Hoje voltei devagar para casa, com Marlene. Era meio-dia, estava quase frio. Nunca vi um outono tão outono como este. Passamos por uma praça que eu gosto muito. Está bonita, cheia de folhas amareladas caída no chão. Sempre me desvio delas, fico com pena de pisá-las. Disse isso à Marlene. Ela me olhou surpresa e disse: Mas elas já estão mortas, compreende?”.
Marlene é minha única amiga. Mesmo assim, não é ainda aquilo que eu buscava. Ela também parece perdida. Tenho a impressão de que se busca tão freneticamente quanto eu. Não pode ajudar-me. Seria como dois náufragos prestes a afundar quererem dar a mão um ao outro. Acabariam afundando juntos. Além disso, tem seus amigos, tem sua pintura, tem já seu jeito de viver. Eu, nem isso.
Desviei-me do caminho, fomos até o apartamento dela. Está quase vazio de móveis e, fora os quadros nas paredes, no chão, por toda parte, pouca coisa resta. Mesmo assim, é um lugar só dela, e eu a invejo. Mostrou-me o que está pintando atualmente: um rosto muito vago, cheio de sombras acinzentadas por trás, onde se destaca, mais nítido, um cavalo branco. Me senti estranhamente preso ao quadro, mas na hora não compreendi porque. Mais tarde lembrei — em nossa casa antiga, no interior, havia na sala o retrato de um parente morto, que me causava a mesma impressão estranha. Havia também um outro quadro, este no quarto de Edu. Três quadros, estranho. Mas não é rara essa sensação de já ter visto uma coisa da qual estou na frente pela primeira vez. Isso acontece com pessoas, ruas, filmes, livros, paisagens, até mesmo certas palavras parecem já terem sido ditas antes, numa outra dimensão, numa outra camada, num outro tempo. Eu me interrompo e pergunto: “Quando? Onde? Em que lugar? Em que tempo?” A resposta nunca vem, e eu fico pensando se não será uma espécie de aviso, de revelação. Depois acho graça, esqueço. Mas há certos momentos brancos, quando caio dentro de mim mesmo e tudo e torna brilhante, claro demais, e por isso mesmo ofusca e eu não posso ver o que há ao redor.
Hoje aconteceu uma coisa engraçada, que atestou mais uma vez a minha incoerência comigo mesmo. Vivo imaginando que de repente vão aparecer fadas ou gênios na minha frente para perguntar o que eu desejo. Hoje pensei sério: se me perguntassem o que mais desejo na vida, não saberia responder. Quero tudo. Mas esse “tudo” é tão grande, tão vago, que me sinto estonteado. É preciso ir limitando meu sonho, apagando a linha supérflua, corrigindo as arestas, até restar somente o centro, o âmago, a essência. Mas qual será esse centro, meu Deus, que não encontro?
Sinto-me terrivelmente vazio. Há pouco estive chorando, sem saber exatamente por quê. À vezes odeio esta vida, estas paredes, essas caminhadas de casa para a aula, da aula para casa, esses diálogos vazios, odeio até este diário, que não existiria se eu não me sentisse tão só. O que eu queria mesmo era um ombro amigo onde pudesse encostar a cabeça, uma mão passando na minha testa, uma outra mão perdida dentro da minha. O que eu queria era alguém que me recolhesse como um menino desorientado numa noite de tempestade, me colocasse numa cama quente e fofa, me desse um chá de laranjeira e me contasse uma história. Uma história longa sobre um menino só e triste que achou, uma vez, durante uma noite de tempestade, alguém que cuidasse dele.
Mas gosto, gosto das pessoas. Não sei me comunicar com elas, mas gosto de vê-las, de estar a seu lado, saber suas tristezas, suas esperas, suas vidas. Às vezes também me dá uma bruta raiva delas, de sua tristeza, sua mesquinhez. Depois penso que não tenho o direito de julgar ninguém, que cada um pode — e deve — ser o que é, ninguém tem nada com isso. Em seguida, minha outra parte sussurra em meus ouvidos que aí, justamente aí, está o grande mal das pessoas: o fato de serem como são e ninguém poder fazer nada. Só elas poderiam fazer alguma coisa por si próprias, mas não fazem porque não se vêem, não sabem como são. Ou, se sabem, fecham os olhos e continuam fingindo, a vida inteira fingindo que não sabem.
