domingo, 22 de março de 2009

Não Comerás.

Nunca pensei que uma simples ida a lanchonete poderia render um aprendizado tão profundo sobre a vida. Parafraseando o meu queridíssimo Álvaro de Campos em Tabacaria, eu posso dizer com precisão que ‘os manuais de etiqueta todos não ensinam mais do que uma ida à lanchonete’.

A Cena

Adentramos eu e o Tio Beto no recinto e nos direcionamos a uma mesa. Chega, então, o garçom com o cardápio em mãos.

- Quanta opção, não é mesmo?
- Pois é! Queria voltar aos tempos do Ford T, em que os carros estavam disponíveis em quaisquer cores contanto que fossem pretos!

O garçom, já impaciente, volta uma, duas vezes, sugere e nada. Percorremos todo o cardápio com o benefício da dúvida. Eis que, então, lá pela terceira incursão do nosso querido garçom, finalmente chegamos a um consenso.

- A gente vai querer esse aqui de costelinha!

Eis que o garçom amigavelmente retruca:

- Pessoal, hoje infelizmente a gente não tem costelinha...

E mais uma vez procura a indução:

- Mas tem o modelo X que é o melhor da casa, ainda mais se vocês trocarem o hambúrguer Z pelo Y. Vocês não vão se arrepender! É o sanduíche que mais saí aqui!

Vencidos pelo cansaço, depois do garçom tentar de todas as maneiras possíveis nos convencer das qualidades de tal prato, aceitamos a sugestão.

- Então vamos de X mesmo.

Próximo passo: a bebida.

- E para beber, o que vocês vão querer?
- Eu vou querer uma coca cola.
- E eu vou querer um suco de abacaxi com hortelã.
- Suco de abacaxi só tem de caixinha.
- Ah... Então me vê uma limonada suíça, por favor.

O garçom anota o pedido e volta para o balcão. Alguns minutos depois ele retorna com as bebidas. A coca cola estava quente. Já a limonada suíça não pegava doce de jeito nenhum. E olha que naquela altura o Tio Beto já estava no quarto sachezinho de açúcar! E o quarto nem foi o último. Sorte ele não ser diabético. Mas, ok, afinal, ainda havia o sanduíche pela frente. Não tardou muito e lá estava o sanduíche diante dos nossos olhos. Lindo e perfeitamente arrumado, bem que se diga!

Enquanto eu preferi iniciar o lanche pelas batatas, Tio Beto tirou os palitinhos que seguravam o recheio dentro dos pães e foi direto ao pote. No mesmo instante que dava a sua primeira mordida, eu tentava compreender em sua expressão facial indícios que atestassem o sabor do petardo. Não percebi lá tanta empolgação e por isso perguntei ‘e aí, Beto?’. Ele, por sua vez, hesitou. E hesitação não costuma ser um bom sinal. Não era: ‘é...’. Balançou a cabeça, até chegar a um veredicto: ‘normal...’. E completou: ‘não é lá tão apetitoso quanto parecia...’.

Eis que o garçom se aproxima. Pressinto a cena. Tarde demais:

- E aí, o que achou do sanduíche?
- Booom.

Antes mesmo do ‘booom’ sair da boca do meu tio, eu comecei a rir. Limdo! Simplesmente limdo!

Terminei as batatas. Era hora de tirar a prova e saber se tal sanduíche me era ou não tão apetitoso quanto parecia, ou ao menos, quanto o seu preço sugeria. Comecei pelo alface, que considero insosso e que, não raramente acabava por deixar pratos realmente gostosos sem sabor tamanha sua apatia sensível. Sem alface, o caminho estava livre. Porém, aquela sensação insossa ainda se mantinha: não havia absolutamente nada demais no hambúrguer. Nada que justificasse um ‘auê’ especial ou um preço acima da média. Faltava algo...

‘Encheu mas não preencheu’ foi a sensação que ficou no ar quando do fim da refeição. Sensação esta muito mais cara do que a própria conta da lanchonete.

