quarta-feira, 16 de julho de 2008

Rabisco.

Aquele primeiro rabisco apenas insinuava. Não tinha nenhuma idéia de onde isso iria dar. Se em nenhum momento eu disse ‘o primeiro traço’, é porque não havia um ponto de partida e por isso tampouco um de chegada. O traço liga enquanto meu simples rabisco se perde num oceano de possibilidades. Parei e examinei cuidadosamente aquele rabisco que, de alguma forma sutil me agradou. Adianto desde já que também não sou desenhista, não tenho a mínima vocação para isso. Sou completamente desprovido de algum tipo mínimo do que costumam chamar de ‘senso estético’. Por exemplo, se falo, ‘olha que desenho bonito’, alguém mais entendido no assunto logo me olha com a superioridade de quem se acha no direto de poder reprovar. Imagina só o que um entendido diria daquele meu humilde rabisco? Certamente daria risada, não levaria a sério, ‘coisa de amador’. Sim, amador, um amador que com a ingenuidade do seu amor, sem saber, segue com sua falta de senso estético para além da técnica profissional de ‘bater ponto’, daqueles que supostamente se orgulham de saber prever o espaço – e que, portanto, acabam se tornando reféns do mesmo.

Olhei meu rabisco de novo. Ele também me olhou. Estávamos frente a frente nos descobrindo. Mesmo sem ter boca – e não, ele não tinha olhos, pelo menos isso a que costumamos chamar de olhos, embora eu tivesse a nítida impressão de que me encarava – ele queria me dizer alguma coisa. Um caminho, uma verdade, uma saudade, um vestígio? Tudo isso? Dúvida. Duvido... Aquela voz presa dentro do meu caderno soava como uma canção que fica martelando dentro de nossa cabeça, mas cujo nome e a autoria não nos vêm à memória. Seria culpa da censura do nosso inconsciente? Assim tudo fica muito fácil de se explicar: basta se negar a explicar. Desculpas são saídas muito simples, vocês não acham? O problema é que a canção se mantém presa dentro de mim, quer dizer, a voz do meu rabisco não conseguia sair de sua boca, que como eu disse, ele não tinha. Restou-me então apenas uma alternativa. Na verdade com certeza haveria outras, mas naquele momento foi essa a que me pareceu mais sensata: continuar rabiscando. Foi quando o jogo se inverteu: a boca que não existia se fechou, o encanto se perdeu. A busca de uma forma se transformou em 'senso estético'. Talvez o passo em falso tenha me levado a um arroubo de genialidade, como os entendidos volta e meia gostam de encontrar. Em compensação aquela sedução primeira se foi. Perdi o fio da meada quando este parecia estar tão perto de atingir alguma coisa. Um detalhezinho, um movimento e tudo parecia estar desfeito. Em vez de deixar o rabisco me mostrar o que ele queria dizer, quis extrair dele algo que eu queria ouvir. Esse foi meu erro.

Amassei a folha de caderno como quem dá adeus a uma promessa. Mas quando estava prestes a arremessá-lo no lixo, sem querer, aquele papel amassado enganchou na espiral de aço do meu caderno, fazendo um pequeno rasgo em sua superfície. O suficiente para ouvir o seu pranto. Agora eu percebia que ele tinha textura, relevo e mais do que isso: uma certa imperfeição que conseguiu se opor à sede de certezas que minhas mãos, naquele segundo momento, queriam bruscamente extrair de sua incipiência. Velha pressa desesperada que anda em círculos e encontra a si mesma... Em suas lacunas, que eu acabava de descobrir, eu podia enxergar as minhas próprias. E quando, em pé, eu levantei aquela folha na altura dos meus olhos, já satisfeito com o resultado, foi que eu me dei conta de tudo o que ele queria tanto me falar: dentro de sua boca, agora existente, naquele exato vazio, um pequeno verso escrito na parede do meu quarto apontou para um rabisco maior existente dentro de mim. O singelo rabisco tinha sede apenas de me dizer 'rabisco'. Nada mais. Como já lhes disse, um rabisco, não um traço: não importa o sentido e sequer a direção. O que vejo são suas pegadas por onde caminho.

Um comentário:

Anônimo disse...

nossa, que criatividade!
gostei! :)