- Eu queria te dizer uma coisa simples, que de tão simples eu não sei sequer por onde começar, até porque não existe propriamente um começo. Enquanto olho o retrovisor tento encontrar o momento preciso em que o que foi deixou de ser. Esforço inútil, tão inútil quanto conseguir saber onde começa uma pessoa e termina outra dentro da gente. A distância entre dois pontos é sempre um infinito, de modo que no limite não há limite. Então, reconheço apenas que aconteceu. E se sempre trago comigo esse desejo absurdo, doentio, de tentar reconstituir o inconstituível, por outro lado sei perfeitamente que esse esforço caso fosse possível, ainda assim de nada adiantaria. Os porquês realmente não interessam embora invariavelmente me interessem. Sim, existem muitos porquês que, em última instância, acabam pecando pelo mesmo motivo: não sabem explicar por que. Porque é exatamente isso que me faz, ao começar a lavar a louça do jantar, sem mais nem menos travar dentro de mim monólogos intensos com você em que suprimo qualquer rabisco que possa implicar no menor o risco de entrar na sua cabeça e se transformar em um daqueles ruídos que as pessoas costumam chamar de palavras, quero dizer, desses zunidos que você está escutando agora mas é incapaz de ouvir. Não, infelizmente você nunca vai saber desses monólogos que arrebatam o meu pensamento enquanto as minhas mãos se perdem entre espuma e água. Porque não é dentro de você que os morangos começam a pedir passagem para, em seguida, se transformarem em uma aula, em suco, em uma rodoviária, em uma estrada e em um pescoço displicentemente tombado para, por fim, completarem sua metamorfose em um mousse de maracujá. E pensar que até então eu não gostava de maracujá, nem de sotaque, nem tanta coisa, nem mesmo de. Minto. A metamorfose jamais se completa. Não há borboletas nesse jardim. O que resta é apenas a larva dentro da minha cabeça, um vir a ser contínuo, próprio do que não é coisa alguma. Relaxa, menina. São apenas abstrações, imagens, esse tipo de frescura que não causa nada além de algumas cosquinhas naquela bombinha que enfeita o lado esquerdo do nosso peito. Bobagem. Tudo bobagem, invenção, tudo falso como qualquer sensação que ocorra fora das linhas que separam o que chamamos de ‘eu’ daquilo que convencionamos denominar ‘ele’ – quando ‘ele’ não é ‘vocêu’, claro, pois dois pesos significam duas medidas não é mesmo? Por isso, não caia na tentação de acreditar nesses zumbidos, afinal de contas, que sei eu do que eu sinto, não é mesmo? Oras, um reles aprendiz de amador ocupando essa mísera posição na hierarquia dos bem vividos não tem a menor capacidade de responder sobre qualquer eventual sopro que reverbere dentro das paredes do seu castelo. Afinal, que rei sou eu de mim mesmo quando existem tantos súditos ao meu redor? Talvez o melhor mesmo seja me render e aceitar ser o que eu não sou. Um dia eu ainda aprendo que a tal da sinceridade, quando existe de fato, nunca consegue ser realmente sincera aos olhos de ninguém. Quer melhor maneira de cair em descrédito que ousar falar a verdade? Não que eu saiba mais do que você sobre você mesma ou sobre qualquer coisa que se passe nesse mundo entre a espuma e a água. Realmente não sei! Aliás, quando eu começo a pensar em você eu penso - e como eu penso! - que cada vez que entendo mais, compreendo menos. E tudo sempre parece tão simples, não é?, simples como isso que eu estou aqui mais uma vez tentando lhe dizer. Só que a simplicidade só tem de simples o nome. Do contrário, provavelmente você jamais tentaria conversar comigo para se convencer de algo em que você é incapaz de acreditar. Simples, não? Sim, como todas as dúvidas das quais você diz duvidar existir e que não existindo, portanto, aparecem. E como se esconder de sua própria sombra? Eu rio sozinho um riso nervoso. É que eu achei que fosse capaz de possuir algum controle sobre mim mesmo, pode? Foi quando me peguei mais uma vez preocupado daqui com você que me dei conta de que não. Como quando ouvi a sua voz pela última vez e vi a ficha caindo diante de mim. Como novamente eu cai na mesma armadilha de dizer ‘não...’