Tratou de aturdir-se com o trabalho durante aquela semana interminável, lendo, caminhando, indo ao cinema. Procurava Bruno e, embora desejasse falar-lhe dela, era incapaz até mesmo de pronunciar seu nome; e como Bruno pressentia o que se passava em seu espírito, também recusava o tema e falava de outras coisas ou de assuntos genéricos. Momentos em que Martin se animava a dizer algo que também parecia ter um sentido genérico, pertencente a esse mundo abstrato e descarnado das idéias puras, mas que em realidade era a expressão apenas despersonalizada de suas angústias e esperanças. E assim, quando Bruno lhe falava do absoluto, Martin perguntava, por exemplo, se o amor verdadeiro não era precisamente um desses absolutos; pergunta na qual a palavra "amor", no entanto, tinha tanto a ver com a empregada por Kant ou Hegel como a palavra "catástrofe" com um descarrilamento ou um terremoto, com seus mutilados e mortos, com seus gemidos e sangue. Bruno respondia que, no seu entender, a qualidade do amor que existe entre dois seres que se querem muda de um instante para outro, tornando-se de repente sublime, descendo logo até a trivialidade, convertendo-se mais tarde em algo afetuoso e cômodo, para repentinamente converter-se em um ódio trágico ou destrutivo.
- Porque há vezes em que os amantes não se querem, ou em que um deles não quer ao outro, ou o odeia, ou o menospreza.
Enquanto pensava naquela frase que uma vez lhe havia dito Jeannete: "L'amour c'es t une personne qui souffre et une autre qui s'emmerde”[1]. E lembrava, observador de infelizes que era, aquele casal um dia na penumbra de um café, em um canto solitário, o homem macerado, sem se barbear, sofrendo, lendo, relendo pela centésima vez uma carta certamente dela -, recriminando, pondo o absurdo papel de testemunha de sabe lá que compromissos ou promessas; enquanto ela, nos momentos em que ele se concentrava encarniçadamente em alguma frase da carta, olhava o relógio e bocejava.
E como Martin lhe perguntou se entre dois seres que se querem tudo não deve ser nítido, tudo transparente e edificado sobre a verdade, Bruno respondeu que quase nunca se pode dizer a verdade quando se trata de seres humanos, pois só serve para produzir dor, tristeza e destruição. Acrescentando que sempre havia alentado o projeto ("mas eu não sou nada mais que isto: um homem de puros projetos", acrescentou sorrindo com tímido sarcasmo), havia alentado o projeto de escrever um romance ou uma obra de teatro sobre isso: a história de um rapaz que se propõe a dizer sempre a verdade, sempre, custe o que custar. Desde logo semeia a destruição, o horror e a morte à sua passagem. Até terminar com sua própria destruição, com sua própria morte.
- Então é preciso mentir - aduziu Martin com amargura.
- Digo que nem sempre se pode dizer a verdade. A rigor, quase nunca.
- Mentiras por omissão?
- Algo assim - replicou Bruno, observando-o de lado, temeroso de feri-lo.
- Quer dizer que não acredita na verdade?
- Creio que a verdade fica bem na matemática, na química, na filosofia. Não na vida. Na vida é mais importante a ilusão, a imaginação, o desejo, a esperança. Ademais, sabemos por acaso o que é a verdade? Se eu digo que aquele pedaço de janela é azul, digo uma verdade. Mas é uma verdade parcial, e portanto uma espécie de mentira. Porque esse pedaço de janela não está só, está em uma casa, em uma cidade, em uma paisagem. Está rodeado do gris desse muro de cimento, do azul-claro deste céu, daquelas nuvens alongadas, de infinitas coisas mais. E se não digo tudo, absolutamente tudo, estou mentindo. Mas dizer tudo é impossível, mesmo neste caso da janela, de um simples pedaço da realidade física. A realidade é infinita e além disso infinitamente matizada, e se me esqueço de um só matiz já estou mentindo. Agora, imagine o que é a realidade dos seres humanos, com suas complicações e rodeios, contradições e demais nuances. Pois muda a todo instante que passa, e o que éramos há um momento não o somos mais. Somos, por acaso, a mesma pessoa? Temos, por acaso, os mesmos sentimentos? Pode-se gostar de alguém e de repente desgostar e até mesmo detestá-lo. E se quando desgostamos dele cometemos o erro de dizer-lhe isso, será uma verdade, mas uma verdade momentânea, que não mais será verdade dentro de uma hora ou no outro dia, ou em outras circunstâncias. E por outro lado o ser a quem queremos dizer isso acreditará que essa é a verdade, a verdade para sempre e desde sempre. E se afundará no desespero.
