domingo, 15 de março de 2009

Carne trêmula.

Na escada de acesso ao bar, do lado de fora, sentada como quem tateia o que não se sabe muito bem o que é, como quem deseja com os pés descalços ao relento. Não me recordo se chovia, embora houvesse tempestade em um dos céus que circunscreviam o local. Às vezes, a água é apenas um pretexto.

De dentro, eu apenas a observava. O mesmo de sempre, a procura das minúcias, dos pequenos retratos, dos indícios. Nada demais, nada de novo, nada de fundamental. Apenas a velha mania de não conseguir ficar alheio ao que está saindo da terra, ao primeiro vestígio visível.

Era uma noite dentro da noite. Disso me recordo bem.

De repente, o corte na cena. Outros flashes, outras possibilidades e aquele apagamento que desloca o eixo para suspender o espanto para o momento mais adequado, impensável. Distrações, um universo em movimento envolto em uma folhagem rala, esparsa, mas ainda assim suficiente para manter aquela espécie de harmonia tênue.

A câmera volta ao primeiro plano abruptamente. Tão abruptamente, devo confessar, que naquele momento não havia reconhecido o elo. Na mesa ao lado, um incômodo. Embora acompanhada, havia algo como um pedido de socorro escondido por entre movimentos desconfortáveis e uma solidão velada. Eu apenas a olhava tomando aquele velho cuidado para o qual me preparo a anos de não ser notado, um cuidado tão eficiente que por vezes eu consigo atingir a plenitude da invisibilidade. Não neste dia.

Aquela coisa piegas dos olhares que se cruzam. Mas não apenas isso, porque olhares se cruzam e descruzam a todo o momento e entre dois olhares há sempre um abismo, por vezes intransponível. Será? Será mesmo? E não costuma sair disso, dessas perguntas que brotam dentro de duas cabeças e que, no entanto, não ligam as solidões. Mas como já disse, não era apenas isso: o incômodo gerou movimento. O reconhecimento provocou ação. Não minha.

Sentado, não acreditei quando a vi arrumar algumas coisas e rapidamente partir em minha direção. E agora? Sim, tive um momento de pânico. Aquela velha conhecida sensação de não saber o que fazer. Fiquei rígido. Quebrar o silêncio é sempre uma despedida. Novamente, não coube a mim tal tarefa. Verdade seja dita, não entendi muito bem o que ela me dizia. Em parte pelo enorme barulho que tomava o ambiente; em parte porque as palavras que saiam de dentro daquele mistério, de tão urgentes, se atropelavam. Talvez este último fato fosse culpa do álcool. Mas isso pouco importa.

O que importa na verdade, é o que ali se desenrolava, mesmo com dificuldade. Palavras esparsas, sentimentos desconexos para os quais eu apenas assentia enquanto tentava juntar os cacos de vidro dentro de mim. Ela olhava, dizia com convicção, calava. Aquela velha coisa do ‘tenho-que-me-mostrar-forte-mesmo-que para-um-desconhecido’. Só que não tava funcionando, até mesmo pelo fato d’eu ser um (des)conhecido – e talvez essa tenha sido a grande magia.

Disse que tinha terminado um namoro recentemente, que estava sozinha, para no momento seguinte dizer que namorava o baixista da banda. Sugeri ir para a sala anterior do bar, para que pudéssemos conversar melhor. Em vez de ir para tal local, ela apenas se dirigiu para a parte anterior da mesma sala, o que não melhorava em nada nossa comunicação – embora eu a entendesse de uma maneira perfeitamente difusa.

Estávamos em pé a uma distância praticamente – e por vezes realmente - nula. Os corpos se tocavam como quem precisa de um apoio para se manter. Cada um por conta de seus respectivos motivos. ‘A maioria das pessoas gosta do que é fútil, gosta de viver na superfície’. Os cacos de vidro até podiam ter voltado a sua forma normal quando do meu processamento, mas ainda assim não deixavam de cortar.

O semblante denunciava. Não foram poucas as vezes em que as palavras simplesmente não conseguiram sair. Olhos nos olhos: tentava dizer e não conseguia: e isso por si só dizia. E como dizia. E olhava para a mesa: ‘Falando sério, eu tenho cara de quem é namorada? Olha só essas meninas...’.

Sem jeito, como de costume, tentei alguma aproximação singela. Resolvi perguntar pelo nome: enquanto a maioria das pessoas gosta de começar pelo começo, eu gosto de começar sempre pelo fim. Silêncio. Isabel. Sou péssimo para apresentações. Sou péssimo em geral, para relações, para contatos. Meu silêncio corta, minhas palavras silenciam. ‘Eu queria encontrar algum objeto pontiagudo’. Eu havia escutado isso? Não queria ter ouvido.

‘Você vai me esfaquear? Brincadeira’.

Tentei novamente chamá-la para ante-sala. ‘Já vou!’. E parou. E começou a esboçar algo como uma verdade concreta dessas que saem de dentro da gente quando não há mais como fugir. E veio. E eu me sentei em uma cadeira. E ela disse: ‘não posso ficar aqui; meu namorado está tocando’. Voltamos a sala.