. Não é realmente não, digo, nega-se a si mesmo a ponto de... se reverter em sim. Sim, sim, sim... Sim. Não existe borracha que seja capaz de apagar totalmente um traço, quanto mais... Isso. Quanto mais isso. E pensando nisso, sua gargalhada... E nessa hora meu riso também gargalha. Culpa dos neurônios espelho, mas não apenas deles, entende? Quem diria: uma culpa gostosa. É dessa culpa que eu tenho tentado lhe dizer. É ela que me faz pensar que as coisas são possíveis, que existe algo apesar de todas as reticências. É essa culpa, menina, que me leva realmente a algo em que eu posso verdadeiramente acreditar e que não se assemelha em nada com a figura de Deus tal como ela costuma ser pintada mundo afora. Algo que se manifesta pelas mãos, que se cristaliza em movimentos imperceptíveis, como uma dança invisível. E tal como Deus, esse algo não existe em si mesmo, mas através. Tão através que costumam equivocadamente a confundi-lo com... Deus, até mesmo por aquela enorme necessidade de se acender velas, de desejar com a unha, de acenar e no final se explicar apenas por meio de uma fé, igualmente cega, igualmente redentora, igualmente traidora. Sim, é o caos, é o choque brutal de todos os contrários - iguais em sua natureza frágil -, de todos os inexplicáveis em busca de explicação. E a gente acha cada explicação idiota de tão convincente para o que não se pode explicar, não é? E aí, volta ao começo da história, procura encontrar o fio da meada, perceber o momento exato, simula as narrativas mais improváveis, toca as mãos do destino, cogita timidamente algum sempre, mesmo consciente da finitude, mesmo consciente das finitudes, mesmo inconsciente. Arrepios, lágrimas, mochilas, trapos, árvores, essas coisas. Haja metafísica. Haja física. Que haja! No fim das contas é isso: que haja, apenas. Como nas aulinhas de português, ‘haver no sentido de existir’. Mas... É que acreditar rima com subverter: sintaxes quebradas, impessoalidade conjugada de todas as maneiras possíveis para além de quaisquer gramáticas do que pode se chamar de certo, de errado, de. Pode, sim, tudo pode. Que seja ilusão, que não seja nada. Há pouco tempo tive um sonho com você. Você sabe como são os sonhos, quero dizer, à medida que os dias transcorrem a nitidez pouco a pouco se perde. Do que ainda ficou, fui parar em um apartamento e para minha grande surpresa você também estava por lá. Não sei te dizer o que você era dentro do sonho que não você mesma. Recordo-me apenas do silêncio, mas não de um silêncio qualquer. Para cada ação minha, havia um correspondente olhar de censura vindo de sua parte. Nenhuma palavra, embora nada escapasse. E você sabe o quanto é insuportável ser julgado sem sequer saber o motivo. As membranas são frágeis até mesmo para quem procura as elevar ao limite de toda a sua resistência. Mas é que simplesmente não dá para agüentar. Basta reparar na eletricidade presente no ar de fim de tarde depois de um dia de sol a pino. Os ventos surgem como prenúncio, o céu timidamente muda de cor quando... Bem, quando num belo momento estava eu deitado em uma cama junto com meu irmão. Eu não conseguia dormir. Você estava na cama ao lado. É irônico pensar nisso porque essa acaba por ser a mesma sensação que tenho em vigília. Apesar da distância e do tempo você encontra alguma maneira de olhar para mim. O nó simplesmente não desata. Há um elo que não permite se criarem duas correntes independentes. Uma espécie de necessidade reciprocamente velada que sustenta a fragilidade disso que existe entre nós dois em face das mais apocalípticas tormentas. Não importa se sapos, se canivetes, se palavras, se silêncios. Os dedos ainda se tocam, por menor que seja a superfície de contato. Isso me intriga. Assim como a série de coincidências – a que um dia eu já jurei de pés juntos serem a própria anunciação – nos relatos das histórias que teimam em acontecer nas nossas vidas. Nesses instantes, por bem pouco eu não volto a me trair. Embora... Bem, onde eu parei? Sim, eu estava no meio do sonho quando fui atropelado por ‘v...’, quer dizer, por mim mesmo. Você estava na cama ao lado, lembra? E eu numa cama com meu irmão, sem conseguir dormir. Num determinado momento eu tentei puxar apenas para mim o lençol que eu dividia com meu irmão quando, num ímpeto, ele acabou por reagir tomando o lençol todo para si. Em seguida, resolvi deitar no chão. Nessa hora você levantou lentamente e desferiu um olhar para que eu voltasse para a cama imediatamente. Mas não só isso. Nessa hora, a água do transbordou. Não havia mais como me sujeitar àquela situação. Eram muitas as forças