24 de abril de 1936.
É preciso já ter sentido o anseio da autodestruição. Não falo do suicídio: gente como nós, apaixonada pela vida, pelo imprevisto, pelo prazer de “narrá-la”, não pode chegar ao suicídio senão por imprudência. Além disso, o suicídio aparece agora como um daqueles heroísmos míticos, uma daquelas fabulosas afirmações de dignidade do homem diante do destino, que são interessantes sob forma de estátuas, mas nos deixam na mesma.
O autodestruidor é ao mesmo tempo um tipo mais desesperado e utilitário. O autodestruidor se esforça por descobri em si todas as mazelas, todas as abjeções, e por favorecer essas predisposições à aniquilação, procurando-as, inebriando-se e deleitando-se com elas. O autodestruidor é, afinal, mais seguro de si que qualquer vencedor do passado, pois sabe que o fio do apego ao amanhã, ao possível, ao prodigioso futuro, é um cabo mais forte – ao se dar o último repuxo – que uma fé ou integridade qualquer.
O autodestruidor é, sobretudo, comediante e senhor de si. Não deixa passar a oportunidade de sentir-se e provar-se. É um otimista. Espera tudo da vida, e vai-se afirmando para reproduzir, ao toque das mãos do futuro, os sons agudos ou significativos.
O autodestruidor não pode suportar a solidão.
Mas vive no perigo contínuo; de ser surpreendido pelo anseio de construção, de organização, um imperativo moral. É então que sofre sem tréguas, podendo até vir a matar-se.
É preciso observar bem isto: em nossos tempos o suicídio é um modo de desaparecer, comete-se com timidez, de modo silencioso e comprimido. Já não é agir, é padecer.
Será que ainda há de voltar ao mundo o suicídio otimista?
Somente o artista que, através da tragédia vivida, já estiver sutilmente estendendo seus fios construtivos, que, numa palavra, já estiver em processo de incubação criadora, poderá exprimir uma tragédia interior de forma artística, para fins de catarse. Não é possível que a tempestade sofrida com loucura seja seguida de libertação por meio de uma obra, sob pena de suicídio. Tanto que os artistas que realmente se mataram devido a contingências trágicas costumam ser cantores superficiais, diletantes de sensações que em seus cancioneiros jamais fizeram qualquer alusão ao câncer que os ia roendo lá fundo. Por aí que se aprende que o único jeito de escapar do abismo é encará-lo, medi-lo, sondá-lo, descer até ele.
Sofrer injustiça traz um desconsolo tonificante – como a manhã de inverno. Revigora o fascínio da vida, segundo nossos mais ciosos desejos; devolve a sensação de nosso valor diante das coisas; adula; enquanto sofrer por mero acaso, infelicidade, é deprimente. Passei por isso e gostaria que a injustiça e a ingratidão tivessem sido maiores ainda. Isso é que se chama viver e não ser precoce aos vinte e oito anos.
Pela humildade. É tão raro, porém, sofrer uma boa injustiça total. Nossos atos são muito tortuosos. Em geral, sempre se descobre que também temos alguma culpa, e lá se vai a manhã de inverno.
Não é só um pouco de culpa, é toda a culpa, não há escapatória. Sempre.
O fato de a facada vir como brincadeira, como passatempo, por parte de pessoa leviana, não abranda a dor lancinante, torna-a mais atroz, levando a meditar sobre a casualidade do ato e sobre a responsabilidade pessoal de quem não previu a queda.
Imaginando que seria um consolo saber que quem feriu está se consumindo em remorsos, que dá importância ao fato? É um consolo que só pode nascer da necessidade de não estar sozinho, de estreitar vínculos com o eu de nós próprios e de outros. Além disso, se a tal pessoa sofresse remorso por ter atormentado não a mim, em particular, e sim a um homem enquanto criatura somente, será que eu havia de desejar esses remorsos? O que é preciso, portanto, é que se reconheça, se lamente e se ame a mim próprio, não ao homem que há em mim.
E será que não se abre espaço para outra tortura, duradoura, ao lembrar que a pessoa que feriu não é leviana, irresponsável nem superficial? Ao lembrar que ela é sempre séria, compreensiva, composta, e que somente em meu caso veio a brincar?
Essa pessoa além de não sofrer remorso, nos ter atormentado, a mim em particular, sente-se até alegre, justamente no meu caso particular. Só haveria um modo de julgar humana esta situação, mas eu me sinto na situação oposta. A coisa está cada vez melhor.