Digressões

Foi justamente diante daquela vasta quantidade de opções de hambúrgueres e sanduíches que, entre mim e o Tio Beto, surgiram algumas digressões e paralelos acerca da 'lanchonete da vida'. Praticamente uma filosofia de boteco sobre o cotidiano. Nada muito planejado, é verdade, mas cuja seqüência de eventos mostrada acima apenas servia para ilustrar e ampliar nossas discussões.

Embora quem freqüente este blog já deva estar familiarizado com os meus temas habituais, nunca custa reforçá-los e trazê-los novamente à baila. Sendo assim, o cardápio simboliza a própria dificuldade que consiste em escolher. A possibilidade de escolha implica necessariamente em uma perda. Por isso a dificuldade. Obviamente há graus e graus de perda e que a dificuldade de se escolher entre um sanduíche ou outro está muito abaixo nesta escala de valores, até porque pode-se voltar ao local em outra oportunidade e se consertar um eventual equívoco. Mas, e quando isso não é possível? Tudo bem que na prática, mesmo a escolha de um mero sanduíche é algo único, pontual e circunstancial e, portanto, irreversível, pois aquele contexto não se repetirá, embora seja passível de 'reparos' no futuro. Mas nem sempre há a possibilidade de um futuro. E quando ‘a primeira vez é sempre a última chance’? A escolha é geralmente a fonte primeira de toda angústia que acaba por nos atravessar ainda mais quando se tem a consciência que entre uma ação e uma hesitação, pode haver uma mudança completa não apenas na sua existência, mas também reflexos em outras pessoas numa escala nunca dantes imaginada. Escolher entre o que se quer e o que se acha certo costuma sempre ser um dilema que parte da mesma base que está associada à dificuldade de se posicionar diante de um cardápio.

Eis que, depois do benefício da dúvida, você escolhe. E ai... é simplesmente surpreendido com a notícia de que não tem o que você pediu. Ou então quando você tem certeza e pede, a opção não está no cardápio; ou, mantida a certeza, ela apenas e tão somente não corresponde aos seus anseios. Uma situação aparentemente banal como uma costelinha que, embora no cardápio, não estava a disposição no dia, um suco que não estava no cardápio e uma coca-cola quente. Tudo em volta da questão do desejo, de uma busca por um prazer, mesmo que efêmero, por uma surpresa. De qualquer modo eu não poderia negar que houve surpresa, afinal, surpresa é sempre um módulo: nunca se sabe o sinal. A ruptura pode ser sempre positiva ou negativa, e quando está relacionada a esta última idéia recebe o nome singelo de frustração. Sim, a coca cola que você esperava estar no quarto estado da matéria, abaixo do gelo, na verdade estava quente. Ou a pessoa de quem você esperava bom senso e compreensão, de repente ficou fria, gelada, no quarto estado da matéria. Parecem paralelos idiotas, mas explicam com exatidão todo o fundamento de uma vida. Por vezes, diante da dificuldade, resta-nos ceder e acatar a escolhas pré-estabelecidas. ‘Entrar no esquema do garçom’, quero dizer. Não deste, necessariamente, mas no de tantos outros ‘garçons’ que estão distribuídos em cada esquina de nossas vidas – e que sim, sejamos justos, ora erram, ora acertam. Lembremo-nos sempre que mesmo optar por não optar é também uma escolha e negar isso seria má-fé.