Eu gostaria de ir embora para uma cidade qualquer, bem longe daqui, onde ninguém me conhecesse, onde não me tratassem com consideração apenas por eu ser “o filho de fulano” ou “o neto de beltrano”. Onde eu pudesse experimentar por mim mesmo as minhas asas para descobrir, enfim, se elas são realmente fortes como imagino. E se não forem, mesmo que quebrassem ao primeiro vôo, mesmo que após um certo tempo eu voltasse derrotado, ferido, humilhado — mesmo assim restaria o consolo de ter descoberto que valho o que sou. É muito confortável bancar o infeliz e angustiado quando se vive num bom apartamento, quando se tem um copo de leite quente toda noite antes de dormir, uma mesada no fim do mês e uma mãe que basta estalar os dedos para dobrar-se a meus pés como uma escrava oriental. Ter demais é o meu mal. Se tivesse que batucar numa máquina de escrever todos os dias num escritório cheio de gente preocupada demais consigo mesma para dar atenção aos meus problemas, e tivesse que andar em ônibus superlotados, usar roupas velhas e sapatos furados, então poderia saber se existe ou não essa força que em vão tento encontrar em meu corpo.
Tem sido tudo muito fácil para mim, fácil demais. Às vezes desejo ardentemente que aconteça urna desgraça, uma catástrofe que me jogue ao nível do chão, para me obrigar a despir as máscaras, o falsos gestos, as falsas palavras. Uma coisa que me torne ínfimo, ainda mais confuso e só do que sou, que me deixe a sós comigo mesmo, nu, na frente de um espelho, a investigar a minha verdadeira condição. Então eu saberia, pela primeira vez eu poderia saber. Então viria a solução final, definitiva. Levantar-me aos poucos, como um pó-de-vento, lentamente crescendo, incorporando outros seres a mim, e girando, girando sempre, tornar-me tormenta, furacão, vendaval, terremoto, cataclismo. Ou me dissolveria em poeira à primeira brisa que soprasse — quem sabe?
Fico pensando se viver não será sinônimo de perguntar. A gente se debate, busca, segura o fato com duas mãos sedentas e pensa: “Achei! Achei!”, mas ele escorrega, e espatifa em mil pedaços, como um vaso de barro coberto apenas por uma leve camada de louça. A gente fica só, outra vez, e tem que começar do nada, correndo loucamente em busca dos outros vasos que vê. Cada um que surge parece o último. Mas todos são de barro, quebram-se antes que possamos reformular as perguntas. E começamos de novo, mais uma vez, dia após dia, ano após ano. Um dia a gente chega na frente do espelho e descobre: “Envelheci”. Então a busca termina. As perguntas calam no fundo da garganta, e vem a morte. Que talvez seja a grande resposta. A única.
Parei um pouco de escrever, reli as páginas anteriores até a frase acima. Às vezes, relendo coisas que eu mesmo escrevo, tenho a impressão de que nasceram de um outro Maurício. Um Maurício muito velho, desiludido, amargo. Levanto, vou até o espelho, investigo meu rosto. Ele não tem rugas, nem sulcos, nem mesmo a sombra de uma tristeza ou dor muito fundas. É um rosto de animal jovem, um rosto de dezenove anos, que ainda não viu nada, não sentiu nada e, principalmente, que não sabe nada. Mas por trás dele, sinto o outro. O outro que um dia vira a tona, talvez sem sequer anunciar a própria chegada. Nesse dia, levantarei bem cedo e, olhando meus traços refletidos nesse mesmo vidro, descobrirei uma luz nova no fundo dos olhos amassados pelo sono. Haverá como uma aura brilhante em torno dos cabelos despenteados. Na face que de alguma forma não será mais a minha, e será definitivamente a minha. “Chegou” pensarei. E tudo será diferente. Ou não?
Mas enquanto ele não chega, vou pingar um ponto final, fechar o caderno, a porta do quarto, chamar o elevador, descer e ficar caminhando horas pelas ruas, ou então me enfiar dentro de um cinema, sem sequer olhar os cartazes ou o nome do filme. Quero ver outras pessoas, outros corpos, outras caras, mesmo que sejam inexpressivos, desconhecidos. Eu também serei inexpressivo e desconhecido para elas, e nesse desconhecimento e nessa inexpressividade mergulharemos todos juntos num filme qualquer, de mãos dadas no escuro, como um bando de meninos dançando a cirandinha.