em jogo, afinal, não se tratava apenas de indiferença e reprovação. Quero dizer, se tratava do que se trata nesse momento em que falo com você. Se trata dessa coisa simples que durante todo esse tempão eu estou tentando te dizer e que não consigo senão tatear vagamente. Menina, eu estou falando que aquele mesmo transbordamento do sonho é exatamente o transbordamento da minha alma, do aqui e agora, do sangue. Eu tô falando da dor de cabeça, das náuseas. Eu to falando de tanta coisa que ficou presa dentro de mim, que eu tentei enjaular a todo custo, que fugiu, que eu recapturei, que eu rompi, lutei, ganhei e depois descobri que já estava perdido desde o início. É que eu fico sem jeito, que é que fico sem ar, é que eu fico sem espaço. É que demonstrar é difícil, é que eu realmente te digo que nunca sei o que deve ser feito, como deve ser feito, sabe? Transborda, sufoca, mata. Eu te vejo, te radiografo, procuro notar todos os seus detalhes, prestar atenção eu absolutamente tudo o que você me diz, estar junto. Não importa se perto, nem se longe. Como que de bar em bar, você vem à tona entre palavras de descrença ou de esperança, mesmo que mentalmente. A história todos já sabem de cor e salteado e eu realmente não entendo a razão disso tudo, quero dizer, eu sou humanamente incapaz de entender como é possível que de repente os morangos se transformem em maracujá, mas não como puramente fotografias. Posso ver a superfície do morango, microscopicamente, com seus pequenos furinhos. Mais do que isso, posso sentir a textura em minhas mãos enquanto se modificam, enquanto se atinge o maracujá, enquanto aquele suco Maguary se transforma em um mousse. Você não faz idéia do que é isso! E são exatamente nessas horas que eu simplesmente não sei o que dizer, que eu travo, que eu paro, que eu temo, que eu caio e fico. Falar com você sobre isso tudo, sobre isso que eu reluto, sobre isso que me invade, sobre isso que eu não sei explicar, que eu não sei o que é, que eu não sei nomear, que se confunde com tanta coisa que eu vivi, pensei, senti e que no entanto não equivale a absolutamente nada disso me... Não sei. Lembra-me um personagem de um filme. Acho que é isso. Donnie Smith, do Magnólia. Mais do que o personagem, me lembra uma cena – e olha que eu nem acho a melhor cena do filme. Se você não assistiu ao filme, por favor, não perca tempo e preste atenção no momento em que, na parte final, este Donnie Smith conversa com o policial, se não estou enganado Jim. Existe algo ali. Algo que me remete a você, algo que me remete a mim, algo que está presente aqui. Fico sem fôlego. Já não sei se tudo isso é real ou não. Há algo para além de. Algo que talvez ninguém seja capaz de enxergar, que tem a ver com solidão, euforia, medo. Um dia você já entendeu isso, apenas de olhar. Não em tom de censura, mas de certeza. É desse entendimento, tácito. Sim, é desse entendimento tácito, ouviu? Preciso agora saber que você está me ouvindo, que esses zunidos estão mexendo com você. Apesar da nossa proximidade eu preciso de alguma garantia de que não estejamos distantes, que não estejamos dando nomes iguais a naturezas distintas. Sim, o que tenho são palavras. São apenas esses zumbidos o que carrego dentro de mim. Zumbidos feitos de carne, feitos de morango, de maracujá e de tanta coisa que eu não sei sequer por onde começar a listar... Quando olho para você, quando me ponho a te escutar, não estou de frente com um rótulo. Um rótulo não seria capaz de me afetar. Um rótulo é um rótulo, apenas. Tautologia. Por outro lado, é essa mesma tautologia a única ferramenta de que disponho para chegar diretamente ao ponto: você é você. Parece não ajudar muito, entende, mas é isso o que me deixa completamente absorto: você é você. É isso que interliga toda a sucessão de mudanças, fases, crises, reações. Apenas isso que explica isso, isso aqui. Por que você faz isso comigo? Eu te amo, sua vaca!
- Sua o quê?
- Não era isso exatamente o que eu queria dizer, me desculpa.
- É que eu nunca pensei que isso pudesse acontecer...
- Nem eu...
...
- Mas você não terminou de contar o seu sonho...
- Isso agora depende de você.
- Sua o quê?
- Não era isso exatamente o que eu queria dizer, me desculpa.
- É que eu nunca pensei que isso pudesse acontecer...
- Nem eu...
...
- Mas você não terminou de contar o seu sonho...
- Isso agora depende de você.