‘Nem tudo que reluz é ouro’. Um ditado batido, mas que guarda consigo grande sabedoria. Aquela velha falta de sincronia entre o invólucro e o ‘produto-em-si-mesmo’. Algo semelhante as American Beauties: uma rosa lindíssima que não tem cheiro, que não tem vida. Um hambúrguer sem gordura trans, que seja. A aparência em detrimento de uma – ao menos suposta - essência. Quando carece, quando falta o principal: vida. É engraçado, porque isso me lembra duas circunstâncias distintas, mas que guardam relação íntima com o assunto. A primeira delas, apenas para ficar ainda no terreno alimentício, atende pelo nome de Barroco. Uma lanchonete simples, diria até eu meio desleixada, que fica em Mariana, cidade história de Minas Gerais. Quem olha para a lanchonete, simplesmente não dá muita coisa. E no entanto, quando você escolhe um sanduíche, de um valor módico se comparado ao ‘cultuado’ Eddie, você reconhece ali algo que não há cá: sabor. Sim, sabor, quero dizer, vida: prazer. Ok, tem gordura trans a dar com pau, mas é essa gordura que entope nossas veias e artérias o que procuramos para nos sentirmos vivos. E sentir vivo é sempre algo fundamental. Uma sensação como quando conheci uma pessoa e, a primeira vista, não havia ali algo que se pode chamar tradicionalmente de beleza. Não era feia, decerto, mas estava, por outro lado, longe do que se comumente chama de linda. E, no entanto, bastaram algumas palavras para que todas as lógicas tradicionais do mundo se invertessem, todos os fundamentos de estética fossem a merda – sobretudo aqueles que norteiam os padrões fundamentais de beleza que a sociedade apregoa e que se cristalizam em eventos insípidos como os 'desfiles-de-moda' – e aquela tal pessoa, sem mais nem menos, se tornasse linda, inesquecível. Tão inesquecível a ponto d’eu repetir sempre esta mesma história por onde quer que eu passe, a quem quer que eu conheça. Porque havia algo de fundamental ali por debaixo daqueles poros, daquela carne, que simplesmente precisava de caminho para aflorar, para reverberar, para sair e atingir o topo, revestir. E é exatamente nisso que reside todo o perigo do mundo. Porque essa beleza simplesmente não vira carne de açougue, não descola, não sai. Porque, como eu não me canso de dizer é nessa beleza que reside a vida, o gosto, o sal – e eventualmente a cal.

A mesma cal que ficou por queimar caso Tio Beto tivesse se atrevido a transgredir as normas da etiqueta social falando, digamos, a real impressão dele diante do tal hambúrguer. E no fim das contas tudo é uma questão de atrevimento e, em geral, a comodidade é o caminho mais fácil. Ainda mais quando se percebe que quebrar a cara seguidamente dói e que ainda que dor seja quase que sinônimo de vida – embora muitos disso discordem – não nos esqueçamos que a dor realmente dói, deixa marcas e paralisa. Conforme já disse recentemente, falar o que realmente se pensa é sempre um gesto de atrevimento e todo atrevimento tem seu preço, tem suas sanções previstas no código sócio-afetivo. Além do mais, o que faria o garçom caso recebesse a negativa como resposta? O que estava feito, estava feito e pronto. Irreversível. Ouvi um dia me dizerem que crescer rimava com desistir e minha eterna alma adolescente teimava em não acreditar. Mas mais do que desistir, ao que me parece, crescer rima é com resignar. Acreditar nunca é o suficiente quando se percebe que o tudo serve apenas de invólucro para ocultar o nada que todos, a todo custo, tentam colocar para debaixo do tapete. Quantos antes de mim já tiveram as mesmas aspirações de mudança, quantos acreditaram verdadeiramente que podia ser diferente, que o script podia se modificar e não obstante a isso, chegaram a conclusão de que toda luta, no fim das contas, é vã. A todo custo tentam oferecer reinterpretações gloriosas a vontade, ao desafio, mas em termos práticos, ninguém quer nada de novo. A novidade sempre ofusca os nossos sentidos e o que desejamos é sempre um porto seguro e conhecido. Para além disso, meras ‘agressões’ – cujos fundamentos não estamos dispostos a discutir. Põe tudo e coloca na panela do destino. Suspende a sua parte na conta. Jogar o jogo, oras!

Pena que a conta é sempre mais cara do que o valor que está anotado no papel.

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