Marlene é minha única amiga. Mesmo assim, não é ainda aquilo que eu buscava. Ela também parece perdida. Tenho a impressão de que se busca tão freneticamente quanto eu. Não pode ajudar-me. Seria como dois náufragos prestes a afundar quererem dar a mão um ao outro. Acabariam afundando juntos. Além disso, tem seus amigos, tem sua pintura, tem já seu jeito de viver. Eu, nem isso.
Desviei-me do caminho, fomos até o apartamento dela. Está quase vazio de móveis e, fora os quadros nas paredes, no chão, por toda parte, pouca coisa resta. Mesmo assim, é um lugar só dela, e eu a invejo. Mostrou-me o que está pintando atualmente: um rosto muito vago, cheio de sombras acinzentadas por trás, onde se destaca, mais nítido, um cavalo branco. Me senti estranhamente preso ao quadro, mas na hora não compreendi porque. Mais tarde lembrei — em nossa casa antiga, no interior, havia na sala o retrato de um parente morto, que me causava a mesma impressão estranha. Havia também um outro quadro, este no quarto de Edu. Três quadros, estranho. Mas não é rara essa sensação de já ter visto uma coisa da qual estou na frente pela primeira vez. Isso acontece com pessoas, ruas, filmes, livros, paisagens, até mesmo certas palavras parecem já terem sido ditas antes, numa outra dimensão, numa outra camada, num outro tempo. Eu me interrompo e pergunto: “Quando? Onde? Em que lugar? Em que tempo?” A resposta nunca vem, e eu fico pensando se não será uma espécie de aviso, de revelação. Depois acho graça, esqueço. Mas há certos momentos brancos, quando caio dentro de mim mesmo e tudo e torna brilhante, claro demais, e por isso mesmo ofusca e eu não posso ver o que há ao redor.
Hoje aconteceu uma coisa engraçada, que atestou mais uma vez a minha incoerência comigo mesmo. Vivo imaginando que de repente vão aparecer fadas ou gênios na minha frente para perguntar o que eu desejo. Hoje pensei sério: se me perguntassem o que mais desejo na vida, não saberia responder. Quero tudo. Mas esse “tudo” é tão grande, tão vago, que me sinto estonteado. É preciso ir limitando meu sonho, apagando a linha supérflua, corrigindo as arestas, até restar somente o centro, o âmago, a essência. Mas qual será esse centro, meu Deus, que não encontro?
Sinto-me terrivelmente vazio. Há pouco estive chorando, sem saber exatamente por quê. À vezes odeio esta vida, estas paredes, essas caminhadas de casa para a aula, da aula para casa, esses diálogos vazios, odeio até este diário, que não existiria se eu não me sentisse tão só. O que eu queria mesmo era um ombro amigo onde pudesse encostar a cabeça, uma mão passando na minha testa, uma outra mão perdida dentro da minha. O que eu queria era alguém que me recolhesse como um menino desorientado numa noite de tempestade, me colocasse numa cama quente e fofa, me desse um chá de laranjeira e me contasse uma história. Uma história longa sobre um menino só e triste que achou, uma vez, durante uma noite de tempestade, alguém que cuidasse dele.
Mas gosto, gosto das pessoas. Não sei me comunicar com elas, mas gosto de vê-las, de estar a seu lado, saber suas tristezas, suas esperas, suas vidas. Às vezes também me dá uma bruta raiva delas, de sua tristeza, sua mesquinhez. Depois penso que não tenho o direito de julgar ninguém, que cada um pode — e deve — ser o que é, ninguém tem nada com isso. Em seguida, minha outra parte sussurra em meus ouvidos que aí, justamente aí, está o grande mal das pessoas: o fato de serem como são e ninguém poder fazer nada. Só elas poderiam fazer alguma coisa por si próprias, mas não fazem porque não se vêem, não sabem como são. Ou, se sabem, fecham os olhos e continuam fingindo, a vida inteira fingindo que não sabem.
