sábado, 27 de agosto de 2011

Realengo.

Eu mesmo estou descentrado, não sou o que sou, e, no entanto, algo preciso para ter consciência de minha existência, para afirmá-la. Isso mesmo, para afirmá-la. Porque eu sou como um morto. Não existo nem para Barsut. Eles, se quiserem, podem me por na cadei, Barsut pode esbofetear-me mais uma vez, Elsa pode ir-se com outro em minhas barbas, o capitão pode levá-la novamente. Para todos sou a negação da vida. Sou algo assim como o não ser. Um homem que não é ação, logo, não existe. Ou existe apesar de não ser? É e não é. Aí estão esses homens. Certamente têm mulher, filhos, casa. São, talvez, uns miseráveis. Mas se alguém tentasse invadir suas casas, tomar-lhes um centavo ou tocar em suas mulheres, se tornariam feras. E eu, por que não me rebelei? Quem pode responder a essa pergunta? Eu mesmo não posso. Sei que existo assim como negação. E que quando me digo todas essas coisas não estou triste, senão que minha alma fica em silêncio, a cabeça no vácuo. Então, depois deste silêncio e deste vácuo me sobe ao coração a curiosidade do assassinato, curiosidade que deve ser minha última tristeza, a tristeza da curiosidade. Ver como sou através de um crime. Isso, isso mesmo. Ver como se comporta minha consciência e minha sensibilidade na ação de um crime.

No entanto, estas palavras não me dão a sensação do crime do mesmo modo que o telegrama de uma catástrofe na China não me dá a sensação da catástrofe. É como se eu não fosse o que pensa o assassinato, mas outro. Outro que seria como eu um homem ingênuo, uma sombra de homem, à maneira do cinema. Tem relevo, se move, parece que existe, que sofre, e, no entanto, não é nada mais que uma sombra. Falta-lhe vida. Diga, Deus, se isto não está bem raciocinado. Pois bem: o que faria o homem-sombra? O homem-sombra perceberia o fato, mas não sentiria seu peso, porque lhe falta volume para conter um peso. É sombra. Eu também vejo o acontecido, mas não o contenho. Esta deve ser uma teoria nova. Que diria um juiz criminal ao conhecê-la? Dar-se-ia conta de quanto sou sincero? Mas essa gente acredita na sinceridade? Fora de mim, dos limites do meu corpo, existe o movimento, mas para eles a minha vida deve ser tão inconcebível como viver ao mesmo tempo na Terra e na Lua. Eu sou o nada para todos. E, no entanto, se amanhã atiro uma bomba, ou assassino Barsut, me converto no todo, no homem que existe, no homem para o qual infinitas gerações de jurisconsultos preparam castigos, cárceres e teorias. Eu, que sou o nada, de repente porei em movimento esse terrível mecanismo e policiais, secretários, jornalistas, advogados, fiscais, guardiães de cárceres, camburões, e ninguém verá em mim um infeliz, mas o homem anti-social, o inimigo que é preciso separar da sociedade. Isso sim que é curioso! E, no entanto, só o crime pode afirmar a minha existência, como só o mal afirma a presença do homem na Terra. E eu seria o Erdosain, previsto, temido, caracterizado pelo código, e entre os milhares de Erdosains anônimos que infectam o mundo, seria o outro Erdosain, o autêntico, o que é e será. Realmente, é curioso tudo isso. No entanto, apesar de tudo existem as trevas, e a alma do homem é triste. Infinitamente triste. Mas a vida não pode ser assim. Um sentimento interno me diz que a vida não deve ser assim. Se eu descobrisse a particularidade de por que a vida não pode ser assim, me furaria e, como um balão, me desinflaria de todo este vendo te mentira e sobraria de minha aparência atual um homem novo, forte como um dos primeiros deuses de animaram a criação. Com tudo isto perdi o fio da meada. Vejo ou não vejo o Astrólogo? Quem dirá quando me vir chegar outra vez? Talvez me espere. Ele é, como eu, um mistério para si mesmo. Essa é a verdade.

(Os Sete Loucos, Roberto Arlt)

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