São os crimes que a gente comete a cada dia e permanecem impunes. Os estilhaços dos vidros, esparramados pelo chão, das janelas fechadas – agora abertas. Desconsolos cotidianos. Era uma vez um sorriso – mas você não viu. Era uma vez toda vez e sempre, um dia após o outro. Pés descalços no chão imundo, um pequeno ritual de purificação. O semblante não nega, tampouco revela. Eu tenho pensado – e o pensamento é uma luta árdua, onde sempre se perde – no que havia de verdadeiro em mais uma encenação. São começos que na verdade não passam de finais, de estações intermediárias em direção a lugar algum. Mas afetam: afeto. Com os cacos de vidro retalho meu corpo invisível enquanto lá fora, aqui dentro, cai uma chuva caudalosa, que com o tilintar dos pingos d’água abafa o som do vidro. Mas não adianta. A carne exposta, crua, revela as profundas entranhas enquanto o sangue escorre. Será que é o suficiente? É isso o que desejam? Um tapa, um grito, o vermelho, o circo? O espetáculo sobrepuja, arranca aplausos.
Mais uma vez eu estou no meio do acostamento, completamente nu, sem corpo. E continuo negando. Ao fundo, um punhado de convicções em seus ternos e saias, a frente de seus volantes invisiveis. “É assim”, grita um mais esbaforido. Parece que tem razão. Parece que acredita no que diz. Parece, apenas. Basta uma folha seca na pista para desenhar o acidente. O importante é não perder a pose: “é assim!” – mesmo que não seja.
Enquanto vejo a cena, o cansaço me consome. Mesmo assim, por alguns breves instantes, rio, suavemente. Porque embora os olhos estejam voltados para a pista, em verdade, vejo um corpo em movimentos descompassados. Um corpo destituído de beleza – mas por isso mesmo extremamente belo. Suspenso no ar, contido, primário, desproporcional. Há uma velhice no semblante a princípio incompatível: mais desgastada que o próprio tempo, menos vívida que seus gestos. Meu coração bate difusamente. Seu descompasso é meu desacerto. “O que há de verdadeiro nessa encenação?”, mais uma vez me pergunto. Entre mim e eu está a resposta.
Mais uma vez eu estou no meio do acostamento, completamente nu, sem corpo. E continuo negando. Ao fundo, um punhado de convicções em seus ternos e saias, a frente de seus volantes invisiveis. “É assim”, grita um mais esbaforido. Parece que tem razão. Parece que acredita no que diz. Parece, apenas. Basta uma folha seca na pista para desenhar o acidente. O importante é não perder a pose: “é assim!” – mesmo que não seja.
Enquanto vejo a cena, o cansaço me consome. Mesmo assim, por alguns breves instantes, rio, suavemente. Porque embora os olhos estejam voltados para a pista, em verdade, vejo um corpo em movimentos descompassados. Um corpo destituído de beleza – mas por isso mesmo extremamente belo. Suspenso no ar, contido, primário, desproporcional. Há uma velhice no semblante a princípio incompatível: mais desgastada que o próprio tempo, menos vívida que seus gestos. Meu coração bate difusamente. Seu descompasso é meu desacerto. “O que há de verdadeiro nessa encenação?”, mais uma vez me pergunto. Entre mim e eu está a resposta.
5 comentários:
... em A REPÚBLICA, Platão afirma que Deus criou o arquétipo da mesa, o carpinteiro o simulacro desse arquétipo, o pintor o simulacro desse simulacro. Esta NAO é a missão da verdadeira arte. É uma calamidade. Uma arte imitativa: um esvaecimento ao cubo.
Sábato(pai do Martin!)/O escritor e seus fantasmas.
espero que esteja tudo bem aí em BH!
abs
Sábato é genial. Acho que o Sobre Heróis e Tumbas é o livro da minha vida, definitivamente.
A única coisa que falta em BH é você, Renata!
Um beijo, menina!
tô relendo o Sábato e não tem jeito de não pensar em te mandar algumas coisas... queria que pensasse nesse trecho:
'(...) o espírito, expressão do racional e transcendente no homem, perturba e até mesmo destrói a vida criadora da alma, que é irredutível ao racional, ao impessoal e objetivo que é próprio do espírito. A alma é uma força que se acha em inextrincável vinculação com a natureza vivente, criadora de símbolos e mitos, capaz de interpretar os enigmas que se apresentam ante o homem e que o espírito não faz mais que conjurar.
O espírito destrói o mundo dos mitos pela ação mecânica dos conceitos, é a despersonalização e a morte. O espírito julga enquanto a alma vive. E a alma é a única potência do homem capaz de solucionar os conflitos e antinomias que o espírito estende como uma rede sobre a realidade fluente. Só os simbolos que a alma inventa permitem chegar à verdade última do homem, não os secos conceitos da ciência. Só a alma pode expressar o fluxo do ser vivente, o real-não-racional.'
\o escritor e seus fantasmas
bjs
É Renata. Salve salve o Sábato. Ainda por agora eu estive pensando o quanto seria legal conversar cara a cara com o pai do Martin, falar sobre a vida, ouvir causos dele. Seria bonito. Ele talvez entendesse muitas das coisas que me afligem. É incrível como o livro das 'tumbas' bate tão precisamente com tudo que eu penso, sinto, vejo, vivo. Absurdo. Tanto que o li duas vezes - e convenhamos que ler 450 páginas duas vezes é realmente algo difícil. E nas duas o efeito foi o mesmo: mágico.
Obrigado pelo trechinho, pelo Sábato, por tudo.
Abração,
Guilherme.
abs!
que a magia nos acompanhe sempre.
cada um com sua idéia de sonho,de tempo, de luta, doçura, prazer, dor, alegria e luz.
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