Eu gostaria de ir embora para uma cidade qualquer, bem longe daqui, onde ninguém me conhecesse, onde não me tratassem com consideração apenas por eu ser “o filho de fulano” ou “o neto de beltrano”. Onde eu pudesse experimentar por mim mesmo as minhas asas para descobrir, enfim, se elas são realmente fortes como imagino. E se não forem, mesmo que quebrassem ao primeiro vôo, mesmo que após um certo tempo eu voltasse derrotado, ferido, humilhado — mesmo assim restaria o consolo de ter descoberto que valho o que sou. É muito confortável bancar o infeliz e angustiado quando se vive num bom apartamento, quando se tem um copo de leite quente toda noite antes de dormir, uma mesada no fim do mês e uma mãe que basta estalar os dedos para dobrar-se a meus pés como uma escrava oriental. Ter demais é o meu mal. Se tivesse que batucar numa máquina de escrever todos os dias num escritório cheio de gente preocupada demais consigo mesma para dar atenção aos meus problemas, e tivesse que andar em ônibus superlotados, usar roupas velhas e sapatos furados, então poderia saber se existe ou não essa força que em vão tento encontrar em meu corpo.
Tem sido tudo muito fácil para mim, fácil demais. Às vezes desejo ardentemente que aconteça urna desgraça, uma catástrofe que me jogue ao nível do chão, para me obrigar a despir as máscaras, o falsos gestos, as falsas palavras. Uma coisa que me torne ínfimo, ainda mais confuso e só do que sou, que me deixe a sós comigo mesmo, nu, na frente de um espelho, a investigar a minha verdadeira condição. Então eu saberia, pela primeira vez eu poderia saber. Então viria a solução final, definitiva. Levantar-me aos poucos, como um pó-de-vento, lentamente crescendo, incorporando outros seres a mim, e girando, girando sempre, tornar-me tormenta, furacão, vendaval, terremoto, cataclismo. Ou me dissolveria em poeira à primeira brisa que soprasse — quem sabe?
Fico pensando se viver não será sinônimo de perguntar. A gente se debate, busca, segura o fato com duas mãos sedentas e pensa: “Achei! Achei!”, mas ele escorrega, e espatifa em mil pedaços, como um vaso de barro coberto apenas por uma leve camada de louça. A gente fica só, outra vez, e tem que começar do nada, correndo loucamente em busca dos outros vasos que vê. Cada um que surge parece o último. Mas todos são de barro, quebram-se antes que possamos reformular as perguntas. E começamos de novo, mais uma vez, dia após dia, ano após ano. Um dia a gente chega na frente do espelho e descobre: “Envelheci”. Então a busca termina. As perguntas calam no fundo da garganta, e vem a morte. Que talvez seja a grande resposta. A única.
Parei um pouco de escrever, reli as páginas anteriores até a frase acima. Às vezes, relendo coisas que eu mesmo escrevo, tenho a impressão de que nasceram de um outro Maurício. Um Maurício muito velho, desiludido, amargo. Levanto, vou até o espelho, investigo meu rosto. Ele não tem rugas, nem sulcos, nem mesmo a sombra de uma tristeza ou dor muito fundas. É um rosto de animal jovem, um rosto de dezenove anos, que ainda não viu nada, não sentiu nada e, principalmente, que não sabe nada. Mas por trás dele, sinto o outro. O outro que um dia vira a tona, talvez sem sequer anunciar a própria chegada. Nesse dia, levantarei bem cedo e, olhando meus traços refletidos nesse mesmo vidro, descobrirei uma luz nova no fundo dos olhos amassados pelo sono. Haverá como uma aura brilhante em torno dos cabelos despenteados. Na face que de alguma forma não será mais a minha, e será definitivamente a minha. “Chegou” pensarei. E tudo será diferente. Ou não?
Mas enquanto ele não chega, vou pingar um ponto final, fechar o caderno, a porta do quarto, chamar o elevador, descer e ficar caminhando horas pelas ruas, ou então me enfiar dentro de um cinema, sem sequer olhar os cartazes ou o nome do filme. Quero ver outras pessoas, outros corpos, outras caras, mesmo que sejam inexpressivos, desconhecidos. Eu também serei inexpressivo e desconhecido para elas, e nesse desconhecimento e nessa inexpressividade mergulharemos todos juntos num filme qualquer, de mãos dadas no escuro, como um bando de meninos dançando a cirandinha.
(Diário III - Limite Branco, Caio Fernando Abreu)
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