Sentamos. O barulho fazendo trilha. ‘Eu adoro o que eu faço. Freud, Lacan, sei de tudo. Eu só queria uma chance, um emprego. Coisa pouca. Eu sei que não é coisa pouca, é muita coisa’. Bem vindo ao mundo real. De repente, um pedido de desculpas inesperado: ‘desculpa por apenas falar dos meus problemas, por não ter deixado você falar’. A minha tentativa de soar empático foi recebida com um soco:

- Fica tranqüila, até porque eu sou melhor ouvinte do que falante.
- Esse é o problema da maioria das pessoas.

Verdade. Doeu porque era verdade, porque ela estava absolutamente certa.

‘Eu queria apenas algum objeto de metal. Você nunca vai ter noção da sensação de ter um objeto de metal entranhado na carne. Eu parei de fazer isso. Não precisava que fosse algo tão profundo, apenas...’. As palavras foram o de menos. A dor estava ali, na maneira como ela sentia a faca imaginária, na forma como procurava extrair alguma espécie de gozo a partir do limite máximo que conseguia suportar. A vulnerabilidade de uma pessoa diante dos nossos olhos é contagiosa. Estremeci – por dentro. Porque por mais que muito do que ela me dizia por diversas vezes já havia feito – e na verdade ainda faz – parte dos meus pensamentos, ouvir isso cristalizado, de fora, tem sempre um sabor mais amargo.

- E você, o que faz?
- Comunicação Social.
- Você ta fodido. Não tô querendo ser pessimista nem te ofender, mas você tá realmente fodido.
- Na verdade, eu nunca soube bem o que eu quis fazer.
- Isso é comum no perfil de quem faz Comunicação. Eu também já fiz Comunicação.

Fim do show. Pouco antes dos últimos acordes, Isabel pegou em minhas mãos, olhou no fundo dos meus olhos – quero dizer, como quem ousa me invadir - e me agradeceu por ter compartilhado aquele pequeno tempo da minha vida com ela. Partiu rumo ao camarim.

Saí. Saí, como quem fica. Ânsia de vômito. Dessa vez, diferentemente, sem vômito. Apenas a ânsia, o desconforto, a vontade, a impotência. Quando a luz acende de uma forma tão incandescente, tão intensa, há um instante mágico que antecede o apagão completo e irreversível. Apaguei.

E quem está disposto a ouvir o que a psicóloga tem a dizer?

4 comentários:

Unknown disse...

fênix!

Anônimo disse...

ih, você atraiu uma psicóloga?
ehehehe
esse foi o motivo da reabertura do where?
beijos.

Where I'm Anymore disse...

Atraí entre aspas. É aquela velha coisa das pessoas precisarem de alguém para as ouvir. Alguém de preferencia estranho que não tenha propriedade nenhuma para falar nem para efetuar qualquer juízo de valor. Questão de pura necessidade. Entendo a Isabel. E foi até uma situação interessante para mim. Como já disse, gosto de pessoas que tenham carne e osso e não de 'semi-deuses'. E, para mim, com este gesto ela me mostrou mais humanidade do que muita gente que eu conheço.

Dizer que ela não teve a ver com a abertura do blog seria mentira. Mas não se trata exatamente de um motivo real. Acho que o motivo real foi justamente voltar a querer ter um canal para escrever sobre o que eu penso, quero, desejo. E eu jamais teria saco para começar outro blog, até mesmo pelo quanto este blog significa para mim, de certa maneira. É uma história que engloba uma infinidade de histórias internas e que bem ou mal tem servido como registro efetivo de uma fase da minha vida. Como qualquer fase, tem momentos bons, momentos péssimos, absurdos, inesplicáveis, entediantes. Mas fundamentalmente, independente da natureza, momentos vivos. E infelizmente eu não sei fazer literatura, embora me valha de elementos supostamente literários para narrar e dar vida a minha vida. Logo, de volta ao blog. Vamos ver quanto tempo mais ele dura.

Beijos, coxinha!

Cuida-te!

Anônimo disse...

felicidades com a Isabel-psicóloga, então, garoto!

e já que todo riso é bom
(cada um com suas idéias fixas!!),vou deixar um que eu
detesto, mas de repente
é o que vc realmente precisa
ou gosta:

huahuahuahua!

ps: qdo te falei do tim-tim, atentava para o 'diálogo' dos
comentários. o problema é que, de
verdade, com vc só existe monólogo. tanto que sua resposta foi totalmente egocêntrica, exaltando a qualidade do seu próprio texto. enfim, fazer o que, né? o texto cujo título fala de batman e robin é du cacete... imagens que já vi claramente, não em prosa ou poesia, mas na vida, e que mostram realmente q o q importa entre duas nuvens, duas pedras ou duas estrelas é o espaço vago entre elas... daqui uns 28 anos quem sabe veremos de novo nossas 'pedras-estrelas' num giro que nos parecerá diferente, como se pudessem mesmo se aproximar. o pior é que nada nos garante, mesmo depois de tanto tempo, q mais uma vez não será apenas engano, desencontro, pura invenção.

abs
da sua nova amiga,Joaninha,
que em 30 de março
vai completar 12 anos