[1] "O amor é uma pessoa que sofre e outra que se entedia."
(Sobre Heróis e Tumbas, Ernesto Sábato)
- Porque há vezes em que os amantes não se querem, ou em que um deles não quer ao outro, ou o odeia, ou o menospreza.
Enquanto pensava naquela frase que uma vez lhe havia dito Jeannete: "L'amour c'es t une personne qui souffre et une autre qui s'emmerde”[1]. E lembrava, observador de infelizes que era, aquele casal um dia na penumbra de um café, em um canto solitário, o homem macerado, sem se barbear, sofrendo, lendo, relendo pela centésima vez uma carta certamente dela -, recriminando, pondo o absurdo papel de testemunha de sabe lá que compromissos ou promessas; enquanto ela, nos momentos em que ele se concentrava encarniçadamente em alguma frase da carta, olhava o relógio e bocejava.
E como Martin lhe perguntou se entre dois seres que se querem tudo não deve ser nítido, tudo transparente e edificado sobre a verdade, Bruno respondeu que quase nunca se pode dizer a verdade quando se trata de seres humanos, pois só serve para produzir dor, tristeza e destruição. Acrescentando que sempre havia alentado o projeto ("mas eu não sou nada mais que isto: um homem de puros projetos", acrescentou sorrindo com tímido sarcasmo), havia alentado o projeto de escrever um romance ou uma obra de teatro sobre isso: a história de um rapaz que se propõe a dizer sempre a verdade, sempre, custe o que custar. Desde logo semeia a destruição, o horror e a morte à sua passagem. Até terminar com sua própria destruição, com sua própria morte.
- Então é preciso mentir - aduziu Martin com amargura.
- Digo que nem sempre se pode dizer a verdade. A rigor, quase nunca.
- Mentiras por omissão?
- Algo assim - replicou Bruno, observando-o de lado, temeroso de feri-lo.
- Quer dizer que não acredita na verdade?
- Creio que a verdade fica bem na matemática, na química, na filosofia. Não na vida. Na vida é mais importante a ilusão, a imaginação, o desejo, a esperança. Ademais, sabemos por acaso o que é a verdade? Se eu digo que aquele pedaço de janela é azul, digo uma verdade. Mas é uma verdade parcial, e portanto uma espécie de mentira. Porque esse pedaço de janela não está só, está em uma casa, em uma cidade, em uma paisagem. Está rodeado do gris desse muro de cimento, do azul-claro deste céu, daquelas nuvens alongadas, de infinitas coisas mais. E se não digo tudo, absolutamente tudo, estou mentindo. Mas dizer tudo é impossível, mesmo neste caso da janela, de um simples pedaço da realidade física. A realidade é infinita e além disso infinitamente matizada, e se me esqueço de um só matiz já estou mentindo. Agora, imagine o que é a realidade dos seres humanos, com suas complicações e rodeios, contradições e demais nuances. Pois muda a todo instante que passa, e o que éramos há um momento não o somos mais. Somos, por acaso, a mesma pessoa? Temos, por acaso, os mesmos sentimentos? Pode-se gostar de alguém e de repente desgostar e até mesmo detestá-lo. E se quando desgostamos dele cometemos o erro de dizer-lhe isso, será uma verdade, mas uma verdade momentânea, que não mais será verdade dentro de uma hora ou no outro dia, ou em outras circunstâncias. E por outro lado o ser a quem queremos dizer isso acreditará que essa é a verdade, a verdade para sempre e desde sempre. E se afundará no desespero.
[1] "O amor é uma pessoa que sofre e outra que se entedia."
(Sobre Heróis e Tumbas, Ernesto Sábato)
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