os culpados dessa confusão em que estou, dessa vontade só de dormir, dormir muito, para nunca mais acordar. E agir de outra maneira... meu Deus... seria tão fácil. Pensando bem, simplesmente não ajo. Não faço nada. Vez que outra, assisto uma aula ou duas, volto para casa, desvio o olhos da barriga de mamãe, escrevo essa idiotice aqui, caminho à toa, penso em coisas que não têm solução. Essa é a minha “maneira de agir”.
Só tenho passado, o presente é esta viscosidade o futuro não existe. Ah, eu queria ter um objetivo na vida, uma coisa que sugasse todas as minhas forças, conduzisse todos os meus gestos e todas as minhas palavras. Não tenho nada, só este vazio. Tão grande que freqüentemente, duvido até dele próprio. Se tivesse um objetivo — uma vocação, como será uma vocação? — tudo seria diferente. Marlene não sabe a inveja que tenho dela. Quando se queixa da falta de tempo, dos dias que faltam para a exposição, dos quadros que ainda não acabou, quando diz “Maurício, eu já nem sei mais porque entrei nisso, compreende?” Eu fico olhando, olhando, e tenho vontade de responder: “Mas tu ao menos tens com que te preocupar. Eu, nem isso. Nem isso, Marlene.”
Só tenho passado, o presente é esta viscosidade o futuro não existe. Ah, eu queria ter um objetivo na vida, uma coisa que sugasse todas as minhas forças, conduzisse todos os meus gestos e todas as minhas palavras. Não tenho nada, só este vazio. Tão grande que freqüentemente, duvido até dele próprio. Se tivesse um objetivo — uma vocação, como será uma vocação? — tudo seria diferente. Marlene não sabe a inveja que tenho dela. Quando se queixa da falta de tempo, dos dias que faltam para a exposição, dos quadros que ainda não acabou, quando diz “Maurício, eu já nem sei mais porque entrei nisso, compreende?” Eu fico olhando, olhando, e tenho vontade de responder: “Mas tu ao menos tens com que te preocupar. Eu, nem isso. Nem isso, Marlene.”
Uma viagem bem longa, para bem longe daqui, talvez resolvesse, se é que há mesmo algo para ser resolvido. Mas talvez a solução esteja na paisagem interna, não na externa. Talvez eu possa modificar aquela sem modificar esta. O que eu queria era modificar a duas, de uma só vez. Queria ter o que ver, quando olhasse dentro ou fora de mim.
Tenho lido muito. Quando leio certas coisas, me vem certo alento, nem chega a ser uma esperança, um sopro leve que logo se desfaz. Penso: “Talvez eu pudesse...se outros puderam, afinal... talvez eu pudesse também...” Por alguns segundos, quase tenho certeza de que eu poderia tombem criar outras vidas, inventar histórias, enredar-me em outros problemas além dos meus. É só um instante. Para escrever, eu acho, é necessário um desligamento muito grande, um distanciamento enorme de si próprio e das coisas que rodeiam a gente. Não consigo fazer isso. Escrevo, às vezes, mas são coisas medíocres. Uma casca de palavras ocas, coloridas, porque dentro não há absolutamente nada. Afinal, e eu mesmo sou vazio, como poderia criar coisas cheias? Criar. Um dia, quem sabe, depois de muito amar e desamar, querer e não querer, depois de quedas e voltas, avanços e saltos, talvez depois disso tudo reste alguma coisa. E isso, essa sobra, talvez possa ser transformada em outra a que darei o nome de criação, quem sabe.
