Se eu dissesse que não certamente estaria mentindo. Por isso não digo embora, por vezes, maldiga. Ainda há pouco tudo começou na tentativa de investigar o porquê de tudo ter terminado. E isso fica ainda mais irônico justo por ser o final de algo que sequer teve um começo – mas que inegavelmente, por mais contraditório que o pareça, certamente sei que aconteceu. Intenso e vazio. Entre os extremos concretamente inconcretos venho tentando me equilibrar desde que te conheci. De quando em quando, ainda incrédulo, me pego pensando na ocasião em que tudo (não) começou. Sete chaves abertas entre uma conversa e outra em que eu não conseguia conter aquele misto de euforia e espanto ao pensar nos contornos que você passou a assumir em minha vida. Aliás, se há uma sensação por excelência que me toma por inteiro nesses momentos ainda mais do que a euforia certamente é o espanto: nunca iria ser capaz de prever que aquele dia, na verdade aquele fatídico dia, mudaria minha vida tempos mais tarde. Isso porque a consciência é sempre posterior ao ato. Daí simbologias. E amor tem a ver com todas as simbologias possíveis, imagináveis, sensíveis. Talvez por isso nesse momento esteja cético: falta algo em que se acreditar de verdade. E acreditar de verdade é entrar de cabeça sem medo num mundo de mentiras, que nada tem de mentiroso. Mentiras sinceras me interessam também.
Naquele dia dois estranhos se estranhavam pela primeira vez e de tanto se estranharem perceberam-se espantados por serem tão íntimos em seus estranhamentos. Não havia mais volta.
De alguma maneira falar sobre isso parece engraçado de tão absurdo: começos que parecem ter começado em outra vida – por mais que eu particularmente não acredite nessa idéia, embora ali isso fizesse sentido até mesmo para mim. ‘Faz tanto tempo’, eu disse e, no entanto, apenas poucas horas haviam transcorrido – o bastante, ou talvez o insuficiente que sempre nos leva a querer mais o bastante. Não havia nada de mais como sempre acontece nos dias mais importantes de nossas vidas: apenas banalidades, uma companhia, conversas, e pequenas grandes surpresas, comemoradas com muito alarde, internamente, diante de cada nova revelação. Cuidado pueril despedida difícil. Um começo? Um final? Tudo ali, no lugar, como quem encontra sem se dar conta o que há muito procurava – e quando se dá conta não o tem mais, mitifica, perde aquela pontinha de contato com o real, exagera, desfaz. A primeira impressão... A primeira impressão poucas vezes engana. Pelo menos comigo é assim, inexplicável. Simbologias (sim, elas!), sorrisos bobos estampados na face... Lembrar é como mergulhar e se afogar. Os detalhes, como o sal, ficam e fincam.
Gestos calados, silêncios falados, reconhecimentos tímidos, votos implícitos, desejos trancafiados em ostras, muros que não separam mas que marcam lugares de encontro – sobretudo em cima dele -, desencontros, gesso, confidências, dependência velada, fugas, carências, afagos, afetos disfarçados de desinteresse, pena e tinteiro noites a fio, negações, afirmações, conclusões - inconclusivas, bem que se diga -, pedras atiradas em todas as direções, prenúncios que não são levados a cabo a não ser..., palavras e gestos do que poderia – e foi mesmo sem ser – m-e-d-o, covardia, problemas, um problema: amor.
Mosaicos nos parecem difusos, confusos e a primeira vista sem sentido, mas guardam a unidade que fecha tudo sob algum prisma. E, no entanto, cotidianamente vivemos livremente presos dentro de um grande mosaico cuja percepção de seu significado, sempre alterável, maleável, transmutável, vai sendo lapidada entre atos a passos de formiga. É exatamente sobre isso que eu quis dizer com ‘não havia mais volta’: de repente já é tarde demais e você está no olho do furacão sem ao menos saber como foi parar por lá. A lentidão do tempo nos engana por sua própria velocidade. E seu mundo, nesse movimento, gira sem você saber. Pés no chão feito de céu. Pedrinha por pedrinha o mosaico vai construindo a imagem – que você faz de tudo para não ver, o que apenas comprova o que você já sabe. M-e-d-o. Situações limite: a diferença entre um beijo e um tapa é o segundo que você arrisca - até porque na prática o nada tem o mesmo peso de um tapa, ou pior. Risco. Beijo. Tapa. Muro. Em cima do muro, de mãos dadas as mãos atadas. E o fim está tão perto, embora disso você realmente não saiba... ainda. Porque é quando o mosaico se fecha que tudo termina: a certeza de nada mais adianta. Pode mergulhar agora, afinal, já retiraram a água da piscina.
A triste constatação: tudo terminou exatamente no momento em que ‘tudo começou’. A importância dos começos é correlata da dos finais: dois pontos imprecisos que fogem ao alcance das nossas mãos.