(O Ofício de Viver, Cesare Pavese)
É preciso já ter sentido o anseio da autodestruição. Não falo do suicídio: gente como nós, apaixonada pela vida, pelo imprevisto, pelo prazer de “narrá-la”, não pode chegar ao suicídio senão por imprudência. Além disso, o suicídio aparece agora como um daqueles heroísmos míticos, uma daquelas fabulosas afirmações de dignidade do homem diante do destino, que são interessantes sob forma de estátuas, mas nos deixam na mesma.
O autodestruidor é ao mesmo tempo um tipo mais desesperado e utilitário. O autodestruidor se esforça por descobri em si todas as mazelas, todas as abjeções, e por favorecer essas predisposições à aniquilação, procurando-as, inebriando-se e deleitando-se com elas. O autodestruidor é, afinal, mais seguro de si que qualquer vencedor do passado, pois sabe que o fio do apego ao amanhã, ao possível, ao prodigioso futuro, é um cabo mais forte – ao se dar o último repuxo – que uma fé ou integridade qualquer.
O autodestruidor é, sobretudo, comediante e senhor de si. Não deixa passar a oportunidade de sentir-se e provar-se. É um otimista. Espera tudo da vida, e vai-se afirmando para reproduzir, ao toque das mãos do futuro, os sons agudos ou significativos.
O autodestruidor não pode suportar a solidão.
Mas vive no perigo contínuo; de ser surpreendido pelo anseio de construção, de organização, um imperativo moral. É então que sofre sem tréguas, podendo até vir a matar-se.
É preciso observar bem isto: em nossos tempos o suicídio é um modo de desaparecer, comete-se com timidez, de modo silencioso e comprimido. Já não é agir, é padecer.
Será que ainda há de voltar ao mundo o suicídio otimista?
Somente o artista que, através da tragédia vivida, já estiver sutilmente estendendo seus fios construtivos, que, numa palavra, já estiver em processo de incubação criadora, poderá exprimir uma tragédia interior de forma artística, para fins de catarse. Não é possível que a tempestade sofrida com loucura seja seguida de libertação por meio de uma obra, sob pena de suicídio. Tanto que os artistas que realmente se mataram devido a contingências trágicas costumam ser cantores superficiais, diletantes de sensações que em seus cancioneiros jamais fizeram qualquer alusão ao câncer que os ia roendo lá fundo. Por aí que se aprende que o único jeito de escapar do abismo é encará-lo, medi-lo, sondá-lo, descer até ele.
Sofrer injustiça traz um desconsolo tonificante – como a manhã de inverno. Revigora o fascínio da vida, segundo nossos mais ciosos desejos; devolve a sensação de nosso valor diante das coisas; adula; enquanto sofrer por mero acaso, infelicidade, é deprimente. Passei por isso e gostaria que a injustiça e a ingratidão tivessem sido maiores ainda. Isso é que se chama viver e não ser precoce aos vinte e oito anos.
Pela humildade. É tão raro, porém, sofrer uma boa injustiça total. Nossos atos são muito tortuosos. Em geral, sempre se descobre que também temos alguma culpa, e lá se vai a manhã de inverno.
Não é só um pouco de culpa, é toda a culpa, não há escapatória. Sempre.
O fato de a facada vir como brincadeira, como passatempo, por parte de pessoa leviana, não abranda a dor lancinante, torna-a mais atroz, levando a meditar sobre a casualidade do ato e sobre a responsabilidade pessoal de quem não previu a queda.
Imaginando que seria um consolo saber que quem feriu está se consumindo em remorsos, que dá importância ao fato? É um consolo que só pode nascer da necessidade de não estar sozinho, de estreitar vínculos com o eu de nós próprios e de outros. Além disso, se a tal pessoa sofresse remorso por ter atormentado não a mim, em particular, e sim a um homem enquanto criatura somente, será que eu havia de desejar esses remorsos? O que é preciso, portanto, é que se reconheça, se lamente e se ame a mim próprio, não ao homem que há em mim.
E será que não se abre espaço para outra tortura, duradoura, ao lembrar que a pessoa que feriu não é leviana, irresponsável nem superficial? Ao lembrar que ela é sempre séria, compreensiva, composta, e que somente em meu caso veio a brincar?
Essa pessoa além de não sofrer remorso, nos ter atormentado, a mim em particular, sente-se até alegre, justamente no meu caso particular. Só haveria um modo de julgar humana esta situação, mas eu me sinto na situação oposta. A coisa está cada vez melhor.
(O Ofício de Viver, Cesare Pavese)
Nenhum comentário:
Postar um comentário