Tia Clotilde e Maria Lúcia ainda não apareceram. É provável que cheguem hoje. Papai deve estar na cozinha tomando chimarrão. O homem de duas faces. Ou que tenta ter duas faces, porque a de homem da cidade é muito fina, transparente. Por baixo dela sempre aparece a outra, a de homem do campo, acostumado a lidar com bois, ovelhas e cavalos, não com gente. Só o vejo realmente alegre quando é tempo de ir para a fazenda, coisa que faz de dois em dois meses. Quando volta, torna-se ainda mais carrancudo, mais sombrio, mais implicante. E mamãe é “a mulher que acompanha”. Só isso. Casou num tempo em que as mulheres tinham que abaixar a cabeça para seu amo e senhor, sem o direito de questionar se quer a própria escravidão. Ela se submete. Sem interrogações, sem dúvidas, sem nada. E eu talvez traga em mim o germe dessa covardia milenar, estéril. Talvez passe a vida a me interrogar, sem nunca tomar nenhuma decisão. Seria só dizer: “Pronto. É hoje. De agora em diante vai ser diferente.” E começar.
Da cozinha vem o cheiro de café novo. Tenho sorte. Lá fora começa a passar gente que talvez nem saiba o que é isso. Demagogias...
Faz frio. Estou frio por dentro também. Acabei me entristecendo com as coisas que escrevi. As verdades, porque as mentiras não entristecem. Vou à aula, hoje. Não suporto a idéia de ficar trancado aqui durante a manhã toda, sem ter se quer um pensamento dentro da cabeça.
(Diário VI - Limite Branco, Caio Fernando Abreu)
Tenho lido muito. Quando leio certas coisas, me vem certo alento, nem chega a ser uma esperança, um sopro leve que logo se desfaz. Penso: “Talvez eu pudesse...se outros puderam, afinal... talvez eu pudesse também...” Por alguns segundos, quase tenho certeza de que eu poderia tombem criar outras vidas, inventar histórias, enredar-me em outros problemas além dos meus. É só um instante. Para escrever, eu acho, é necessário um desligamento muito grande, um distanciamento enorme de si próprio e das coisas que rodeiam a gente. Não consigo fazer isso. Escrevo, às vezes, mas são coisas medíocres. Uma casca de palavras ocas, coloridas, porque dentro não há absolutamente nada. Afinal, e eu mesmo sou vazio, como poderia criar coisas cheias? Criar. Um dia, quem sabe, depois de muito amar e desamar, querer e não querer, depois de quedas e voltas, avanços e saltos, talvez depois disso tudo reste alguma coisa. E isso, essa sobra, talvez possa ser transformada em outra a que darei o nome de criação, quem sabe.
Tia Clotilde e Maria Lúcia ainda não apareceram. É provável que cheguem hoje. Papai deve estar na cozinha tomando chimarrão. O homem de duas faces. Ou que tenta ter duas faces, porque a de homem da cidade é muito fina, transparente. Por baixo dela sempre aparece a outra, a de homem do campo, acostumado a lidar com bois, ovelhas e cavalos, não com gente. Só o vejo realmente alegre quando é tempo de ir para a fazenda, coisa que faz de dois em dois meses. Quando volta, torna-se ainda mais carrancudo, mais sombrio, mais implicante. E mamãe é “a mulher que acompanha”. Só isso. Casou num tempo em que as mulheres tinham que abaixar a cabeça para seu amo e senhor, sem o direito de questionar se quer a própria escravidão. Ela se submete. Sem interrogações, sem dúvidas, sem nada. E eu talvez traga em mim o germe dessa covardia milenar, estéril. Talvez passe a vida a me interrogar, sem nunca tomar nenhuma decisão. Seria só dizer: “Pronto. É hoje. De agora em diante vai ser diferente.” E começar.
Da cozinha vem o cheiro de café novo. Tenho sorte. Lá fora começa a passar gente que talvez nem saiba o que é isso. Demagogias...
Faz frio. Estou frio por dentro também. Acabei me entristecendo com as coisas que escrevi. As verdades, porque as mentiras não entristecem. Vou à aula, hoje. Não suporto a idéia de ficar trancado aqui durante a manhã toda, sem ter se quer um pensamento dentro da cabeça.
(Diário VI - Limite Branco, Caio Fernando Abreu)
Nenhum comentário:
Postar um comentário