terça-feira, 25 de novembro de 2008

Diários (VIII).

A derrubada dos ídolos. Quatro palavras lidas não sei em que livro, não sei em que tempo, não me saíram da cabeça durante o dia todo. É nisso que me faz pensar a chegada de Edu. Quando vi aquele sujeito gordo e chato não consegui relacioná-lo com o Edu da minha infância. Senti raiva dele — deste de agora, porque o antigo era alguém que eu tinha idealizado. Tinha posto de lado na memória. Pronto: uma meta a alcançar. Era a única coisa a que eu me apegava quando me perguntava vagamente o que queria ser, um dia. Na verdade, o que eu queria ser não chegava a se definir, mais havia o como eu queria ser. Igual a Edu. Era alguma coisa.

A figura gorda que me perguntou “como é que vai a vida” não é mais o Edu de antes, não é o que eu quero ser. Fiquei durante muito tempo trancado no quarto hoje. E tive que lutar várias vezes contra o desejo de chorar. Ainda estou lutando. Não vou chorar. Esse homem gordo em que Edu se transformou não merece ser chorado por mim.

Então me vem o medo, a dúvida, a pergunta: será que eu também ficarei assim? Edu era revoltado, achava ridículas as reuniõezinhas familiares, falava em “burguesia decadente” que eu não sabia direito o que era, mas gostava porque fazia tio Pedro ficar furioso. Nas férias, quando ele vinha, lia livro em língua estrangeira — francês, acho. Um dia, some, mas permanece intacto na minha memória: lendo seu livro estrangeiro, repetindo suas palavras bonitas. Agora volta. E volta desse jeito, falando na mulher, nos filhos “geniais” falando em bois e marcas de cigarro com papai, discutindo futebol: igual a todos. Me pergunto o que poderá ter acontecido para modificá-lo assim. Forjo desculpas melodramáticas, lugares comuns — “a luta pela sobrevivência”, “o peso do cotidiano”, “a carga das responsabilidades”. Mas não me satisfazem. Nenhuma luta haverá jamais de me embrutecer, nenhum cotidiano será tão pesado a ponto de me esmagar, nenhuma carga me fará baixar a cabeça.

Quero ser diferente. Eu sou. E se não for, me farei. Não vejo sentido em viver uma vida dessas: uma mulher provavelmente chata como ele, dois filhos iguais a milhões de crianças pelo mundo afora — e todas vaticinadas: “Esta será um gênio.” Crianças que depois crescem, e enquanto crescem os pais vão limitando seus sonhos: “Não será um gênio, mas será milionário. Não será milionário, mas viverá com facilidade. Não viverá com facilidade, mas será um homem de bem.” Dificilmente chegam a admitir esta última frase, mas na maioria dos casos ela serviria: “Não será um homem de bem, será um medíocre.” E essa turba de genialidades frustradas gerará outros geniozinhos que passarão pelo mesmo processo, para darem origem a mais uma série de medíocres. E assim pela vida afora, que são isso as gerações.

Meus pais decerto me vêem do mesmo modo. Em que grau estarei? Já terei caído na sua escala de valores até o ponto de ser chamado de medíocre? Talvez, mas isso não me importa. Não deve me importar. Eu é que tenho que me fazer, eu é que devo saber se sou medíocre ou não. A opinião alheia não importa. Se por enquanto ainda me debato com isso, e às vezes ajo de maneira contrária a meu pensamento, um dia me libertarei de tudo isso. Mas não depende só de mim. Posso assumir atitudes na frente dos outros, tentar passar a impressão de “evoluído”, de “moderno sem preconceito”. Quando fico sozinho, e o meu rosto que me olha do fundo do espelho. Antes de ficar só, me livro de todos os outros rostos, fico apenas com o meu — um rosto indefinido, de traços ainda vagos, como aqueles fantoches que eu fazia com papier mâché, sentindo prazer em desenhar-lhes feições com a espátula, fazê-los homens ou mulheres, feios ou bonitos, corajosos ou covardes.

É tempo de me fazer, eu sei. E sei que é bom ser ainda indefinido. Pelo menos as deformações não calaram fundo, não se afirmaram em feições. É bom, sim, mas ao mesmo tempo é terrível. Porque me vem o medo de estar agindo errado, de estar gerando feições horríveis, que mais tarde não sairão com facilidade. Não, não é fácil ser a gente mesmo da cabeça aos pés, da unha do dedo mindinho até o último fio de cabelo. Por isso, não posso condenar Edu, não posso condenar meu pai nem minha mãe, nem qualquer outro pessoa. São apenas seres que ficaram no meio do caminho, que não tiveram força suficiente para ir até o fim. Não tiveram, quem sabe, consciência de que estava em suas mãos fazer a si próprios. E se deixaram esmagar pelo tempo, pelos outros, pela sociedade, como meu pai e minha mãe. Como Edu. Mas eu terei força, essa força e essa lucidez que faltaram a eles. Terei vontade. Consciência já tenho, e esse é o primeiro passo. Não sei quais serão os outros, mas saberei dá-los.

Parei um pouco, reli o que escrevi. Uma confusão. Não consigo expressar direito o que sinto, e sinto em forma de calor por dentro, irritação, mal-estar quase físico. Estou perturbado. Foi a chegada de Edu, de tia Clotilde e Maria Lúcia. Várias coisas me despertam esses sentimentos, essa vontade de lutar contra alguma coisa que ainda não veio, ou que talvez veio, veio já, mas eu não a sinto porque ela não e mostra. Seu método de luta subterrâneo, entrincheirado. Ah, alerta, preciso estar alerta para que não me aconteça o que aconteceu a Edu.

Maria Lúcia me surpreende. Não digo que seja uma surpresa agradável. É uma surpresa sem adjetivos, porque ela simplesmente não corresponde ao que eu havia imaginado. Fica calada o tempo todo, lendo, enrolando nos dedos as pontas dos cabelos, olhando pela janela. Quase não nos falamos, não sei como ela é. Fiquei arrependido de mentir que ia estudar latim para não precisar sair com ela. Pensei em pedir desculpas, mas desisti. Deve ser mesmo uma chata, não tenho porque me preocupar com ela.

E, no entanto, me preocupo. Com ela, com Edu, com tia Clotilde, me preocupo com todos, me vem uma vontade louca de “salvá-los”. Salvá-los de quê? Tirar-lhes essa personalidade que vestem, feito roupa, e dar-lhes o que em troca? Ah, essa vontade idiota de fazer os outros antes sequer de ter feito a mim próprio. Vontade que não leva a nada, não traz nada, a não ser, mais uma vez, a vontade lenta de chorar. Chorar porque tudo é errado, porque a pessoas não querem ver dentro de si mesmas, e eu não posso fazer nada por elas, e provavelmente nem por mim mesmo.

(Diário VIII - Limite Branco, Caio Fernando Abreu)

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